Postado em 22/12/2011
Ao contrário do que geralmente se faz num perfil, talvez este deva começar com algumas perguntas em vez de fatos. Em que cidade José de Assis Valente nasceu realmente? Ou até mesmo: em que ano? Isso porque há curiosos desencontros na biografia do baiano que é considerado um dos compositores mais importantes da música popular brasileira.
A maioria deles concentra-se no período de infância, a começar pelo ano de seu nascimento. Foi consenso comemorar seu centenário em 2011 – e o Sesc São Paulo participou dos festejos apresentando dois belos espetáculos em homenagem ao sambista (veja boxe Alegria e tristeza). Mas há fontes que dão conta de que seu primeiro ano de vida pode não ter sido 1911.
“A data é incerta”, assegura o jornalista e pesquisador Gonçalo Jr., autor de um novo livro sobre o sambista, Quem Samba Tem Alegria – A Vida e o Tempo do Compositor Assis Valente, que deve sair no segundo semestre de 2012, pela editora Civilização Brasileira. “Na verdade, o próprio Assis dizia anos diferentes em cada entrevista. Para uns ele apontou 1908, para outros 1909, ou 1910 ou 1911.”
O estudioso passou quatro anos realizando entrevistas e revirando documentos e arquivos de jornal, e conta que a filha de Assis, Nara Nadili, nascida em 1942 e fruto de seu breve casamento com Nadili, possui uma certidão de nascimento em que, de fato, se lê 1908 – ano que aparece também na primeira biografia do compositor, A Jovialidade Trágica de José Assis Valente (Martins Fontes, 1989), de Francisco Duarte Silva e Dulcinéa Nunes Gomes.
O local de nascimento de Assis também é outro alvo de divergências. O que consta em muitos registros biográficos – incluindo o do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira (www.dicionariompb.com.br) – é a cidade de Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Segundo documentos recentemente encontrados, porém, o correto seria Salvador, capital do estado, onde morou também a família Cana Brasil, que ficou com ele, a pedido do próprio pai de Assis, depois que se mudou para Alagoinhas, onde o sambista ficou até por volta dos 10 anos.
O fato coloca em xeque também a história de um suposto sequestro do qual Assis teria sido vítima quando criança, para depois ser entregue a estranhos. “Ele não foi roubado”, garante Gonçalo. “O próprio pai pediu para os Cana Brasil o levarem para o interior, porque ele era uma criança muito rebelde.”
Ainda segundo o estudioso, as tentativas de Assis de apagar o passado chegaram ao ponto de ter o ano de nascimento rasurado em sua carteira de identidade – fato descoberto quando encontraram seu corpo, na Praia do Russel, no Rio, em 1958, depois de ingerir formicida com guaraná. “Não se sabe por quê, mas essa é uma informação que aparece no boletim de ocorrência”, garante o pesquisador.
Ideias musicais
No entanto, um aspecto da história de Assis Valente não é nada volátil: a obra. A perfeita tradução de seu talento para transformar em música o cotidiano mais banal e as contradições mais intrincadas do ser humano. “Ele foi um grande cronista”, comenta o músico e compositor carioca Marcos Sacramento, criador de um dos shows apresentados no Sesc.
“Um homem que soube falar da sua época e do cotidiano da sociedade brasileira com muita propriedade.” Um grande melodista, como avalia Sacramento, Assis também teve o mérito de criar obras de grande apelo popular, sem perder a qualidade. “Ele compôs músicas que são tocadas até hoje”, observa o compositor carioca. “Se você entra num shopping para fazer compras de Natal, muitas vezes está tocando Boas Festas [1933], uma música do folclore natalino brasileiro que muita gente não sabe que é dele.”
O músico Fábio Tagliaferri, diretor musical de outro espetáculo apresentado no Sesc, Feliz Aquele Que Sabe Sofrer, complementa analisando a maneira peculiar como Assis combinava letra e música. “Como ele compunha muito para a Carmem Miranda [1909-1955], que tinha essa capacidade de articular muito bem e muito rápido as palavras, a ideia musical dos sambas dele continha frases bem longas”, explica Tagliaferri, citando o início de Brasil Pandeiro, outra canção de Assis, apresentada por João Gilberto ao grupo Os Novos Baianos e que aparece no disco Acabou Chorare. “A frase ‘Chegou a hora de essa gente bronzeada mostrar seu valor’ se encaixava na ideia musical de forma acelerada”, comenta o músico.
Sempre lembrado
Carmem Miranda, que o mundo conhecia como “a pequena notável”, foi de fato a mais famosa intérprete dos sambas e marchas de Assis Valente, gravando 25 canções do total dos 154 fonogramas originais que contabilizam a obra do sambista. Entre elas Lulu (1934), Tão Grande, Tão Bobo (1934) e ...E o Mundo Não se Acabou (1938).
