Postado em 03/03/2011
Poeta herdeiro do movimento Beat dos anos de 1960, Claudio Willer mantém até hoje profícua produção literária. Publicou Um Obscuro Encanto – Gnose, Gnosticismo e Poesia Moderna (Civilização Brasileira, 2010); Geração Beat (L&PM Pocket, 2008); Lautréamont – Os Cantos de Maldoror, Poesia e Cartas (3ª edição, Iluminuras, 2008); e Estranhas Experiências (Lamparina Editora, 2004), entre outros.
Todo o esforço de sua geração foi afirmar a poesia como parte integrante da vida, eliminando antagonismos que separam a literatura do cotidiano. Willer afirma durante entrevista para a Revista E passar longe daquilo que define como visão burocrática da literatura.
“Não sou poeta do tipo cerebral, não pertenço à família dos poetas inteligentes, evito interpretar o que escrevo”, declara. Ao mesmo tempo, preza manter-se em contínuo polo de tensões. Acredita que poesia se faz pela diversidade e segue contra fórmulas preestabelecidas pelo mainstream.
Seu livro Um Obscuro Encanto – Gnose, Gnosticismo e Poesia Moderna, lançado em 2010, é resultado de sua tese de doutorado. Qual a implicação do gnosticismo com a poesia e o que esse assunto tem a ver com sua aventura intelectual?
Estabelecer essa relação direta do gnosticismo com a poesia seria uma boa tarefa para críticos e leitores. Como não sou poeta do tipo cerebral, como não pertenço à família dos poetas inteligentes, evito interpretar muito o que escrevo. O tema gnosticismo, a religião segundo a qual o mundo é regido por um deus incompetente e obtuso e segundo a qual a salvação é alcançada através do conhecimento, é um tema que me acompanha mais do que pensava.
Meses atrás, fui convidado para dar uma palestra sobre Hilda Hilst [1930-2004] em um evento literário em Campinas. Encontrei um texto de 1987, que tinha escrito para a revista Isto É, uma resenha de Com os Meus Olhos de Cão, coletânea de textos em prosa da Hilda. Para minha surpresa, desde aquela época já a relacionava com o gnosticismo, por causa das representações de Deus em sua obra, das blasfêmias, da procura de um conhecimento identificado à revelação poética.
Nessa ocasião, a mesa de que participei era formada pelo jornalista Gutemberg Medeiros, amigo e frequentador da poetisa. Ele me contou que, quando essa resenha saiu, ela leu e disse: “É, esse aí me entendeu”. Ou seja, essa abordagem do gnosticismo é um percurso de críticas, de interpretação de textos que vem de antes. Juntei pedaços, fragmentos, até compor esse livro atual.
A primeira parte de Um Obscuro Encanto faz um apanhado histórico, tomando posição nas várias interpretações possíveis sobre o tema, visto que foi uma doutrina muito presente nos primeiros séculos da era cristã. Na segunda parte do livro, examino como é o gnosticismo em diferentes poetas, de William Blake a Hilda Hilst, passando por Gérard de Nerval, Novalis, Charles Baudelaire, Fernando Pessoa, Arthur Rimbaud [poeta francês, 1854-?-1891], entre outros.
Já houve quem estabelecesse relações entre aspectos das obras desses poetas e características do gnosticismo, orém meu ensaio contribui na medida em que revela que todos eles assimilam ou releem o gnosticismo de um modo completamente diferente, mostrando que a poesia é o reino da diversidade, da heterodoxia, assim como a própria doutrina gnóstica.
Qual a semelhança entre Rimbaud e Pessoa, um francês e um português que viveram em períodos não tão distantes?
A distância entre eles é de uma geração. São antagônicos, por isso digo que a poesia e o gnosticismo são o reino da diversidade. Pessoa é extremamente cerebral, racionalista, ao mesmo tempo envolvido com ocultismo e doutrinas esotéricas. Ao mesmo tempo, manifesta uma dúvida constante quanto à possibilidade da revelação, da transcendência da gnose. Pessoa é pesadamente pessimista.
