Postado em 06/11/2008
Número de museus cresce no país. Nos últimos oito anos foram abertos 300
ALBERTO MAWAKDIYE
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Das duas, uma: ou os brasileiros resolveram se livrar definitivamente da pecha de ser um povo desprovido de memória, ou foram tomados por uma repentina e inesperada paixão pela arte da museologia. Pois não há outra explicação para o fato de, principalmente depois da virada do ano 2000, os museus estarem se multiplicando no país à velocidade de cogumelos depois da chuva.
Os números são do próprio Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), ligado ao Ministério da Cultura, e é difícil não se impressionar com eles, quando se tem em conta a imagem de pouco-caso que o país sempre ostentou nessa área. O Brasil tem hoje, oficialmente, nada menos que 2.618 museus, dos quais cerca de 300 abertos de uns oito anos para cá. Meio século atrás, em 1959 – um ano não tão distante assim, em se tratando de um equipamento cultural caro e complexo como um museu –, eles não chegavam a 140. No começo do século 20, eram apenas dez.
“O crescimento realmente tem sido grande”, constata José do Nascimento Jr., presidente do órgão, que nasceu, aliás, das entranhas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) justamente para dar conta em nível federal dessa multiplicação. “Mais importante que a quantidade, porém, é a qualidade e a diversidade dos acervos. O Brasil deve ter hoje, somando-se todos os museus, ao menos 20 mil itens em exposição.”
De fato, os novos museus que vêm sendo montados através do país nem de longe limitam seu conteúdo à tríade clássica da museologia – história, arte e ciências naturais –, que dominou o cenário brasileiro até bem pouco tempo atrás e, de maneira geral, responde ainda pelo que de melhor o Brasil tem no segmento. Basta lembrar o magnífico Museu de Arte de São Paulo (Masp) ou o para lá de interessante Museu Biológico do Instituto Butantan, ambos na capital paulista, e o Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, todos eles referências brasileiras e mundiais.
A recente paixão brasileira pela museologia parece ser bem mais eclética e prosaica e pautar-se pela especialização. Uma curiosa preferência pelo recorte da realidade histórica em nichos ou temas ultra bem definidos multiplicou o número de acervos que privilegiam objetos de uso cotidiano e os mais diferentes tipos de máquinas, versando sobre processos tecnológicos e experimentos científicos, além daqueles que focam pequenas comunidades e expressões culturais ou que são dedicados a esportes, personalidades políticas ou literárias. Esses museus ditos “temáticos” – muitos deles também interativos, com o uso às vezes abundante da informática e da ludicidade – são, hoje, amplamente majoritários no Brasil.
“Trata-se de um conceito bem mais moderno e popular de museu, e que está se impondo no mundo inteiro”, afirma Camila Braga, diretora executiva da Federação de Amigos de Museus do Brasil (Feambra), que reúne cerca de 50 beneméritos, entre pessoas físicas e jurídicas. “Os museus temáticos refletem melhor a divisão da sociedade em especializações, que é uma marca da contemporaneidade e, vistos em seu conjunto, operam em interação com a história de vida e o gosto de cada um de nós. São mais eficientes para atrair o público que os tradicionais.”
Realmente, o número de frequentadores dos museus brasileiros tem acompanhado a disseminação desses equipamentos, o que, sem dúvida, está servindo de estímulo para a montagem de outros mais (sim, há muitos deles em projeto pelo país afora). Hoje, a quantidade de visitantes já se aproxima dos 30 milhões por ano – um número que, em 2003, mal resvalou nos 15 milhões.
E não se pense que é apenas nas grandes e médias cidades das regiões sudeste e sul – mais povoadas e desenvolvidas – que os museus estão realmente se multiplicando. Na verdade, perto de 20% dos municípios brasileiros estão hoje representados nesse mapa – e há centenas de cidades que não contam com cinema ou teatro, mas, nem que seja um museuzinho, lá isso elas têm. O sudeste é, claro, a região mais bem servida, com 1.030 equipamentos, com o sul vindo logo atrás, com 726. Já existem, porém, 541 no nordeste, 185 no centro-oeste e 118 no norte.
Por estados, São Paulo é aquele em que há o maior número de museus, 442, com o Rio Grande do Sul em segundo lugar (367), Minas Gerais em terceiro (318) e o Rio de Janeiro em quarto (220). No nordeste, a Bahia, com 144, o Ceará, com 107, e Pernambuco, com 87, pontificam. O Distrito Federal é o líder no centro-oeste, com 62 equipamentos, mas não com muita distância de Goiás, que tem 56. No norte, o estado do Pará tem 40, e o Amazonas, 28.