“Quase tudo fez sucesso”, observa o jornalista Moacyr Andrade, autor de um livreto sobre Assis que acompanhou um CD, parte da coleção Raízes da Música Brasileira, lançada pelo jornal Folha de S.Paulo, em 2010. É por esse motivo, inclusive, que Andrade não acredita que o termo “resgate” seja muito apropriado para se referir aos diferentes momentos em que a posteridade bebeu da fonte do sambista – seja na virada dos anos de 1960 para a década de 1970, quando Nara Leão, Maria Bethânia e os próprios Novos Baianos regravaram Assis, ou mesmo no ano passado, em que alguns projetos celebraram seus 100 (103?) anos de nascimento.
“Ele nunca foi muito esquecido”, defende Andrade. “A grande intérprete dele, Carmen Miranda, esteve sempre em evidência. E mesmo no período em que, por exemplo, o rock começou a dominar a música, no final dos anos de 1950, houve artistas como a Marlene, que gravou um LP só com músicas dele [Marlene Apresenta Sucessos de Assis Valente, de 1956].”
O jornalista lembra ainda outras ocasiões em que a vida e a obra do sambista entraram em foco, mesmo sem uma efeméride: a peça de teatro Samba Valente de Assis, de 1995, com o ator Norton Nascimento (1962-2007) no papel principal; e um espetáculo no qual o ator Pascoal da Conceição e o músico Luiz Gaiyotto uniram a poesia de Castro Alves e a música de Valente. O show foi apresentado, em 2000, dentro da série Dois em Um do Sesc Vila Mariana.
Altos...
Depois de se mudar para o Rio de Janeiro, em 1927, Assis Valente empregou-se como protético. Paralelamente, iniciou atividade como cartunista, tendo publicado desenhos em revistas famosas da época, como Shimmy e Fon-Fon. Foi no início dos anos de 1930 que começou a compor sambas.
O primeiro sucesso se deu em 1932, quando a cantora Aracy Cortes (1904-1985) gravou e emplacou Tem Francesa no Morro, de sua autoria. O debute teve o incentivo do compositor Heitor dos Prazeres (1898-1966), que se tornaria seu amigo. No mesmo ano, desperta o interesse de Carmen Miranda, que até 1939, ano em que iniciou sua carreira nos Estados Unidos, gravaria 24 sambas seus.
A década de 1930 foi dourada para Assis. Figura de destaque no panteão do samba carioca, tinha parceiros como o compositor Lamartine Babo (1904-1963) e o compositor e cantor Ataulfo Alves (1909-1969). Era amigo do sambista Noel Rosa (1910-1937) e do compositor Ary Barroso (1903-1964), autor da mundialmente famosa Aquarela do Brasil (1939).
Seu nome corria o cenário artístico carioca – não só pelo sucesso de suas músicas, mas também pelos golpes de marketing pessoal, que ele orquestrava como poucos de seus contemporâneos. “Ele talvez tenha sido o grande marqueteiro da época, era imbatível nisso”, conta Gonçalo Jr., ilustrando um episódio envolvendo o jornal O Globo e a Revolução Constitucionalista de 1932.
“O jornal estava fazendo uma campanha contra esse movimento”, conta o autor. “Espertamente, Assis fez um samba que tinha o mesmo slogan: ‘Pra onde irá o Brasil’, título da música [lançada em 1933]. Resultado: ele virou o ícone da campanha d’O Globo”.
Isso sem mencionar o hábito de viver em posse de caneta e fotos suas para autografar um retrato sempre que alguém se aproximava para cumprimentá-lo. “E, para completar, ele virou o queridinho da Carmem Miranda”, arremata Gonçalo. “Por isso tudo, ele meio que esnobava os outros, o que começou a gerar boatos de que ele era arrogante.”
...e baixos
A década seguinte, no entanto, não foi tão auspiciosa. Mesmo não tendo parado de compor, na vida privada, o abandono da esposa Nadili, o acúmulo de dívidas e o agravamento dos sintomas de depressão deram início a um declínio marcado por uma série de tentativas de suicídio – seis no total. Na primeira delas, ainda em 1941, ele se atirou da altura de 70 metros, num ponto do Morro do Corcovado.
Porém, acabou caindo sobre a copa de uma árvore e sobreviveu. Em outro episódio, ele cortou os pulsos, e ainda em outro tentou dar cabo da própria vida tomando vários comprimidos. E houve ainda uma tentativa de se atirar da janela. “Ele ia da alegria à tristeza completa”, comenta Moacyr Andrade. “Tanto que acabou se suicidando. Tinha uma personalidade muito complicada. Realmente foi uma pessoa problemática.”
Embora fosse gravado aqui e ali, seu nome começava a aparecer mais ligado a fatos negativos do que a êxitos fonográficos. Em dezembro de 1945, por exemplo, Assis foi encontrado, desnutrido, desidratado e com o corpo todo paralisado, na cama de um quarto do Hotel Mendes Sá, no Rio de Janeiro. “Não se sabe se teria sido outra tentativa de suicídio ou se foi uma crise nervosa”, comenta Gonçalo. No entanto, os jornais souberam do fato e começaram a noticiar que Assis Valente tinha enlouquecido.
Para a história da cultura brasileira, porém, Assis Valente entrou pelo melhor dos motivos: sua contribuição musical. “Algumas músicas dele nunca ficaram esquecidas”, avalia Moacyr Andrade. “Camisa Listrada é um exemplo, todo mundo ouviu sempre.
