Postado em 20/10/2010
Monotonia. Essa palavra já foi muito usada para descrever o interior de São Paulo, cuja paisagem estava associada apenas à vida bucólica: das pracinhas pouco movimentadas, da conversa duradoura entre vizinhos, do mar verde de cana-de-açúcar a perder de vista no horizonte. Não que a paisagem mencionada tenha deixado de existir. Mas o cenário no interior paulista – e também em outras partes do Brasil – sofreu um rearranjo de várias ordens e uma delas foi sua agenda cultural, significativamente fortalecida.
Vários fatores contribuíram para a nova configuração. E estão relacionados à economia, ao crescimento populacional nas cidades, aos projetos e iniciativas implementados. As siglas das universidades que lá se espalharam – como USP (Universidade de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), entre outras – também foram determinantes para estender o campo cultural.
Para o professor de Ética e Filosofia na Unicamp, Roberto Romano, as variadas áreas do saber serviram estrategicamente para a modernização cultural no interior. O especialista indica os institutos da Unesp (Universidade Estadual Paulista), por exemplo, como atores fundamentais nesse processo. “Os institutos formavam físicos, biólogos, agrônomos, matemáticos e, ao mesmo tempo, muitos artistas, literatos e músicos”, lembra Romano. “Essa estrutura possibilitou a progressão das linguagens artísticas, trouxe a cultura internacional ao interior e a difundiu fortemente na região a partir de 1960.”
Caminho das pedras
Não se pode negar que o desenvolvimento do calendário cultural no interior está diretamente ligado ao desenvolvimento econômico e social. Toda a infraestrutura que compreende as universidades, empresas e estradas tem ajudado a consolidar o acesso à cultura. Além disso, o fortalecimento dos projetos – sobretudo os itinerantes – beneficia muitas cidades paulistas.
Uma dessas propostas permitiu levar a Sala São Paulo da capital ao interior do estado. É o que faz a Osesp Itinerante, ao proporcionar atrações musicais gratuitas à população de 19 cidades. Somam-se concertos sinfônicos ao ar livre, oficinas com músicos da orquestra, cursos de apreciação musical e apresentações dos grupos de câmara e do coral da Osesp. “Percebemos que a Orquestra Sinfônica tem muitos fãs espalhados pelo estado e estão cada vez mais sedentos por música clássica”, avalia o maestro Antônio Carlos Neves, coordenador dos programas educacionais da instituição. “Por isso, nunca abrimos mão da qualidade musical mesmo com todo o esforço de logística empregado para chegar até eles.”
As apresentações da Osesp Itinerante contam com a parceria do Sesc São Paulo (conheça outras iniciativas no boxe Circuito Sesc de Artes). Depois de a turnê no ano passado alcançar mais de 100 mil pessoas no estado, não há dúvida quanto aos impactos positivos gerados. “Muitas cidades, principalmente as pequenas, recebem o Itinerante como o principal evento cultural da região”, acredita o diretor artístico da Osesp, Arthur Nestrovski. “O projeto atrai público das cidades vizinhas promovendo um intercâmbio entre estudantes e músicos da região. É impossível descrever o que representa para os jovens que sonham com a profissão o contato com uma orquestra como a Osesp e a chance de ouvir relatos dos músicos.”
O público, porém, não é o único a ganhar com as ações descentralizadas. Artistas e grupos começam a ter chance de aproveitar melhor esse cenário construído. Um exemplo é o Mapa Cultural – iniciativa mantida pela organização social Abaçaí e o governo do estado de São Paulo, que tem promovido uma vitrine da produção artística do interior. Desde 1995, ele seleciona trabalhos de 13 regiões paulistas divididos por categorias. “Todos os municípios podem ser representados por grupos e linguagens artísticas nas fases de seleção do projeto”, explica a produtora Vívian Maria Pereira, apontando mais de 200 cidades inscritas e identificadas por manifestações artísticas.
“Caso o trabalho do artista seja selecionado, ele passa a ser apresentado em diferentes cidades, além de compor mídias ou antologias literárias, dependendo do seu trabalho. A prioridade é revelar valores que têm pouca visibilidade no circuito e, ao mesmo tempo, mostrar para a capital paulista o que tem sido produzido fora dela.”
Bons hábitos
O público do interior paulista tem se ampliado de modo expressivo a cada boa oferta de programação a que tem acesso. Isso pode ser comprovado por iniciativas como a da CPFL Cultura, que tem oferecido há sete anos uma programação composta de debates, saraus, exposições, cinema e performances teatrais nas cidades de Bauru, Campinas, Caxias do Sul, Ribeirão Preto, Santos, Sorocaba, sem contar a própria capital. Mais de três mil atividades foram realizadas, atraindo aproximadamente 428 mil espectadores – segundo números da CPFL Energia. “O programa da CPFL Cultura prima pela multiplicidade, pelo diálogo e pela diferença”, destaca o diretor de comunicação da instituição, Augusto Rodrigues. “E busca cruzar as fronteiras dos públicos, das disciplinas e das ideologias para refletir e inventar o contemporâneo.”