Já o Rimbaud da Carta do Vidente é de um messianismo visionário. Ele anuncia um novo tempo, aquele dos horríveis trabalhadores do futuro que prosseguirão com a sua obra, e declara que é possível a vidência, através do desregramento dos sentidos. Mas chega a um impasse, vê que sua poética não vai se projetar no real, ao menos imediatamente, e abandona a poesia.
Mas são percursos diferentes, linguagens e formas de expressão bem distintas. É impressionante a clareza de Pessoa e o modo como Rimbaud se expressa de uma forma cada vez mais hermética, o que não impede uma série de paralelos. A comparação literária se faz observando afinidades e diferenças entre poetas.
Você fez ensaios críticos sobre o que classifica como literatura de criatividade ou autores ligados a uma indústria cultural de marginais. Aí temos a ligação com Rimbaud e com Lautréamont, que você trouxe para o Brasil numa edição dos anos de 1970. Depois você estabelece uma ligação com os surrealistas e beatniks. Essa ligação com a literatura criativa é um projeto?
Geração beat e surrealismo até hoje são muito mal aceitos no Brasil. Acho que tenho uma vocação para a provocação. Tendo a me relacionar com aquilo que questiona, que provoca, que contesta ou que desagrada ao que está estabelecido. Tive muita sorte, há como que um acaso objetivo, forças imperceptíveis, misteriosas, que regem minha trajetória intelectual.
Muito disso em que se constitui o meu currículo aconteceu por acaso, como a ligação com Lautréamont [pseudônimo de Isidore-Lucien Ducasse, escritor de língua francesa, 1846-1870], que traduzi, retraduzi, sobre o qual escrevi tanto. O Lautréamont, da primeira vez, foi uma encomenda assim como Antonin Artaud [diretor de teatro francês, poeta e roteirista, 1896-1948].
Em 1970, Inácio Araújo teve a iniciativa de propor ao editor Adib Nader que publicasse uma tradução dos Cantos pela editora Vertente. Nessa época, ganhei páginas inteiras na Veja, com Adilson Ribeiro, e no Jornal da Tarde, com Geraldo Galvão Ferraz. Sem contar que todos os modernistas o conheceram coincidentemente com a visita de Rubén Darío [poeta nascido em Nicarágua (1867-1916), ligado ao simbolismo, exerceu atividade jornalística] ao Brasil no começo do século 20.
O país recalcou o simbolismo, por causa disso Lautréamont não emergiu tanto aqui como em países de língua espanhola, onde era importante desde o final do século 19, graças à propaganda feita por Darío, o modernizador das literaturas de língua espanhola. Algumas estrofes de Os Cantos de Maldoror foram publicadas em 1903 no Brasil, numa revista simbolista muito sintomaticamente chamada de Rosa-Cruz.
E todos os modernistas se impressionavam vivamente. Jorge de Lima [poeta alagoano (1893-1953), viveu no Rio de Janeiro a partir da década de 1930] o cita, e Murilo Mendes [poeta mineiro (1901-1975), viveu no Rio de Janeiro a partir da década de 1920], em seu poema em homenagem a Jorge de Lima, dirige-se a ele como “meu irmão em Lautréamont”.
Isso continua com Campos de Carvalho [escritor mineiro (1916-1998), sua obra, para muitos críticos, está ligada ao nonsense, próxima da escrita surrealista] e muitos outros. Para traduzi-lo, é preciso saber literatura. A questão em Lautréamont foi definir um tom, uma dicção, um estilo. Encontrei esse estilo na terceira versão da tradução, seguindo a paródia e a ironia no autor.
Isso foi elogiado, entre outros, pelo Ivo Barroso, que não brinca em serviço como crítico e que recentemente escreveu sobre o tom clássico da minha tradução. Problema técnico de tradução enfrentei com Allen Ginsberg [poeta beat norte-americano, 1926-1997], por causa da necessidade de conseguir equivalências, correlatos prosódicos no plano da manifestação sonora entre línguas tão diferentes.
Com ele aprendi o som. Minha tradução flui bem quando é lida em voz alta. Descobrimos como negociar seus direitos autorais e hoje constam oito edições da minha tradução do autor norte-americano, mais os ensaios sobre a geração beat.
Antonin Artaud é mais vivamente rejeitado. Como é a sua ligação com a obra do escritor?
