Postado em 01/05/1998
De 2 de fevereiro a 29 de março, as cidades do interior de São Paulo conviveram com a obra de Brecht. Através das unidades do Sesc, os moradores dessas cidades entraram em contato com um surpreendente trabalho de profissionais da arte cênica e da música e ainda puderam conferir todo o know-how de uma entidade que conta com 50 anos de experiência na arte de promover cultura.
Ricardo Fernandes, técnico do Sesc e um dos organizadores do projeto, enfatiza que o grande objetivo por trás da realização desse evento em comemoração ao centenário do dramaturgo é mostrar as inúmeras possibilidades de teatro dentro do universo de Brecht. "O diferencial desse projeto é que ele foi inteiramente concebido pelo Sesc. Uma idéia que nasceu a partir da intenção de se comemorar os 100 anos do autor e que foi tomando corpo com opiniões de todas as unidades", ressalta.
Para isso foram convidados grupos de teatro, música e dança que atuam em todas as frentes da manifestação cênica. "Convidamos grupos que fazem um teatro mais convencional e outros que trabalham de maneira completamente experimental", continua Ricardo. "Alguns já estavam montando espetáculos de Brecht, outros toparam a idéia de montá-los especialmente para participar do evento." O resultado foi uma semana cultural que agitou as cidades do interior com peças e shows que tiveram como maior preocupação aproximar o trabalho do autor alemão da realidade brasileira, digerindo Brecht e devolvendo-o à platéia de maneira bastante particular e original. "Isso tem a ver com o próprio estilo dele, que era um adepto do teatro antropofágico, que se apropriava das coisas e as traduzia à sua maneira", conclui Ricardo.
O evento Brecht 100 Anos celebrou, acima de tudo, a filosofia de um homem que revolucionou a arte cênica no início do século, transformando a dramaturgia mundial. "Nós tentamos criar uma nova visão de Brecht, romper com esse ranço comunista que ele tem. E esse evento tem de tudo, desde coral de crianças até montagens teatrais mais contemporâneas, passando por encenações tradicionais e cabarés." define Ricardo.
Os cabarés, que foram o lado mais musical do evento, tiveram uma participação ampla nessa tentativa bem-sucedida de levar informações brechtianas ao grande público. "A música tinha um papel fundamental no espetáculo dele", explica Ricardo. "Ele a colocou no teatro de uma forma muito diferenciada. Não se trata simplesmente de uma ópera ou opereta, mas é uma coisa que o próprio ator incorpora." Prova disso, e também do caráter antropofágico de Brecht que confere à sua obra liberdade de interpretações, é a Ópera dos Três Vinténs, primeiro grande sucesso do autor e que, por sua vez, foi uma adaptação da Ópera do Mendigo, de John Gay. Contando a história de um conquistador barato e pobretão em disputa com o chefe dos mendigos, a obra popularizou músicas como A Canção dos Canhões e Jenny dos Piratas, além de servir de inspiração à não menos famosa Ópera do Malandro, de autoria de Chico Buarque.
Cabaré Brecht
Reduto de figuras quase folclóricas, como prostitutas, malandros e marginais, os cabarés sempre encontraram campo fértil no imaginário coletivo. Um misto de proibido e atraente causa curiosidade e fascínio na mente das pessoas. Para Brecht o universo dos cabarés era o lugar perfeito para ambientar suas saga. Entre as mesas e a fumaça dos charutos circulavam os excluídos, figuras para as quais o dramaturgo servia de voz e considerava seus protagonistas preferidos.
Para ajudar o Sesc a resgatar a poesia marginal desses ambientes e deixá-los ainda mais atraentes, Jorge Mautner, Denise Assunção, Cida Moreira e o divertidíssimo conjunto musical As Madamas foram alguns dos responsáveis em mostrar ao público que Brecht não é só teatro, mas tem também poesia, reflexões existencialistas e muita música. "Nós fizemos questão de entrar na parte de cabarés do Brecht", começa explicando Edna Aguiar, uma das madamas. "A partir daí, adaptamos suas canções para nossos palcos. Não que fosse intencional, mas nós queríamos brincar com essa coisa de cabaré de uma forma bem brasileira, transformando as músicas de Brecht em algo bem acessível aos ouvidos leigos," Milton de Biasi, diretor musical do espetáculo, explica que a intenção era "desmistificar Brecht, cuidando para não descaracterizar as Madamas. Nós procuramos várias pessoas que conheciam a obra de Brecht e descobrimos que era possível trabalhar com ele sem traí-lo", continua explicando Milton. "A partir daí, a gente deitou e rolou." Yvette Matos, também das Madamas, brinca dizendo que odiava Brecht: "Não gosto de cantar coisas pesadas. Quando começamos a perceber que dava para tirar proveito das coisas dele, aí ficou bom."