Segundo Rodrigues, o vigor cultural existe na região, mas ele não está conhecido em sua plenitude. Este é o motivo pelo qual a própria CPFL prepara um projeto para evidenciá-lo. “A produção cultural continua pouco conhecida em determinados locais e, por isso, decidimos patrocinar uma pesquisa sobre os hábitos culturais dos paulistas”, adianta o diretor. “O trabalho está sendo conduzido pelo Datafolha e pela Fundação Getulio Vargas, e o resultado será divulgado neste ano através de relatórios e seminários.”
À medida que as propostas se tornam conhecidas, mais espectadores e intelectuais se aproximam. Essa combinação ?reflete a diminuição da distância entre a oferta de atividade cultural do interior e a da capital paulista. “Tanto que nos anos de 1990 um nível elevado dos trabalhos artísticos e tecnológicos foi notado e a agenda cultural interiorana é quase autônoma e igual à de São Paulo”, aponta Roberto Romano, da Unicamp. “Embora a hegemonia da capital ainda prevaleça, muitos municípios demonstram produções e trabalhos relativamente consolidados.”
Em locais remotos
A divisão entre capital “avançada” – do ponto de vista cultural e tecnológico – e interior “atrasado” tende a desaparecer por completo em São Paulo. Entretanto, em regiões do Brasil onde os índices sociais e culturais permanecem sensivelmente baixos, a relação é ainda muito desigual. Com o objetivo de contribuir para a difusão de conhecimento e cultura nesses locais surgem projetos como a Expedição Vaga Lume, criada em 2001, que já implantou 138 bibliotecas comunitárias em 23 municípios na região da Amazônia, segundo informações da instituição.
De acordo com Ana Helena Oliveira, uma das responsáveis pelo desenvolvimento e comunicação institucional da associação sem fins lucrativos, a Vaga Lume trabalha para oferecer oportunidades culturais. “Não alfabetizamos os participantes, porém temos como objetivo ampliar o acesso à leitura, à escrita e à oralidade”, afirma. “Ainda tentamos proporcionar o máximo de intercâmbio de conhecimento sobre a diversidade do meio ambiente e da cultura nas comunidades.”
Para minorar tanto a exclusão cultural quanto a esportiva, uma parceria entre o canal esportivo ESPN e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) permitiu a elaboração de duas propostas: a Caravana do Esporte e a Caravana da Música. “Trata-se de duas metodologias desenvolvidas por grupos de professores, mestres em educação e coordenadores pedagógicos que fazem a capitação e as atividades com as crianças”, relata Adriana Saldanha, diretora dos projetos. “Trabalhamos com dança, circo, artes plásticas, teatro e literatura, sempre mantendo o olhar especial sobre a identidade brasileira.”
O projeto Caravana da Música, parceiro do Instituto Sol da Liberdade (ISL), percorre a cada mês um município do interior do Brasil – sobretudo nas regiões do semiárido, da Amazônia, das comunidades indígenas e das periferias nos grandes centros urbanos. As metas por ele apresentadas visam garantir o direito à cultura a toda criança – conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
“Todos esses esforços realizados em comum contribuem para a construção da identidade da criança e do adolescente, a partir do desenvolvimento de suas potencialidades”, enfatiza Adriana. “Os próprios locais em que elas vivem e sofrem interferência servem como elementos para trabalhar suas manifestações socioculturais e esportivas no dia a dia.”
Sementes e colheitas
Enquanto existem propostas a percorrer diversas regiões para semear a cultura, outras localidades já colhem resultados satisfatórios. O município de Paulínia é um deles. A cidade emerge como centro cultural a 120 quilômetros de distância da capital paulista. Sede de um dos maiores polos petroquímicos da América Latina, abriga inúmeros festivais e atrai público de todos os cantos, além dos seus 90 mil habitantes.
O Festival de Cinema tem sido atração concorrida, tanto que mobilizou – em sua terceira edição, em julho – mais de 300 profissionais durante sete dias. A cidade, como não poderia ser diferente, abraça a causa e comparece com média de mil pessoas por sessão. Isso sem contar os frequentadores dos debates e workshops realizados. “Elaboramos uma programação que dialoga com a mídia especializada e principalmente com o público”, comenta Ivan Melo, curador do festival. “O evento é um acontecimento diferente na cidade, cria expectativa em torno dos participantes e fortalece o cinema brasileiro fora das grandes capitais.”
Tendo o cinema como carro-chefe, Paulínia aproveita os frutos obtidos e estabelece uma mudança perceptível na relação de identidade da cidade. De acordo com o secretário de Cultura, Emerson Alves, os munícipes têm se interessado também por todos os demais projetos culturais da pasta. “O interesse pela cultura tem crescido de forma espetacular no município. O curso de teatro é o mais frequentado – com mais de 500 inscritos, seguido por cinema, dança e música”, afirma. “Além do cinema, os concertos internacionais e as apresentações realizadas em nosso teatro impactam o interesse das pessoas em conhecer e consumir cultura.”
