Postado em 03/05/2010
Capaz de aproximar as pessoas, obras artísticas resistem às ameaças totalitárias e criam espaços de diálogo
"Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas.” Quando o poeta alemão Heinrich Heine alertou o mundo com essa frase, clarões de fogo anunciavam uma das piores tragédias já vistas pela humanidade. Era dia 10 de maio de 1933, e soldados nazistas promoviam a destruição de milhares de obras literárias, consumidas pelas chamas nas praças públicas, em várias cidades da Alemanha.
Da chamada “higienização” da literatura para a limpeza étnica não houve um caminho muito longo, e o restante da história, confirmando a previsão de Heine, é bem conhecida: milhões de judeus mortos, entre outras minorias, em campos de concentração.
Em face desses episódios, Hanna Arendt [filósofa alemã de família judia, 1906-1975] identificou o maior aliado nazista: a discriminação. “Hitler previa que na guerra o racismo seria um aliado mais forte na conquista de simpatizantes (...) o racismo deliberadamente irrompeu através de todas as fronteiras nacionais, definidas por padrões linguísticos tradicionais ou quaisquer outros” (Origens do Totalitarismo, Companhia das Letras, 2007).
Fim da liberdade
A arte naquele período tornou-se o primeiro alvo das tropas nazistas. Para o professor de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Márcio Orlando Seligmann-Silva, o regime totalitário pretendia instrumentalizar a arte e a literatura com fins políticos. “Os nazistas só admitiam um tipo de literatura, extremamente nacionalista, com a qual tentariam bajular o regime ditatorial daquele momento”, explica o professor também coordenador do projeto Escritas da Violência, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Com a “grande queima de livros”, os nazistas pretendiam desconstituir o poder dialógico presente na literatura. Sabiam que, por meio dela, indivíduos de todas as nacionalidades e culturas pensavam a pluralidade. “O espaço da linguagem artística permite tratar as diferenças e dialogar de uma maneira inclusiva”, sintetiza Márcio. “Os nazistas pretendiam interferir neste processo.”
Os artistas plásticos também foram alvo de destaque. Lasar Segall [pintor e escultor lituano, 1891-1957], por exemplo, já residia definitivamente no Brasil quando suas obras foram apresentadas na exposição Entartete Kunst [em português, Arte Degenerada].
Obra da série [Body-Builders], de Alex Flemming
O evento expunha, em 1937, as obras propositalmente de forma caótica. Quem era identificado como degenerado sofria sanções. E era impedido de lecionar, expor ou produzir arte. “Os alemães afirmavam que a arte moderna corrompia as tradições germânicas e que estavam infiltradas de ideologia judaico-bolchevista”, lembra o museólogo e ex-curador do Museu de Arte de São Paulo (Masp), Fábio Magalhães. “Queriam ridicularizar a arte moderna.”
Males como esses são levados a público pelo artista plástico brasileiro Alex Flemming, que atualmente reside em Berlim. Para ele, a intolerância deve ser combatida permanentemente. E, por isso, não hesita em denunciar a guerra, o extermínio, a homofobia e o estupro. Na série de obras Body-Builders, Flemming mostra como temos poder sobre nosso corpo e como podemos formatá-lo com os exercícios. Mas revela o quanto esse corpo individual está ameaçado em virtude de conflitos políticos.
“Toda minha obra é política e, portanto, sempre me dediquei a combater todos os traços de intolerância existente na superfície das sociedades”, enfatiza o artista, que terá alguns de seus trabalhos expostos na mostra Shoá, Reflexões para um Mundo mais Tolerante, do Sesc Pompeia (veja boxe Mundo mais solidário).
Fraqueza é a força
A ameaça antissemita influenciou Lasar Segall. Nas litografias de 1910, ele representou a matança de judeus nos pogroms (denominação de atos em massa de violência, espontânea ou premeditada contra judeus e minorias étnicas na Europa). “Talvez tenha sido uma forma catártica de tratar esse assunto, que resultou também na pintura Pogrom de 1937”, aponta a historiadora Vera d’Horta, do setor de Pesquisa em História da Arte do Museu Lasar Segall.
“Instalado no Brasil, Segall utilizou temas da emigração e dos marginalizados pela sociedade. E não ficaram restritos apenas aos judeus expulsos de suas terras, mas aos mendigos, loucos e às prostitutas.”
Segundo a historiadora, a produção expressionista de Segall tem na melancolia seu ponto forte. “Ela não grita, não pega em armas contra as injustiças praticadas pelo homem contra o homem. A ideologia dessa fraqueza é a sua força.
E a sua arte é afirmativa porque valoriza o homem a viver em grupo, valoriza a paz e a vida interior”, ressalta Vera. “A revolta de Lasar está expressa na tristeza, como a melhor resposta à injustiça e à intolerância.”
