Postado em 01/09/2011
Roberto Piva é daqueles personagens que não cabem em uma biografia precisa. Além disso, ficaria irritado ao ler qualquer coisa trivial sobre si e detestaria ser biografado de maneira cartesiana.
Afinal, sempre se afirmou contra “os pinicos estreitos da lógica”. Pode-se até elencar fatos cronológicos de sua vida, como o nascimento em 1937 e a recente despedida, em julho de 2010, mas seria incoerente apresentar alguma outra faceta que não a do Roberto Piva poeta, até porque ele mesmo reivindicava a convergência entre poesia e vida: “Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”.
É essa experimentação sem limites, praticada por um grupo de amigos (ver boxe Confraria Literária), nos anos de 1960, e envolta por uma São Paulo muito diferente da de hoje, que está retratada no documentário Uma Outra Cidade, dirigido por Ugo Giorgetti.
“Ele era um poeta e nada mais do que um poeta. Então, vivia de uma forma aventurosa, irregular, inesperada, dedicado exclusivamente à poesia, que era tudo para ele”, diz o cineasta. Segundo Giorgetti, há um círculo de amigos mais próximos dele e, portanto, mais indicados para falar do autor: “Não quero me aproveitar do filme para bancar algo que não sou, mas o Piva era uma pessoa única, um grande amigo e tenho muita saudade dele”.
afetividade
Um dos entrevistados do filme de Giorgetti é o poeta Antonio Fernando De Franceschi – primeiro do grupo a se aproximar de Piva, ainda em 1958, quando os dois estudavam no Mackenzie –, que coloca a afetividade como marca maior dessa vivência.
“Com certeza, éramos todos muito solidários e tínhamos uma aproximação afetiva muito forte, mesmo quando houve rupturas”, relembra. Essa característica também está retratada no livro recentemente publicado Os Dentes da Memória (Azougue Editorial, 2011), das jornalistas Camila Hungria e Renata D’Elia, que traça um perfil dos poetas Roberto Piva, Antonio Fernando De Franceschi, Claudio Willer e Roberto Bicelli, dando voz narrativa a 40 testemunhas das peripécias dessa geração.
Em uma passagem do volume, Franceschi diz: “Éramos ávidos de descobertas sobre tudo que dissesse respeito ao modo que exercíamos aquela liberdade de sermos jovens, termos uma relação forte com a poesia e, sobretudo, de não estabelecermos nenhuma barreira da dimensão literária com a dimensão da vida. O modo com que partilhávamos experiências existenciais era muito generoso, e éramos muito camaradas uns com os outros.
O grupo era norteado pelo interesse pela literatura. E, claro, pelas experiências estéticas que tínhamos”. O poeta e ensaísta Claudio Willer, que manteve uma construtiva relação com Roberto Piva, também cita essa troca artística entre eles: “O que marcou o Piva para mim foi o diálogo em primeira instância. Foi um grande amigo e interlocutor. Sou muito reconhecido pelo modo como ele fazia propaganda de suas leituras e as sugeria, além, é claro, de sua imensa contribuição como poeta”.
O escritor Roberto Bicelli também comenta com saudosismo os tempos de juventude. “Realmente essa questão da amizade marcou muito. Se algum dia a gente brigasse, quando se encontrava parecia que nada tinha acontecido. E assim a gente conduzia essa relação, sempre com vasos comunicantes e muita magia”, diz. Essa intensidade perante a vida e o apego a um grupo com afinidades também reverberaram na obra do poeta.
“Todas as experiências dele eram corporificadas nos poemas. Por isso ele reivindica o tempo todo essa questão da vida poética”, afirma Bicelli. Para o crítico literário Alcir Pécora, responsável por reunir a obra completa de Roberto Piva em três volumes publicados pela editora Globo – Um Estrangeiro na Legião (2005), Mala na Mão & Asas Pretas (2006) e Estranhos Sinais de Saturno (2008) –, a poética dele propunha uma espécie de confraria de rebeldes. “Um grupo dos que enfrentam a normalidade e são capazes de romper os parâmetros da mediocridade, em busca desse lugar dionisíaco da poesia”, esclarece.
repertório criativo
Considerado frequentemente um poeta marginal, Roberto Piva foi decisivamente influenciado pelo surrealismo e pelo movimento beat. No entanto, suas referências literárias, propagadas em seus poemas e nas rodas de conversa, revelam um escritor que bebeu das mais diversas fontes. “Ele era obsessivo e, quanto mais passa o tempo, mais percebo como as referências dele eram exatas.