Os fatores socioeconômicos – como ocorre em Paulínia – ajudam a ampliar a agenda cultural. Mas, embora os projetos e os investimentos sejam essenciais para as novas formas de produção artística e lapidação de talentos, nada poderia vingar se não houvesse antes um trabalho de base. “Claro, porque nada aparece do nada”, enfatiza Roberto Romano. “Os projetos só são fortalecidos quando existe um público formado para recebê-los, conforme começou a ser feito lá atrás pelas faculdades.”
Raio-x CULTURAL
No mapa, encontre algumas cidades do interior de ?São Paulo que disponibilizam atividades culturais ?em diferentes épocas e locais
São José do Rio Preto
Evento: Festival Internacional de Teatro (FIT)
Mês: julho
Local: diversos pontos da cidade
Araraquara
Evento: Festival de Dança
Mês: setembro
Local: diversos espaços da cidade
São Carlos
Evento: Festival Multimídia de Rádio, TV, Cinema e Arte Eletrônica
Mês: outubro (este ano, de 7 a 12)
Local: Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Embu das Artes
Evento: Anuário Embu das Artes 2010 – 27º Salão de Artes
Mês: setembro a novembro
Local: Parque do Lago Francisco Rizzo
Ribeirão Preto
Evento: Sarp – Salão de Arte de Ribeirão Preto Nacional
Mês: agosto
Local: Museu de Arte de Ribeirão Preto
Pedro Manuel-Gismondi
Limeira
Evento: Festival Paulista de Circo
Mês: abril
Local: vários pontos da cidade
Americana
Evento: Festival de Teatro de Americana
Mês: setembro
Local: Teatro Municipal Lulu Benencase
Campinas
Evento: Festival Internacional de Leitura de Campinas (FILC)
Mês: maio
Local: diversos espaços da cidade
Campos do Jordão
Evento: Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão
Mês: julho
Local: diversos espaços da cidade
Monteiro Lobato
Evento: Festival de literatura infantil
Mês: setembro
Local: Praça Deputado Cunha Bueno e na biblioteca pública do município
Santos
Evento: Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas
Mês: setembro
Local: unidades do Sesc São Paulo e vários pontos da cidade
NA ESTRADA
Ação cultural contempla 88 cidades, simultaneamente, durante 16 dias de apresentações
Quem aprecia uma programação cultural de qualidade e mora no interior, terá motivos de sobra para comemorar. A partir do dia 19 deste mês até 7 de novembro, o Sesc São Paulo vai levar o Circuito Sesc de Artes a 88 cidades do estado. Os seis roteiros do projeto preveem a realização de diversas atividades – no campo das artes visuais, circo, dança, literatura, música, teatro e artemídia. “O formato do Circuito é semelhante à caravana circense”, compara o assistente da Gerência de Ação Cultural (Geac) do Sesc São Paulo e coordenador do Circuito Sesc de Artes 2010, Sérgio Pinto. “Todos os roteiros possuem a mesma infra-estrutura técnica, de palco, som, iluminação, projeção e tenda para a realização de oficinas.”.
O Circuito nasceu junto com a Mostra Sesc de Artes, para levar os destaques da programação deste evento da capital às unidades do interior, e também às cidades do entorno das unidades. O primeiro formato da iniciativa surgiu ainda em 1998, com o projeto Lorca na Rua, composto de três comboios que saíram da Praça da Sé rumo a 75 cidades do estado de São Paulo. A expedição, que percorreu mais de seis mil quilômetros, homenageou o centenário do escritor e poeta espanhol Federico Garcia Lorca com apresentações de peças baseadas nas obras e na figura do próprio poeta.
Já nas últimas edições da Mostra Sesc de Artes em 2007 e 2008, a programação do interior se descolou da capital e ganhou programação e identidade própria. Com isso, o Circuito virou um projeto distinto para a circulação da produção artística no interior, no litoral e na Grande São Paulo. “Cada uma das unidades no interior atende de quatro a oito cidades no entorno”, informa Sérgio.
Contando apenas com atividades externas, o Circuito Sesc de Artes é considerado um momento de suspensão. Por meio dele, procura-se incorporar tanto espetáculos quanto intervenções que estimulem a recuperação do imaginário da praça pública como espaço de convívio entre as pessoas. “As atividades buscam, sobretudo, atrair o olhar do espectador sobre a própria cidade, não é uma missão civilizadora de levar cultura ao interior”, diz Sérgio. “Essa intervenção provocada pelo Circuito é uma forma de gerar uma autopercepção do cotidiano e do novo olhar acerca do espaço onde se vive.”
Acompanhe o roteiro completo do Circuito no site www.sescsp.org.br/circuito