Campos de reflexão
O cinema tem sido através dos tempos um terreno fértil para discutir temas complexos e delicados. Segundo a cineasta Tata Amaral, que em seu título mais recente, Carnaval dos Deuses, que será apresentado no CineSesc, em São Paulo, aborda a intolerância religiosa (veja boxe Além das diferenças), tanto o cinema quanto a televisão são meios poderosos e versáteis para influenciar o debate. “Seja para divulgar uma ideologia do bem ou do mal”, destaca.
Com o drama Antônia, de 2007, Tata mostrou um grupo de rap exclusivamente feminino à procura de espaço no universo machista. “Procurei criar uma representação favorável à mulher negra da periferia”, diz a diretora. “Pois o negro tem sido sempre retratado e representado como o bandido, o pobre, o pária da sociedade.”
Tocada pela mesma questão racial, a artista plástica Rosana Paulino considera que a sociedade brasileira coloca uma camisa-de-força na mulher negra.
E para abordar este tema, por meio da arte, utiliza imagens de rosto, com partes como boca, ouvido e olhos costurados como metáforas para trabalhar o preconceito. “A costura nos olhos mostra, por exemplo, o impedimento de a pessoa ver e ser vista na sociedade”, comenta Rosana.
A religiosidade é outro tema refletido em suas obras. Numa delas utilizou mais de 1.300 patuás que remetem ao candomblé e à umbanda. “Existe ainda muito preconceito, principalmente com as religiões africanas. Mas a arte felizmente também faz metáforas com a religiosidade e discute a doença (preconceito) para encontrar a cura (tolerância)”.
Rosana Paulino também terá obras expostas na mostra do Sesc Pompeia, cujo objetivo será expandir a reflexão sobre outras facetas da intolerância na sociedade.
Em cores e versos
Longe da região central de São Paulo, questões como a intolerância racial e social encontram um potente meio de expressão no grafite, na literatura e na cultura hip-hop. Com essas manifestações artísticas, busca-se o resgate da autoestima da população dos bairros mais distantes. “Hoje entendemos que o excluído é quem está fechado no condomínio.
A periferia é a parte mais inclusa de São Paulo”, filosofa Férrez, autor de livros como Capão Pecado (Objetiva, 2005) e Manual Prático do Ódio (Objetiva, 2003). “Fazemos arte nos guetos, já que nem todos têm condições financeiras para se expressar.”
Ativista da periferia, Férrez encontrou na literatura o campo de batalha para combater o racismo e a desigualdade. “Acredito que a arte é libertária. E estimula o pensamento sobre o próximo, além de propiciar a reflexão do convívio em sociedade”, sintetiza.
Nas avenidas ou em lugares ermos, Cena 7 trabalha com imagens que transitam pelas questões da convivência humana
Com uma linguagem acessível, o escritor arrebanhou muitos leitores que se consideravam excluídos da literatura denominada “elitizada”. “Uso o verbo certo. É importante saber a linguagem formal e culta, mas não se pode dificultar”, justifica.
“Vivemos num país onde a educação é um fracasso. Então, precisamos falar de uma maneira que todos entendam para debater a intolerância seja em qual forma estiver sustentada.”
As reflexões sobre a própria condição não estão apenas nas páginas dos livros.
Os grafiteiros também levam aos muros opiniões acerca das minorias, da violência e do preconceito. “O grafite, como toda arte, é uma forma de ver no outro a possibilidade de promessa e não de tragédia”, comenta Michel, conhecido como Cena 7.
Para criar um diálogo entre o público e a sua arte de rua, Cena 7 trabalha tanto com poesia quanto com imagem. Insere textos próprios nas obras, mas também usa versos como o do poeta Sérgio Vaz: “A arte que liberta não pode viver da mão que escraviza” [do Manifesto da Antropofagia Periférica].
Atento aos conflitos sociais, o grafiteiro acredita que a arte – por si só – não consegue eliminar a intolerância coletiva. Para tanto, ele busca estimular a organização e o respeito ao próximo, na comunidade onde mora, em São Bernardo do Campo, organizando eventos culturais.
“Respeitar o próximo, porém, não pode ser uma preocupação apenas do rap, do grafite ou da poesia”, diz Cena 7, responsável pelo projeto Grafite em RUA (Reunidos por Um Amor). “A batalha contra a intolerância tem de partir de todas as camadas da sociedade.”::
ALÉM DA DIFERENÇAS
CineSesc promove debate sobre o papel do cinema e exibe obras que tratam da tolerância e religiosidade na sociedade
Imagem de divulgação de André Farkas e Arthur Gutílla para Carnaval dos Deuses, de Tata Amaral
Encontrar vias de diálogo que atendam às necessidades, aos interesses e às expectativas das sociedades transformou-se num desafio mundial. O cinema – e a arte em geral –, munido de uma linguagem universal, tem desempenhado papel fundamental nesse processo.
Ao encontro desse desafio, o CineSesc vai promover no dia 24 de maio o colóquio e o lançamento do Then and Now: Beyond Borders and Differences (Então e Agora: Além das Fronteiras e Diferenças, em tradução livre) – criado pela Organização não governamental Art for the World.