Multiplicidade de agentes
Perto de 75% dos museus são públicos, numa lista que inclui, em sua maioria, pequenos equipamentos municipais ou sobre personalidades nascidas nas cidades sede e que, em tese, as tornaram famosas – como o Museu Prudente de Moraes, em Piracicaba (SP), e o Rodrigues Alves, em Guaratinguetá (SP), ambos com vasto acervo sobre esses ex-presidentes da República Velha, e aqueles dedicados ao poeta Mário Quintana e ao diplomata Oswaldo Aranha, em Alegrete (RS).
Entretanto, a quantidade de museus que foram montados por empresas privadas, sindicatos e entidades diversas, fundações e até por colecionadores particulares – e que equivale a um quarto do total – obviamente não pode ser desprezada, mesmo que haja casos em que a iniciativa cheire um pouco a marketing, de qualquer forma benigno.
Um dos mais charmosos exemplares temáticos do país, o Museu do Relógio, em São Paulo, foi integralmente implantado pela Dimep, fabricante de relógios fundada pelo lendário industrial Dimas de Melo Pimenta. “Nosso acervo, que reúne cerca de 700 peças, representa fielmente a evolução do relógio através dos séculos”, diz Édson Moura, diretor do museu, que foi montado a partir de uma velha coleção do próprio Dimas de Melo.
Certamente, a multiplicidade de agentes é uma das principais razões da enorme diversidade de temas nos novos museus brasileiros. Alguns chegam a desconcertar pela criatividade – embora ainda não exista nada comparável ao americano Museu Internacional da Espionagem, onde o frequentador tem de lidar com câmaras ocultas e identidades falsas, se quiser aprender alguma coisa sobre o assunto.
A cidade de São Paulo, por exemplo, que se tornou famosa nesse nicho depois da montagem dos imperdíveis museus da Língua Portuguesa e do Futebol, tem, além desses dois e do Museu do Relógio, o dos óculos, o da odontologia, o das artes mágicas e o das invenções – que exibe excentricidades como um capacete dotado de máquina fotográfica e uma esteira elétrica conjugada com laptop, recomendada para os workaholics.
Já o Museu da Pessoa – é isso mesmo – reúne as histórias de vida de quaisquer cidadãos que estejam dispostos a colocá-las lá. No interior do estado, talvez os equipamentos mais fascinantes sejam o Museu do Lixo, em São José dos Campos – onde é exibida uma infinidade de tralhas, de gramofones a velhos ferros de passar roupa e projetores de cinema –, e o Museu Asas de um Sonho, montado pela empresa aérea TAM em São Carlos, cidade onde mantém hangares e oficinas.
Ora em reforma, esse museu é um presente para os amantes da aviação, abrigando desde uma réplica do 14 Bis a um velho Constellation da extinta Panair, e contando ainda com um exemplar do Spitfire, o famoso caça inglês da 2ª Guerra Mundial. No total, são cerca de 70 modelos em exposição nesse que se constitui no maior museu aeronáutico de uma companhia aérea particular do mundo. “Trata-se da concretização de um sonho que traduz nossa paixão por voar”, resume seu presidente, João Amaro. “E a nossa vontade de transmitir essa paixão para outros brasileiros.”
Museus de automóveis antigos também estão espalhados pelo Brasil inteiro, do Ceará ao Rio Grande do Sul, onde, na estância de inverno de Gramado, pode-se visitar um que é exclusivamente dedicado a carros que ficaram famosos nos filmes de Hollywood. Essa cidade também abriga o Museu Medieval de Brasões e Cutelaria, na estrada que vai para a vizinha Canela.
Estabelecimentos sobre a história do samba e da cultura afro são comuns no Rio de Janeiro e na Bahia, assim como museus da cachaça e da cerveja são facilmente encontráveis no interior dos tradicionais estados produtores, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e São Paulo, no primeiro caso, e Rio Grande do Sul e Santa Catarina, no segundo – em que se destaca o bem montado Museu da Cerveja, de Blumenau. Não se podem esquecer também aqueles dedicados a miniaturas e a brinquedos (existe até um de autoramas no Rio de Janeiro), e museus excêntricos para as necessidades da historiografia brasileira, como o do Antigo Egito, em Porto Alegre.