Desde que foi lançada, em 1938, nunca mais se deixou de cantá-la, em todo Carnaval ela volta.” Marcos Sacramento inclui nessa lista outro grande “hit” do compositor, a marchinha junina Cai, Cai, Balão, composta em 1933. “Era uma coisa normal na época, os compositores faziam marchinhas para as festas de meio de ano. Mas, de novo, as que ficaram foram as do Assis Valente.”
Por trás da música
Com uma biografia tão cheia de fatos memoráveis, é natural ?que algumas de suas composições tenham bastidores igualmente curiosos
...E o Mundo Não se Acabou (1938). Fala de modo bem-humorado do pânico que se espalhou pelo país, em 1938, por conta de rumores de que um meteoro estaria em rota de colisão com a Terra. Uva de Caminhão (1939) – Essa foi feita para uma garota que esnobava o compositor, mas que, como se dizia na época, tinha caído na boca do povo. Na letra, quando ele diz “Agora anda dizendo que está de apendicite/Vai entrar no canivete, vai fazer operação”, na verdade, espalhava o fato de a moça ter engravidado.
Brasil Pandeiro (1940) – O samba foi composto um ano antes de o sambista tentar se suicidar pela primeira vez. E um dos motivos do ato teria sido a recusa de Carmem Miranda em gravar a música, por julgar que não seria bem-vista pelos norte-americanos.
Boneca de Pano (1950) – Há versões de que ele teria composto este seu último sucesso para externar a mágoa da ex-mulher que o deixou. Outras fontes garantem que a música fala do sentimento de “abandono” por parte de Carmem Miranda. De qualquer forma, segundo garante o jornalista e pesquisador Gonçalo Jr., a letra é autobiográfica.
No tabuleiro de Assis
Tanto em sua época quanto nas décadas que se seguiram, e até hoje, ?o autor de clássicos como Camisa Listrada (1937) continua dando o que cantar
Mesmo tendo feito carreira no Rio de Janeiro, Assis Valente sempre deixou claro, por meio de sua música, que o Brasil todo o interessava. Das tradições do Recôncavo Baiano às festas juninas, seus sambas e marchinhas falam como ninguém do povo e dos costumes daqui. E isso tudo não passou despercebido. Nem pelos intérpretes contemporâneos de Assis, como Carmem Miranda (1909-1955) e Aracy de Almeida (1914-1988), nem pelos que vieram depois.
“Por exemplo, Mário Zan [1920-2006, acordeonista famoso por suas canções típicas das festas juninas] considerava Cai, Cai, Balão [1933] talvez a música mais importante das festas de São João”, comenta o jornalista e pesquisador da vida e obra de Assis Valente, Gonçalo Jr. O músico carioca Marcos Sacramento, que montou um show em homenagem ao sambista (veja boxe Alegria e tristeza), cita a si próprio e Os Novos Baianos, que gravaram Brasil Pandeiro em 1972.
Por fim, o jornalista Moacyr Andrade, autor de um livreto sobre Assis, parte da coleção de CDs Raízes da Música Brasileira, lançada pelo jornal Folha de S.Paulo, comenta que a qualidade do material é o que mantém os artistas sempre às voltas com o repertório de Assis. “A música dele é muito atenta à vida”, diz.
Alegria e tristeza
Sentimentos antagônicos que sempre conviveram na obra ?de Assis Valente pontuam as homenagens em seu centenário
Para lembrar o centenário do sambista Assis Valente (1911-1958), diferentes unidades do Sesc incluíram em sua programação espetáculos que celebram sua música. No Carmo, em 16 de dezembro, e em Santos, no dia 17 de dezembro, Marcos Sacramento (foto) apresentou seu Tributo a Assis Valente, show criado para o Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, em março de 2011, e que já tinha passado pelo Sesc Belenzinho, em outubro.
“Escolhi o repertório baseado no meu gosto”, conta Sacramento. “Selecionei aproximadamente 15 obras e criei um espetáculo bastante singelo.” No palco o músico foi acompanhado por Luiz Flavio Alcofra (violão), Pedro Aune (baixo), Ruy Alvim (sopros) e Netinho Albuquerque (percussão).
Em novembro, de 25 a 27, ficou em cartaz, no Sesc Pompeia, o show Feliz Aquele Que Sabe Sofrer, idealizado por Teca Lima, responsável também pela curadoria, com direção musical de Fábio Tagliaferri, e que reuniu no palco Luiz Tatit, Ná Ozzetti, Arrigo Barnabé e Renato Braz. O espetáculo fez homenagem a Assis Valente e a Nelson Cavaquinho, morto em 1986 e cujo centenário de nascimento também se comemorou em 2011. “Os sambas do Assis são crônicas do Rio de Janeiro da sua época; enfim, coisas do mundo exterior”, explica Teca Lima.
“Enquanto em Nelson Cavaquinho a dor era o principal tema. Mas Assis tem um subtexto que trata disso também. Então, a partir disso, resolvi pegar o sofrimento como mote.”