Tudo que ele citava era extremamente preciso e transmitia informação sem ser acadêmico”, afirma Claudio Willer. Tanto em epígrafes como em citações em versos, Piva revela as suas preferências literárias, homenageando nomes como Jorge de Lima, Murilo Mendes, Antonin Artaud, Dante Alighieri, Garcia Lorca, Mário de Andrade, André Breton, Arthur Rimbaud, Marquês de Sade, entre outros.
“Ele é um poeta leitor e a sua obra pede para ser analisada sob o prisma do comparatismo literário. Comparando, vemos a individualidade da voz do Piva, como ele é capaz de dialogar com outro autor e ao mesmo tempo criar algo original”, diz Willer.
O processo criativo de Roberto Piva deve muito aos métodos surrealistas de escrita automática e ao fluxo de consciência beat, trazendo à tona impulsividade e espontaneidade poética. “É um tipo de poesia ditirâmbica, inspirada, que recebe influxos irracionais e os sentidos se derramam sobre as coisas. Ele mesmo colocava a poesia como uma manifestação irracional, incontrolada e por vezes violenta da própria palavra, como se ele não tivesse controle sobre si mesmo”, explica Pécora.
Entre os frequentadores desse grupo, era comum a escrita conjunta, usando práticas surrealistas, como o jogo “cadáver delicado”, em que cada participante escrevia um trecho aleatório do poema. A artista plástica Maninha Cavalcante participou bastante desses processos criativos e chegou a dividir o espaço de um ateliê com Piva.
“Ele me chamava de fruta do conde e diversas vezes me telefonava no meio da madrugada. Geralmente ele tinha acabado de escrever um poema e queria ler pra saber a minha opinião ou simplesmente queria narrar as coisas que aconteceram durante a sua bebedeira na rua”, relembra Maninha.
lugar ao sol
A vida desregrada, as experiências lisérgicas e alcoólicas, e o homoerotismo também marcaram as imersões poéticas e existenciais de Piva. “Ele era um cara polimorfo, que atuava num gradiente que ia da extrema doçura à violência quando necessária.
O Piva dos tempos heroicos era um ser excessivo, no bom sentido da palavra”, brinca Roberto Bicelli. No entanto, por mais que toda impulsividade marcasse os seus versos, Roberto Piva revela em sua obra um domínio dos recursos estilísticos.
“Há um processo de estruturação que ele dominava completamente. Essa poesia exaltada não era uma poesia largada. Ele tinha de fato um talento como escritor, com conhecimento da linguagem, que se evidencia tecnicamente, nos processos rítmicos e nas medidas”, detalha Pécora.
Da mesma forma, a ânsia libertária de Piva nunca fez com que ele flertasse com a morte jovem ou tivesse períodos mais depressivos, como um possível neorromântico. “Ele tinha uma fortíssima apetência de vida e ele foi um nietzschiano desde sempre, tinha vontade de potência”, diz Franceschi.
Sua última fase é marcada pela aproximação da essência xamânica da vida e pelo apego à natureza. “O Piva era absolutamente solar, levantava muito cedo e tinha horror a gente depressiva. Ele era muito vital e alegre”, conta Maninha Cavalcante.
Por mais que tenha sido uma lenda urbana e um artista muito notório no meio, a grandeza poética de Roberto Piva somente agora vem conquistando o devido reconhecimento. “O Piva nunca foi ligado a lobbys e jamais cortejou mídia nenhuma, assim como todos desse grupo, marcado por uma atitude comum de dizer não para certas coisas”, afirma o cineasta Ugo Giorgetti.
No entanto, mesmo alheio aos esquemas da política literária, Roberto Piva já se consolidou como um dos mais importantes poetas brasileiros. “A poesia dele é estupenda, e acho que está no primeiro escalão dos poetas pós-concretos, dessa geração mais contemporânea”, afirma o crítico literário Alcir Pécora. Para o amigo Antonio Fernando De Franceschi, “o Piva só vai crescer, porque ele é um personagem poliédrico, de diversas vertentes.
Eu sempre disse para ele que de todos nós ele teve a marca de uma poesia forte, libertária e que fica”. Já Roberto Bicelli vai além nos elogios ao poeta: “Daqui a cem anos, irão falar dele pela qualidade da obra e também pela singularidade da vida. Desde que conheci a poesia dele, nunca abri mão de considerá-lo o maior poeta brasileiro. Essa é minha opinião”.