A relação de Artaud com o surrealismo, especialmente com André Breton [poeta francês (1896-1966), escreve o Manifesto do Surrealismo em 1924, inaugurando oficialmente o movimento], é bipolar e ambivalente. Houve, e muitos críticos do surrealismo não reparam nisso, afastamentos e aproximações.
Quando Artaud foi ao México, em 1938, intitulava-se e deu palestras como surrealista. Naquela época havia se reconciliado com André Breton, mas o caminho de Artaud era rigorosamente individual. Jamais faria parte regularmente de grupo nenhum.
Dizia que “todo ato individual é antissocial”. Nós temos problemas, aqui, com o surrealismo e com a geração beat, mas Lautréamont foi muito bem assimilado nos últimos anos pelos estruturalistas e pelos pós-estruturalistas, e Artaud também. O escritor francês caiu no gosto de semióticos, de vanguardistas. Como parte dessas distorções brasileiras, uma delas o hiperteoricismo e cientificismo literário – o costume de estudar a teoria antes de ler os autores.
Escritos de Antonin Artaud [L&PM, 1983] até agora é meu livro mais vendido. Depois disso houve muitas teses, muitos trabalhos ensaísticos aproveitando a minha contribuição. Saíram apenas três edições por dificuldades criadas pela Gallimard e por sucessores do escritor, por questões de direitos autorais.
Você atuou como aproximador dos surrealistas no Brasil. Você acha que o ideário surrealista ainda incomoda, por conta das ditas questões do ?inconsciente na literatura e do comportamento provocativo?
Sem dúvida; há indícios em um artigo recente do Antônio Cícero. Ele acertou ao diagnosticar a propensão concretista da intelectualidade brasileira pelo moderno, percebendo correspondências com um recalque do arcaico. A exceção é o primitivismo do Oswald de Andrade e outros modernistas.
O Brasil recalca o arcaico, o tradicional. Surrealismo e geração beat são manifestações muito modernas, caracterizadas em um paradoxo apenas aparente pelo retorno ao arcaico, ao pensamento mítico, ao mundo mítico e ao pensamento mágico. A base, tanto do movimento beat como do surrealismo, são mitologias arcaicas, são modos de pensar de culturas primitivas, de sociedades tribais.
A base é o pensamento analógico, que se choca com um “arracionalismo” superestrutural da intelectualidade brasileira. Há uma espécie de programa que João Cabral de Melo Neto [poeta pernambucano, 1920-1999] propôs, em meados dos anos de 1940, de uma poesia brasileira que se comunicasse, que fosse bem discursiva, embora num modo conciso e preciso.
Esse projeto cabralino, cujos seguidores ironicamente chamo de poetas inteligentes, foi adotado de modos diferentes pela vertente engajada, pela vertente militante da poesia e pelos concretos. Todos são fortemente anti-irracionalistas. Evidentemente, irracionalismo é um termo preconceituoso porque no delírio, no sonho, na loucura não há propriamente irracionalidade.
O que há é uma outra razão. Um outro discurso, com sua própria lógica, um outro discurso que também é rigoroso. Identificar o surrealismo e outras manifestações como arbitrárias e consequentemente gratuitas é preconceito cartesiano.
Como se dá sua aproximação com os autores beat?
A minha criação literária, num primeiro momento, não foi tão tocada assim pelo movimento beat. Roberto Piva [poeta paulistano, 1937-2010] foi uma espécie de ideólogo da provocação e da subversão, mobilizando uma quantidade enorme de informação – o responsável direto por ter contato com alguns desses autores. Como um dos capítulos dessa contribuição enorme, lembro dele aparecer em casa em meados de 1961 com uma pilha de autores beat.
Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso e outros que tinha feito trazerem dos Estados Unidos, autores publicados pela City Light Books. O Piva definiu a dicção literária dele combinando beat com surrealismo, ele mesmo designa o Paranoia [livro escrito por Roberto Piva em 1963] como beat surreal. Ele aprendeu a ler inglês praticamente lendo esses autores.
Paranoia é extremamente ginsbergiano, tem quase que transcrições, paráfrases, alguma coisa de Corso combinada com o Lorca [Federico Garcia Lorca (1898-1936), escritor espanhol] apocalíptico de Poeta em Nova York. Ele combinou tudo isso de um modo pessoal e apresentou um novo modo de expressar-se na poesia brasileira, algo que, na época e durante décadas, ninguém reparou. Atualmente, escrevo um ensaio extenso sobre geração beat e místicas da transgressão.
