Postado em 03/05/2010
Quase humanos
por Marcelo Finger
O engenheiro eletrônico e professor de ciências da computação no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da Universidade de São Paulo (USP) Marcelo Finger estuda uma área cada vez mais em moda: a Inteligência Artificial (IA). Autor dos livros Lógica para Computação (Thompson Pioneira, 2006), em parceria com Ana Cristina Vieira de Melo e Flávio Soares Corrêa da Silva, e Introdução à Computação para Administradores (Campus, 2009) – também em parceria com Flávio Soares –, Finger desenvolve em grupo uma série de projetos sobre o tão falado, mas ainda pouco conhecido tema.
“Técnicas de inteligência artificial são muito aplicadas na prática, mas as pessoas não sabem. Ela está embutida em diversos produtos”, destacou durante encontro organizado pelo Conselho Editorial da Revista E.
Finger tem sido atuante também no trabalho do desenvolvimento de software livre, como vice-diretor do Centro de Competência em Software Livre (CCSL) da Universidade de São Paulo (USP). Na conversa, o especialista fala sobre a ciência que estuda o fenômeno da inteligência humana e busca transferi-la para processos computacionais por meio da engenharia. A seguir trechos.
Inteligência artificial
O nome inteligência artificial tem uma aura. É um nome sexy e responsável pelo grande afluxo inicial de interesse e dinheiro para a área, que surgiu na década de 1960. A ideia básica dessa ciência é a seguinte: tentar resolver computacionalmente problemas simples que os seres humanos resolvem sem se dar conta. Como, por exemplo, colocar o celular no bolso da calça. Sair de casa e saber que o aparelho continua consigo. Isso parece absolutamente trivial, mas não é.
Ou, enquanto conversamos, sabemos que a cor do estofado não muda. Todos dirão que isso é óbvio, mas não é. Essa é uma questão dificílima. Saber que a cor do estofado não muda enquanto conversamos é um problema difícil porque há infinitas informações que não mudam enquanto conversamos, mas a nossa capacidade de inserir dados num computador é finita.
A inteligência artificial trabalha com a tentativa de fazer um computador se aproximar do comportamento humano e de averiguar como o cérebro soluciona os problemas. Qualquer criança de cinco anos, por exemplo, já sabe falar, aprender e compreender suficientemente até para desobedecer. Mas não sabemos por onde começa esse processo.
O cérebro humano armazena informações porque tem memória. Mas como ele guarda essas informações? Em bits [menor unidade de informação]? Em bytes [dado que especifica o tamanho ou quantidade de memória]? É na sinapse [relação anatômica entre dois neurônios vizinhos, com transmissão de impulsos nervosos de uma célula para outra]? É no neurônio? É um processo químico ou elétrico? Não se sabe ao certo, embora existam diversas teorias a esse respeito.
Semelhança do homem
No início da década de 1950, Alan Turing [teórico da computação, cujo centenário será comemorado em 2012] começou a se envolver com questões de inteligência. Ele propôs o teste pelo qual uma pessoa faz perguntas por escrito e obtém respostas da máquina e de outra pessoa. É um teste subjetivo que iguala a inteligência da máquina à de uma pessoa.
Se a pessoa não consiguir saber se está interagindo com uma máquina ou com outro ser humano, o computador vence. Inclusive há hoje competições sobre esse teste.
O xadrez é outro caso famoso de avaliação da inteligência das máquinas. Durante muito tempo, a área de inteligência artificial procurou criar um programa de xadrez que derrotasse o campeão mundial, o que aconteceu com Kasparov [Garry Kasparov, ex-campeão mundial de xadrez].
E foi injusto Kasparov perder do Deep Blue [supercomputador que competiu com o ex-campeão], já que a máquina tinha analisado todas as suas jogadas feitas na vida. O Deep Blue dispunha de um banco de dados enorme. Já o ex-campeão desafiava o computador pela primeira vez.
A vitória do Deep Blue foi uma vitória da inteligência artificial que traz no seu bojo uma grande derrota. Porque o intuito da pesquisa em inteligência artificial é compreender os processos humanos de raciocínio. Mas o computador combinou velocidade e capacidade de processamento de informação, sem entender ao certo como o cérebro humano se comporta. Previu vários lances à frente para ganhar do homem, mas não repetiu seu processo de decisão.
Estão entre nós
Técnicas de inteligência artificial são muito aplicadas na prática, mas as pessoas não sabem. Elas estão embutidas em diversos produtos usados a toda hora. Principalmente quando relacionados à computação e precisam ser adaptados a múltiplos ambientes. Por exemplo, a máquina que nos atende na companhia de telefone pede para esperar.
Em seguida nos solicita a dizer qual o problema. Aí dizemos: “problema na linha”. Ela responde que entendeu e informa que vai nos passar a um dos atendentes. Ou seja, o reconhecimento de voz aplica técnicas de inteligência artificial.
“O intuito da pesquisa em inteligência artificial é compreender os processos humanos de raciocínio. Mas o computador combinou velocidade e capacidade de processamento de informação, sem entender como o cérebro humano age”
Outro exemplo é o PC [sigla para computador pessoal] cujo hardware [a parte física do computador] não é fixo. Nele podemos combinar diversas coisas, como internet, alto-falante, placa de som, vídeo, entre outros tipos de disco. A inteligência artificial também está basicamente em todo sistema de controle de automação de fábricas.
Ameaça das máquinas
Certa vez, escrevi uma crítica sobre o filme AI [Artificial Intelligence: AI, de 2001, em português IA – Inteligência Artificial], do Steven Spielberg. Não vi esse filme, mas pensei sobre o assunto abordado por ele. A minha crítica falava sobre a angústia humana, com relação ao homem a ser dominado pela Ciência. Essa questão existe há muitos anos, desde o livro sobre Frankenstein [personagem-título do livro da autora inglesa Mary Shelley, escrito entre 1816 e 1817] – um ser humano no qual foi implantando um novo cérebro. E ele revive, tornando-se uma grande ameaça.
Tal ameaça ocorreu quando a tecnologia mecânica começou a se desenvolver, primeiro com a mecânica de Newton, depois com o advento dos carros, depois com os computadores, tendo os softwares por trás deles. Ou seja, à medida que a tecnologia progride – com o humanoide, o androide ou qual for o formato –, a angústia humana permanece frente à ameaça.
Clonar pessoas ou criar computadores que venham a nos controlar, no entanto, não me parece o caminho que as coisas irão tomar. Mas a angústia sempre irá existir. Isso, em ficção científica, vai sempre existir conforme a transmutação. Não vejo solução para essa angústia da dominação e do medo. Acho que faz parte da natureza humana, que é o que conta o filme AI.
Os bons contos do Isaac Asimov [escritor e bioquímico russo radicado nos Estados Unidos, autor de obras de ficção científica] são todos sobre a natureza humana, e não sobre as máquinas. Asimov narra contradições entre as leis do computador e a prática que as coloca em xeque – e a máquina não sabe o que fazer.
Mas essa angústia sobre conflitos e regras é humana.
E não da máquina. Os bons contos de ficção científica falam do homem, não da máquina. Ela está lá só para criar uma ambiance a esse respeito. A angústia vai continuar e os bons autores continuarão sabendo manipulá-la. ::
O especialista na área da inteligência artificial Marcelo Finger esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E em 19 de março de 2010