Postado em 23/12/2008
Adolescência e Violência
Em tempos de páginas policiais com manchetes cada vez mais alarmantes, os pais têm motivo de sobra para não dormirem sossegados por causa de seus filhos adolescentes. As “baladas”, as idas ao shopping com a turma, as pessoas com as quais eles podem se envolver. Até que ponto os jovens estão protegidos ou expostos? Em artigos inéditos, o sociólogo, educador e orientador educacional Francisco Eduardo Bodião e o psicanalista e escritor Sérgio Telles tentam achar as respostas para essa delicada equação.
Adolescência – um tempo de violentos conflitos
por Sérgio Telles
A questão proposta superpõe dois importantes problemas – o da violência e o da adolescência. Comecemos pela violência. Sempre que falamos sobre ela, a primeira coisa que fazemos é vê-la como um problema externo, que não nos diz respeito, a não ser como eventuais vítimas inocentes. Jamais admitimos que nós mesmos possamos ser agentes produtores de violência. Os violentos e agressivos são sempre os outros, nunca nós mesmos. Agimos de modo semelhante com a sexualidade. Estamos muito atentos e fazendo julgamentos sobre os comportamentos sexuais dos outros, como se nós mesmos não passássemos por vicissitudes semelhantes àquelas que tão severamente censuramos nos outros.
Negamos e reprimimos nossos impulsos agressivos e sexuais. Até certo ponto isso é necessário. Como Freud dizia, para vivermos em sociedade, não podemos dar plena vazão a nossos desejos sexuais e agressivos. Temos de controlá-los; caso contrário, ficaria impossibilitada a convivência com o outro.
Mas esse controle não deve fazer com que neguemos a presença de tais fortes pulsões em nós mesmos e que as projetemos no outro, atribuindo-lhe com exclusividade aquilo que também possuímos. A projeção dos desejos agressivos e sexuais no outro, e sua concomitante negação em nós mesmos, é fonte de inesgotáveis desentendimentos entre os seres humanos.
O ideal seria que reconhecêssemos nossa constituição pulsional, que nos dota de sexualidade e agressividade, sendo tarefa de todos e de cada um a administração dessas poderosas forças internas.
Assim, quando se fala da violência que atingiria o adolescente, tal afirmação pareceria colocá-lo como vítima indefesa e passiva, deixando de lado que a violência habita também o adolescente, pois ela nos habita a todos.
Mas é verdade que os recursos internos para o manejo da violência diferem em função do nível de estruturação do psiquismo, estando ele ainda em processo de organização nas crianças e nos adolescentes.
Falemos agora da adolescência. Ela é um período de extraordinária turbulência interna, no qual o corpo e o psiquismo sofrem amplas modificações. O adolescente deve deixar a vida infantil com todos seus valores e se defrontar com grandes desafios, especialmente aqueles ligados a sua personalidade, a sua identidade. O adolescente não é mais o filhinho de papai e mamãe, a quem deve obedecer sem discussão. Ele agora precisa se firmar como sujeito, deve definir sua ?sexualidade e descobrir a posição que vai ocupar no mundo dos adultos.
O adolescente está exposto à violência interna de seus próprios desejos e conflitos, pois tanto sua sexualidade como sua agressividade adquirem aspectos e intensidades por ele até então desconhecidos. Seu Complexo de Édipo ressurge com grande intensidade, deixando-o confuso e assustado ao constatar que agora poderia realizar suas velhas fantasias incestuosas inconscientes, coisa que seu corpo infantil impossibilitava. Da mesma forma, sua própria agressividade precisa ser modulada.
O adolescente se depara com muitos desafios. Como lidar com os modelos que a sociedade lhe oferece para seu sexo, sua posição social, seu futuro? Deve se conformar com eles? Precisa se rebelar contra eles?
Para impor sua identidade, deverá lutar contra os pais. Mesmo quando eles estão do seu lado e se dispõem a ajudá-lo, ainda assim ele tem de se desprender deles. Ao mesmo tempo em que ele quer fazer isso e seguir seu próprio caminho, teme se afastar dos pais e perder o lugar protegido que eles lhe têm proporcionado. Frente à angústia que tudo isso lhe provoca, o adolescente pode reagir com grande agressividade, voltada para os outros ou contra si mesmo, em condutas autodestrutivas.