Poesia em movimento
Companhia de Danças de Diadema cria espetáculo Paranoia inspirado na obra do poeta
Logo após ser lançado como poeta, na Antologia dos Novíssimos, editada por Massao Ohno, Roberto Piva faz sua estreia literária solo com Paranoia (1963), ainda hoje o seu livro mais conhecido e lembrado também pelas ilustrações e fotografias do artista plástico Wesley Duke Lee. “Ele foi muito referido a partir do Paranoia, que é uma obra impecável e absolutamente essencial. É um marco para uma geração inteira”, afirma o amigo e poeta Antonio Fernando De Franceschi.
É após conhecer Roberto Piva, através de amigos em comum, que a coreógrafa Ana Bottosso resolve ler Paranoia, em 2007. “Achei uma poesia muito coreografável, imagética e isso já me transportava para um universo de movimento e de cenas que me agradavam muito”, conta. Então, em 2009, o próprio Piva a presenteia com uma nova edição do livro e sugere a criação de uma coreografia.
“Achei ótimo, pois uniu o meu desejo anterior com o pedido dele, quando já estávamos mais próximos.” A partir desse aval do próprio autor, Ana inicia o desafio criativo de transpor imagens poéticas muito intensas para a linguagem corporal da dança. “Eu pensava, desde o começo, que a movimentação tinha que ser forte, direta, com uma energia contida.”
Nasce, assim, o espetáculo Paranoia (foto, apresentado no Sesc Vila Mariana, nos dias 5, 6 e 7 de agosto, e na Casa das Rosas, nos dias 1 e 2 deste mês. Para compor a trilha sonora e as sonoridades que acompanham a coreografia, foi convidado o Grupo Experimental de Música.
“Eu já os conhecia e achava que seria muito pertinente o trabalho deles para a coreografia, porque utilizam sons muito urbanos, e Paranoia fala muito da São Paulo da madrugada, dos seres mais solitários. Eu via um andarilho, que vagava pela cidade, e ia criando imagens”, explica Ana.
A presença da metrópole alucinada, capaz de gerar sentimentos contraditórios e imagens brutalmente poéticas, é a marca da obra inaugural de Piva. “Ele tinha uma relação de amor e ódio com a cidade e isso aparece muito claramente no livro”, explica o poeta e amigo Roberto Bicelli.
Confraria literária
Nos anos 1960 e 70, um grupo de artistas buscou atuar intensamente na metrópole
Antonio Fernando De Franceschi: filósofo e poeta, publicou Tarde Revelada (Brasiliense, 1985), Caminhos das Águas (Brasiliense, 1987), Sete Suítes (Companhia das Letras, 2010), entre outros. Claudio Willer: poeta, ensaísta, tradutor, publicou, entre outros, Anotações para um Apocalipse (Massao Ohno, 1964) e Estranhas Experiências (Lamparina, 2004).
Décio Bar (1943-1991): poeta, escritor e jornalista, integrou a Antologia dos Novíssimos (Massao Ohno, 1961). Suicidou-se, em 1991, aos 48 anos, e teve publicado postumamente o volume Escritos – Décio Bar (Scortecci Editora, 2008).
Guilherme de Faria: pintor, desenhista, gravador em metal, litógrafo e escritor, com mais de 50 anos de carreira. Desde 2001, também compõe cordéis.
Maninha Cavalcante: artista plástica surrealista, ilustradora da primeira edição brasileira de livros como Uma Temporada no Inferno, de Arthur Rimbaud e Os Cantos de Maldoror, de Conde de Lautréamont.
Massao Ohno (1936-2010): editor e artista gráfico, inovou com um trabalho meticuloso e artesanal. Com a Antologia dos Novíssimos (1961), lança poetas como Claudio Willer, Roberto Piva e Antonio Fernando De Franceschi. Faleceu em 2010.
Raul Fiker: filósofo, escritor e poeta, publicou, entre outros, O Equivocrata (Massao Ohno, 1976), com capa e ilustrações feitas pela artista plástica Maninha Cavalcante; e Vico, o Precursor (Moderna, 1994).
Regastein Rocha: um dos primeiros editores de livros de arte no Brasil, era o fotógrafo do grupo, apesar de nunca ter exposto seu trabalho. Esteve à frente da gráfica Praxis.
Roberto Bicelli: poeta e romancista, é autor da coletânea poética Antes que eu me esqueça (Feira de Poesia, 1977). Seu mais recente livro, EgoTrip – viajo e celebro a mim mesmo, será publicado pela editora Livros de Safra – Virgiliae.
Rodrigo de Haro: poeta, artista plástico e mosaicista, é membro da Academia Catarinense de Letras. Publicou, entre outros, Ilha da Labareda (Massao Ohno, 1991) e Andanças de Antônio: Poesia (Insular, 2005).