Pelo menos uma cidade chegou ao requinte de montar vários museus em torno de um mesmo tema. Trata-se de Santos, no litoral paulista, cujos ótimos museus tratam basicamente do mar e de sua vasta história portuária e futebolística (é a terra do Santos de Pelé). Além do Museu do Santos F.C., o município tem o da Pesca, o do Mar, o do Café, o do Porto, o do Surfe e o de Arte Sacra.
“São museus que abrem várias interfaces para a história de Santos”, explica Wânia Seixas, secretária de Turismo da cidade, que tem justamente nesses equipamentos uma de suas principais atrações na área de lazer. “E vamos montar um outro para homenagear Alexandre de Gusmão, o avô da diplomacia brasileira e um dos santistas mais famosos, e também um museu exclusivo para o Pelé.”
Além de todos esses, existem ainda museus virtuais e itinerantes, como o Museu da Corrupção – produzido em São Paulo e, segundo se comenta, virtual apenas porque não haveria espaço físico suficiente para abrigar o enorme acervo brasileiro nessa área – e o também paulistano Museu do Computador, cujas peças (algumas historicamente bastante valiosas) são apresentadas em uma espécie de show ao vivo, previamente agendado, principalmente em escolas.
Há também museus temporários – como o que celebrou os 50 anos da boneca Barbie em um shopping-center de Campinas (SP) no ano passado – e os literalmente “domésticos”, que funcionam informalmente em residências e só são visitados por amigos do colecionador. É o caso do paulistano Museu da Fotografia, cujo acervo de mais de 2 mil câmaras fotográficas antigas foi organizado na residência do fotógrafo Mário Bock. “Porém, quando encontrar um espaço e alguém que me ajude financeiramente, vou levar essa coleção para um museu de verdade”, afirma Bock.
O ano que vem deve trazer mais novidades. Está prevista a implantação do Museu da Tecnologia Gráfica, em São Paulo, e do Cavalo Manga-Larga Marchador, que está sendo montado pela associação nacional dos criadores em Cruzília (MG). Já a paulista Fundação Romi, ligada à indústria de máquinas do mesmo nome, pretende abrir um museu sobre o minicarro que produziu nos anos 1950, o Romi-Isetta – o primeiro fabricado no Brasil –, juntamente com a história de Santa Bárbara d’Oeste, onde a empresa é sediada. “Queremos homenagear a cidade que tanto nos deu”, afirma Vainer Penatti, administrador da fundação.
Bate-bocas
Diga-se que o governo não está indiferente a tamanho espírito de iniciativa e tem tentado lubrificar e impulsionar o sistema – cuja crônica falta de verbas vem se agravando e tende a piorar ainda mais com a proliferação de tantos equipamentos. Além da criação do Ibram, a administração federal estabeleceu, por exemplo, uma política nacional para o setor que o tem irrigado com recursos ainda não muito grandes, mas cada vez mais generosos.
De fato, de 2004 a 2007, apenas com a política de editais, foram investidos mais de R$ 37 milhões em 294 projetos, contemplando museus de todos os estados, além do Distrito Federal, com as cidades localizadas no interior ficando com pouco menos da metade desse montante. No total, os recursos oriundos dos programas articulados pelo governo saltaram de R$ 20 milhões em 2001 para R$ 160 milhões no ano passado – uma verba providencial, que tem sido utilizada até em quesitos caros e problemáticos, como a manutenção dos acervos, a segurança e a promoção de eventos.
É verdade que, no bojo, já foram tomadas algumas medidas que provocaram bate-bocas conceituais, como a recente concessão, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), de R$ 6 milhões para que Santos implante o já citado Museu Pelé. Foi o próprio rei do futebol quem intercedeu junto ao BNDES para que os recursos fossem liberados. Já o museu dedicado às personalidades republicanas – mantido pela Fundação José Sarney, em São Luís (MA) – foi arrolado na enorme confusão em torno do possível mau uso de verbas públicas pelo ex-presidente.
É igualmente costumeiro alvo de críticas o emprego talvez um tanto indiscriminado da Lei Rouanet para captação de investimentos para museus de entidades poderosas, como a Fundação Roberto Marinho, vinculada à Rede Globo, que utilizou recursos advindos de renúncia fiscal para a montagem do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.