O projeto consiste na produção de um longa-metragem que compreende uma série de aproximadamente 15 curtas. A obra vai servir como instrumento de conscientização do público acerca das complexidades culturais e religiosas existentes na sociedade.
“Enquanto novos temas aparecem, velhos temas reaparecem. Enquanto a tecnologia moderna constantemente expande os meios, os artistas ainda utilizam bronze e mármore, tinta a óleo e encáustica”, comenta a curadora do Beyond Borders, Adelina von Furstenberg.
Para marcar o lançamento, no próprio dia 24, os cinco primeiros filmes que compõem o longa serão exibidos com a presença dos diretores, que também participam de debate: Carnaval dos Deuses (foto), por Tata Amaral (Brasil); Chimères Absentes, por Fanny Ardant (França); Distante un Padre, por Masbedo (Itália); La Longue Marche du Caméléon, por Idrissa Ouédraogo (Burkina Faso); e, também, o filme GAO, por Robert Wilson (Estados Unidos), que não estará presente no lançamento.
Todas as produções tratam de questões ligadas à tolerância e religião. “O filme que dirigi, por exemplo, fala sobre quatro crianças que conversam sobre as suas experiências religiosas”, adianta Tata Amaral. “As personagens aceitam todos os deuses e todas as religiões, convivendo harmonicamente com elas apesar das diferenças.”
A estréia do longa-metragem está prevista para o início de 2011 e será exibido por emissoras culturais e educativas de todo o mundo. O SescTV exibe a produção no Brasil.
“A exibição desse filme intensifica a ação do canal, de promover – por meio da produção audiovisual –, o acesso às manifestações culturais e suas diversas expressões”, enfatiza o coordenador de programação do SescTV, Juliano de Souza. “A produção vai oferecer ao público a chance de sensibilizar-se com temas tão importantes para a valorização humana.”::
MUNDO MAIS SOLIDÁRIO
Exposição amplia a discussão sobre a intolerância e propõe momentos reflexivos por intermédio da educação e da arte
Na exposição, além dos ataques contra judeus são tratados temas como homofobia, racismo e confronto armado
O holocausto é o tema principal da exposição Shoá, Reflexões para um Mundo mais Tolerante, que a unidade Pompeia do Sesc São Paulo apresenta do dia 25 de maio a 4 de julho.
Originária da exposição pioneira e multimídia (foto) que ocorreu no Uruguai, em 2008, a edição a ser realizada no Brasil tem como objetivo ampliar a discussão sobre a intolerância. E, por intermédio de ações educacionais e artísticas, incutir uma reflexão acerca dos outros “holocaustos” que continuam a existir no mundo.
“A partir da maior mancha da história, pretendemos trazer uma reflexão para os dias atuais”, destaca a vice-presidente do conselho da Congregação Israelita Paulista Miriam Vasserman, que coordena a concepção geral da exposição. “A finalidade será educar, informar e conscientizar, sobretudo os jovens no sentido da coexistência, do respeito e da tolerância.” A mostra está estruturada em três pilares: Memória – visão global; Educação – Shoá (Holocausto em hebraico); e Legado – reflexão para os dias de hoje.
Embora a edição no Brasil seja readaptada às características do país, ela preserva essencialmente o sentido original. Assim, os conceitos como solidariedade, união, valores, integridade, esperança e amor – previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos [adotados pela Organização das Nações Unidas, em 1948] – foram adicionados à temática. E ganharão mesa de debates.
“Outras questões, como a violência e os problemas sociais que marcam o nosso país também merecem atenção, assim como o holocausto judeu”, lembra a assistente de artes visuais da Gerência da Ação Cultural (Geac) do Sesc, Nilva Luz. “A ideia, portanto, é resgatar a memória dos horrores, mas, ao mesmo tempo, usá-la para ativar a reflexão dos visitantes a não cometer os mesmos erros.”
Realizar a mostra no Sesc foi um desejo da própria comunidade judaica, que pretendia levar a exposição a um público amplo. Dessa maneira, além do holocausto, outras formas de intolerância presentes na sociedade serão apresentadas. “Esse modelo de promover diálogos condiz com a linha de atuação do Sesc”, afirma Nilva. “Na medida em que ele corresponde às nossas ações de promoção da diversidade, por meio dos diferentes suportes, temas e linguagens artísticas.”
A interatividade é garantida em diversos módulos de intervenções artísticas. Já as obras de arte, que tiveram a curadoria do museólogo e ex-curador do Museu de Arte de São Paulo (Masp) Fábio Magalhães, compreendem trabalhos de artistas que abordaram temas como homofobia, racismo, confronto armado em favelas, entre outros.
“A arte trabalha para que a intolerância numa escala menor ou maior não ocorra. Trazer a memória dos machucados, dos horrores e do sofrimento sem o uso de imagens banalizadas proporciona um efeito na mente e no coração do indivíduo”, define a artista Renata Barros, que terá algumas obras expostas na mostra. ::