As questões sobre a identidade sexual ocupam um lugar central para os adolescentes. Os rapazes confundem masculinidade com agressividade e se engajam em estrepitosas exibições machistas. As meninas engravidam como uma forma de provar que são mulheres, apesar de terem as informações objetivas necessárias que as poupariam dos problemas daí decorrentes. Ambos podem ser levados a praticar sexo não seguro, expondo-se a doenças sexualmente transmissíveis ou a gravidezes não planejadas. Aqueles que descobrem ter uma sexualidade diversa da maioria padecem grandes agonias.
Ao se afastar do protegido grupo familiar, o adolescente necessita vitalmente se incluir em outros grupos, que o amparem em seus conflitos identitários. Nos novos grupos, deve aprender a lidar com os fortes mecanismos que regem seu funcionamento, com as lideranças, as disputas de facções rivais que podem uni-los ou fragmentá-los, a eleição de bodes expiatórios, etc. Nesses grupos, a afirmação da masculinidade faz com que os comportamentos agressivos nos rapazes sejam supervalorizados, da mesma forma que o comportamento sedutor por parte das meninas, o que gera situações potencialmente perigosas.
Tais são os percalços quase inevitáveis que o adolescente tem de atravessar em sua busca de uma nova identidade. Esse tumulto interno deixa os adolescentes especialmente vulneráveis às drogas e ao álcool, que são ingeridos como calmantes, no intuito de aplacar o sofrimento que lhes provoca o crescimento, a perda da identidade infantil, o ter de enfrentar desafios que, naquele instante, podem parecer-lhes imensos e intransponíveis.
Até agora, falei da violência interna própria do momento psíquico da adolescência. Mas, é claro, aspectos sociais e culturais podem acolher e proteger o adolescente nesse momento de confusão identitária e violentas descargas sexuais e agressivas ou deixá-lo entregue a si mesmo, agravando suas dificuldades.
De modo geral, para que a adolescência transcorra da melhor forma possível, desembocando numa organização estável da identidade, os pais deveriam ocupar adequadamente suas funções paterna e materna. Teóricos da psicanálise julgam que, nas últimas décadas, tem havido um progressivo enfraquecimento da figura paterna. Isso se dá por inúmeros fatores – o abandono dos valores ligados ao patriarcado, as conquistas do feminismo, por exemplo –, o que tem criado novas dificuldades no já crítico processo da adolescência.
Além disso, nos últimos anos a família também tem sofrido grandes alterações. Contrariamente ao modelo tradicional, a prática difundida do divórcio faz com que as famílias reconstituídas sejam cada vez mais numerosas, e isso certamente não ajuda a atenuar os conflitos desencadeados pela adolescência.
Num país como o nosso, de profundos abismos socioeconômicos, com grandes parcelas da população segregadas em condições subumanas de vida, é claro que o tumulto próprio da adolescência encontra uma retaguarda social e familiar muito precária.
Freqüentemente, lemos nos jornais notícias sobre “chacinas”, a forma consagrada pela imprensa para se referir aos freqüentes assassinatos em massa de adolescentes e jovens moradores de bairros pobres das grandes cidades. Habitualmente, tais chacinas são atribuídas a lutas de gangues de traficantes de drogas, acertos de contas, ação de grupos policiais. A indiferença da sociedade frente a esses bárbaros assassinatos fica ainda mais chocante ao se contrastá-la com o alarde que é produzido pela morte de um único adolescente das classes mais abastadas, coisa que raramente ocorre.
A adolescência é um período de grande violência interna, e essa violência interna pode ser neutralizada ou potencializada pelo meio ambiente, pela família, pela sociedade. No Terceiro Mundo, a desigualdade social é, em si, uma violência que recai sobre todos nós. Sendo os adolescentes mais frágeis e susceptíveis, não é de admirar que sejam por ela mais atingidos.
“A adolescência é um período de grande violência interna, e essa violência interna pode ser neutralizada ou potencializada pelo meio ambiente, pela família, pela sociedade”
Dialogar para superar a violência
por Francisco Eduardo Bodião
É comum listarmos como causas para o crescimento da violência a conjuntura econômica do país, o desemprego, o consumismo, a impunidade, o individualismo, a falta de políticas públicas para jovens... A nossa lista é grande, mas geralmente nos esquecemos da “cultura da violência”, que tem a ver com a forma como lidamos com nossos problemas cotidianos, que é tão ou mais significativa que as outras causas.
Para ficar mais claro, como as pessoas reagem às situações de conflito que enfrentam no dia-a-dia? Quando alguém tem seu carro fechado no trânsito, quando a namorada ou algum familiar é desrespeitado, é comum as pessoas dialogarem com quem as importunou? Isso, muitas vezes, é até ridicularizado. O “normal” é responder com agressão.