Em Minas Gerais, o Instituto Cultural Inhotim tem sido igualmente objeto de polêmica. Há dúvidas se esse moderno e ambicioso centro de arte contemporânea, implantado em Brumadinho, a uns 60 quilômetros de Belo Horizonte, mereceria tantas verbas e ajudas oficiais como as que vem recebendo. Do governo federal, Inhotim ganhou recentemente a possibilidade de obter renúncia fiscal da ordem de R$ 13 milhões para seu plano anual de atividades 2010/2011 – em 2008, já tinha captado R$ 1,6 milhão. Apenas para a agenda cultural de 2009, teve aprovados R$ 1,1 milhão da Lei Rouanet. E recebe ainda patrocínio da Petrobras e de estatais mineiras.
No interior do estado de São Paulo, um amarrado imbróglio também envolvendo verbas vem atrapalhando a intenção do governo estadual de municipalizar, até 2011, os 49 museus hoje sob sua custódia. Só que, destes, 12 estão fechados, à espera de reforma, e seis nem saíram do papel. A maioria tampouco recebeu o prometido reforço de seus acervos.
Esses eventuais pecadilhos, porém, não chegam a obscurecer o real esforço do poder público para ser mais pró-ativo nesse segmento, a exemplo do que vem ocorrendo em Mato Grosso do Sul. Lá, o programa estadual Pró-Memória prevê visitas de técnicos a cidades do interior pantaneiro para estudar que modalidade temática poderia ser instalada em cada local. O estado tem, hoje, 41 museus.
“O projeto segue à risca todos os passos fundamentais para a implantação de um museu, como legislação específica, plano museológico, capacitação de funcionários e construção do prédio”, diz Caciano Lima, coordenador do programa. “E tudo isso é feito com o respaldo da população, que pode acompanhar o processo por meio de audiências públicas.”
De acordo com Lima, o principal interesse do governo de Mato Grosso do Sul na multiplicação de museus temáticos no estado é aproveitar o enorme potencial didático e cultural desses equipamentos para complementar o trabalho das escolas locais. É algo que já vem sendo feito por muitos estados e municípios e por vários museus públicos, como o paulistano Catavento, de ciências, que tem recebido cerca de 2 mil estudantes por dia.
Alguns museus privados também estão participando do jogo. Localizado na cidade catarinense de Jaraguá do Sul, o museu da WEG – poderosa fabricante brasileira de motores elétricos – tem, por exemplo, uma ala onde é contada ludicamente a história da eletricidade e de sua influência na sociedade e no desenvolvimento industrial. “É um passeio apaixonante para as crianças, que aprendem se divertindo”, resume Caio Mandolesi, administrador do equipamento.
Estímulo à economia
Percebe-se também no poder público um interesse grande em fazer da área museológica uma nova fonte de renda e empregos qualificados no país. Hoje, centenas de empresas já prestam serviços para o setor, em segmentos tão diferentes como engenharia, decoração, automação, climatização e iluminação – foi a multinacional Siemens que implantou a chamativa iluminação externa do Museu do Ipiranga, em São Paulo, por exemplo. A paulistana Impac, especializada em climatização, também tem 10% de seu portfólio dedicado ao setor.
“Já desenvolvemos projetos para todo tipo de museu que se possa imaginar”, diz Kleber Honório Binhardi, do departamento comercial da companhia. Esse crescente interesse pela museologia no Brasil está gerando negócios até no mercado editorial, do que dá conta o lançamento, pelo Grupo Folha, da “Coleção Folha Grandes Museus do Mundo”.
Do lado do emprego, calcula-se que o sistema de museus no Brasil mantenha, atualmente, cerca de 10 mil trabalhadores diretos, mas salta aos olhos que falta gente especializada. Os poucos museólogos com formação universitária estão concentrados basicamente nos estados do Rio de Janeiro e da Bahia, que até pouco tempo atrás dispunham dos dois únicos cursos de graduação na área.
Hoje, esses cursos já são sete, em várias universidades do país, mas esse número é ainda considerado insuficiente. Alguns cursos técnicos também vêm sendo montados para atender a demanda. O renomado Centro Paula Souza, de São Paulo, ministra faz quatro anos, por exemplo, o curso técnico em museu, em que já se formaram mais de 150 alunos.
“É um curso noturno e que vem sendo procurado tanto por recém-saídos do curso médio como por estudantes de áreas como biologia e administração de empresas”, diz a coordenadora, Cecília Machado. “Trata-se de um mercado que está crescendo, e os jovens já perceberam isso.”