O texto focaliza muito Jack Kerouac [poeta ?norte-americano (1922-1969), seu livro On the Road o consagrou como um dos porta-vozes da Geração Beat dos anos de 1960]. Cada vez mais me convenço de que Kerouac é um colosso literário, dos grandes narradores e poetas do século 20. Aconselho aos que ainda têm dúvida que aguardem e leiam esse ensaio com o carinho que eu espero que mereça.
Ao se tratar de literatura no Brasil, o grupo menos deglutido é o da geração beat. Por que isso ocorre, embora o sucesso na música seja maior para aqueles que buscam referências no movimento?
Serve como um diagnóstico dos gravíssimos problemas educacionais brasileiros, do que eu tenho apontado como a burocratização do ensino de Letras. É claro que burocratas jamais seriam capazes de apreciar um bom texto beat. Na universidade tem muita gente boa, caso contrário não conseguiria me relacionar com esse universo.
Quando me inscrevi no curso de doutorado, meu orientador de tese, Benjamin Abdala, comentou que era bom eu voltar para a universidade de São Paulo para estimular o debate acadêmico. Acho que eu tenho correspondido, ou tenho tentado corresponder a essa expectativa. Na música a aceitação é boa, porque há muitos ouvintes de Bob Dylan, Jim Morrison, Grateful Dead [banda de rock formada em meados da década de 1960].
A crítica brasileira, salvo raras exceções, anda muito tacanha. Tenho lido cada bobagem sobre o movimento. Alguns rapazes da “nova crítica brasileira” estão repetindo as avaliações preconceituosas feitas em 1950 nos Estados Unidos. Beat foi o movimento literário mais atacado pela crítica. Como exemplo, Norman Podhoretz ao dizer que o culto à espontaneidade dos beat suprimia a distinção entre literatura e vida.
Allen Ginsberg lia isso dando risada, observando que o que eles queriam era justamente superar o antagonismo entre literatura e vida, chegar a uma síntese. Sob esse aspecto, eles eram neorromânticos. Lamentavelmente vemos, volta e meia, aspirantes a críticos repetindo esses chavões mais de meio século depois.
É entristecedor e corresponde a uma espécie de circularidade da crítica literária brasileira, que tem empenho em demonstrar que sempre é possível piorar.
Você, Roberto Piva e outros da sua geração estão deixando de ser marginais para ser compreendidos, para ter sua poesia reconhecida dentro de um outro patamar?
A barreira entre marginalidade e aceitação é estabelecida por nós mesmos. Foi bem claramente estabelecida pelo Piva, pela sua recusa em praticar determinados modos de política literária, frequentar determinados ambientes, prestigiar determinadas figuras. Muitos jornalistas e professores escreveram bem sobre ele. Mas não os procurou, não bateu às portas das várias possibilidades de ampliação do prestígio literário.
Não nos ligamos a uma tradição literária brasileira, mas o problema central está na surdez brasileira para o não discursivo. A recusa de Paranoia não foi tanto pelas ousadias e palavrões, mas por não conseguirem entender nada daquilo.
De 1990 para cá, surgiu uma geração que está mudando esse registro não discursivo e que nos lê. Falta crítico, falta alguém que tenha a mesma relação com essa nova geração, no sentido de compilar, de mostrar, de acompanhar, tal qual Sérgio Milliet teve com a de 1945, ou que os concretos tiveram consigo mesmos.
“Acho que tenho uma vocação para a provocação. Tendo a me relacionar com aquilo que questiona, que provoca, que contesta ou que desagrada ao que está estabelecido”
“Cada vez mais me convenço de que Jack Kerouac é um colosso literário, dos grandes narradores e poetas do século 20”
“A poesia é o reino da diversidade, da heterodoxia, assim como a própria doutrina gnóstica”
“Roberto Piva foi uma espécie de ideólogo da provocação e da subversão, mobilizando uma quantidade enorme de informação – o responsável direto ?por eu ter contato com alguns dos autores da geração beat”.