Não nos damos conta, mas essas situações do cotidiano somadas criam a valorização da “cultura da violência”, de resolver os conflitos com agressões. Não se consegue ter tolerância e diálogo. E, no final, a soma dos pequenos conflitos acaba tendo uma solução extremada, exagerada, na grande maioria das vezes, violenta. Infelizmente, muitas vezes, terminando em homicídio por motivos banais.
A “cultura da violência” também é alimentada pela mídia. O mundo de hoje está realmente muito violento: há muitos crimes, guerras, e, sem dúvida, é um dever da imprensa cobrir tudo isso. A questão é a maneira como isso é feito. Muitas vezes, a notícia acaba não gerando uma reflexão séria e crítica sobre os acontecimentos.
A própria atitude violenta de alguns programas, filmes ou mesmo novelas valoriza o personagem que não leva desaforo para casa, aquele que resolve tudo na força física ou armada. Desprezamos essa influência direta sobre o espectador, que, exposto permanentemente a um universo violento, amplia sua tolerância às soluções violentas. Os programas humorísticos apresentam a violência como “engraçada”, mas, na prática, acabam estimulando um comportamento que não é brincadeira, já que milhares de pessoas morrem vítimas da violência todos os anos no Brasil.
Um fato significativo é que a maioria dos homicídios acontece por motivos fúteis, o que significa que as pessoas estão resolvendo seus conflitos de um jeito muito mais violento: apontando uma arma, atirando, optando pela truculência, pela não-tolerância, em vez do diálogo. Além disso, explorar demais cenas de violência, o drama das vítimas, dar mais espaço para alguns casos em detrimento de outros, não contextualizar os fatos, tudo isso é muito ruim e só alimenta uma cultura de medo, que, por sua vez, prejudica as pessoas.
Nossos adolescentes e jovens estão imersos nessa realidade. Em casa, a família pouco conversa. O grito aproxima a todos, que, espalhados entre computadores, televisões ou afazeres domésticos, resolvem seus problemas a distância, às vezes com recados no msn, e-mail ou Orkut. Ter tempo para conversar, “olhar no olho”, entender motivos e vontades é cada vez mais difícil. Preferimos acreditar que meninos e meninas, de idades as mais variadas, já têm “plena” condição de saber o que é certo ou errado, e que simplesmente acatar o que os adultos determinam é suficiente. A quem queremos enganar? Nossas contradições e nosso afastamento reforçam, nos adolescentes e jovens, o que criticamos na sociedade: o individualismo, a falta de sensibilidade, o desrespeito ao outro, a violência.
Nesse sentido, é um aprendizado difícil para os jovens saber conviver em grupo, trabalhar em equipe, aceitar os diversos tipos de posicionamentos pessoais e ideológicos, a pluralidade das crenças religiosas, as variações musicais.
Os conflitos estão colocados, eles existem, eles vão continuar existindo. Muitas vezes, o conflito é a tentativa da conquista de um direito que está sendo negado. Isso acontece na escola, em casa, no trânsito, na rua, no bairro, entre os amigos... Por isso, todo conflito gera uma mobilização pessoal. Ele pode nos ensinar a praticar a democracia na intimidade. Isso significa saber reconsiderar valores antigos, assimilar as riquezas da novidade, discernir entre o velho, o novo, o diferente e o semelhante, o que deve ser assimilado ou extinto.
Esse exercício pode parecer fácil, mas ele é muito difícil. O desejável é que as mudanças aconteçam pelo entendimento mútuo, pelo diálogo compreensivo, e que cada pessoa perceba em seus limites aquilo que precisa ser superado, mantido ou respeitado, em prol da convivência democrática, evolutiva e dinâmica. Se nada disso acontece, as conseqüências são, entre outras, o acirramento do preconceito, a exclusão, a violência.
Sendo assim, a família e a escola devem ser parceiras na ampliação desse repertório para a resolução de conflitos entre adolescentes e jovens. O primeiro passo é a confiança mútua e o contato permanente entre pais e educadores, que, além de afirmarem valores comuns na formação de meninos e meninas, serão exemplos de convivência sincera e comprometida. Famílias que não acompanham a vida escolar de seus filhos e escolas que não garantem momentos de participação democrática aos pais não vão conseguir “exigir” de adolescentes e jovens respeito às diferenças e ao diálogo como solução à violência.