Em São Carlos, assim como em todas as cidades visitadas pela trupe a serviço de Brecht, os cabarés tiveram um clima bastante autêntico: cortinas vermelhas cobriam as paredes da lanchonete da unidade, velas adornavam as mesas, e a fumaça de gelo seco que vinha do palco remetia à névoa de fumaça de cigarro que encobria os antigos cabarés. "Fizemos questão de que todos os espetáculos fossem realizados dentro do espaço do Sesc", enfatiza Sérgio Lago, gerente da unidade. "A decoração foi toda feita pelos próprios funcionários. Embora seja um evento cultural, toda a unidade fica envolvida na preparação das coisas. Do setor de alimentação ao de turismo." Tudo foi feito pensando-se nos mínimos detalhes, até o cardápio apresentava uma versão especial trazendo a foto do dramaturgo alemão.
No espetáculo d’As Madamas, apropriadamente intitulado As Madamas Jantam Brecht, as três simpáticas gordinhas integrantes do grupo apareciam do fundo da lanchonete, flertando com a platéia, como se estivessem preparando todos para o banquete que em breve seria servido, com Bertolt Brecht como prato principal. "Nós fizemos um grande caldeirão musical", definiu Simone Mazzer, também integrante do grupo.
Aos que Estão por Vir é o nome do espetálo da cantora Cida Moreira, a mais célebre e tradicional cantora brechtiana do Brasil. Quando surgiu a idéia de se fazer um evento sobre o autor e de se introduzir a parte musical com grande destaque, seu nome logo surgiu seguido de um convite. "Eu trabalho com Brecht há vinte anos", comenta a cantora. "E foi uma experiência muito gratificante participar desse evento. A meu ver, o objetivo do Sesc foi totalmente atingido, porque cada artista envolvido nos cabarés era muito diferente um do outro e com isso eles puderam dar interpretações igualmente diferentes dentro do esquema teatro/música proposto por Brecht. Além disso, ainda houve a interação com o público e a ótima decoração realizada pelo Sesc", elogia.
Destaque em decoração vai também para o Sesc de Catanduva, que se ocupou de um dos bares da cidade e levou cortinas de cetim vermelho para o palco e chuva artificial para recepcionar os convidados.
Jorge Mautner compareceu com seu Cabaré Brechtiano Tropical que, apesar do nome, conseguiu com sucesso passar o clima alemão de Brecht aos cabarés tupiniquins, mesmo com músicas de Noel Rosa e composições próprias. "Embora original, meu show é muito calcado em Brecht", define Mauter. "Eu faço traduções simultâneas dos poemas e letras dele e passo informações paradoxais sobre sua figura, como, por exemplo, o fato de ele ser um libertário e ainda amar o partido comunista totalitário do qual fazia parte." O cabaré brechtiano de Jorge Mautner é o mais denso de todos.
Irônico, porém não espalhafatoso: isso, claro, se conseguirmos ignorar a presença de Celso Sim, cantor que acompanha Mautner, usando cabelos vermelhos e pisando com suas botas de cano longo sobre as mesas de uma platéia entre o riso e a surpresa. Mise-en-scènes à parte, Jorge Mautner contribuiu com seu repertório próprio às leituras de Brecht e enriqueceu mais esse projeto Brecht 100 Anos. "Essa iniciativa do Sesc é formidável", elogia o cantor. "A parte mais importante do Sesc é levar informação para as pessoas, ainda mais no interior, o que eu acho o máximo".
Cenas Brechtianas
As peças teatrais eram antecedidas por prelúdios construídos a partir de diversos poemas de Brecht. Preâmbulos com dez minutos de duração levados ao palco pela Cooperativa Paulista de Teatro sob o nome de Gedichte: Nº 1 a Nº 7.
Grupos, como o já conhecido Companhia do Latão, trouxeram visões das obras de Brecht que tiravam seguramente a platéia da indiferença, como se a informação estivesse sendo transmitida por todos os sentidos ao mesmo tempo. A companhia se inspirou-se no espetáculo A Compra do Latão, de Brecht, e encenou uma mistura de escritos poéticos do autor com cenas de Hamlet de Shakespeare e, ainda,com imagens recolhidas no centro da cidade de São Paulo. Já a Cia. Razões Inversas trouxe uma interpretação de Baal, famoso texto de Brecht, enaltecendo o que pode se chamar de um teatro-correria. Numa reflexão sobre condição humana com o título de Maligno Baal, o Associal, os atores, com os rostos pintados lembrando índios xavantes, corriam e chocavam-se uns contra os outros sobre um piso que imitava uma via expressa. Entrecortado por momentos metalinguísticos, em que os atores simulavam entre eles uma espécie de plantão de dúvidas sobre a peça que interpretavam, o espetáculo trazia a filosofia atrevida e selvagem do grupo e mostrava a ambígua relação do homem com seu próprio ego, que às vezes o deixa no alto de um pedestal, noutras o derruba de lá.
Em contrapartida a esse tipo de comportamento experimentalista, o diretor Amauri Falsetti reuniu um grupo de adolescentes da favela Monte Azul, na zona sul de São Paulo, para encenar a peça Sim...ou...Não! Ou Melhor, montagem baseada nos textos gêmeos de Brehct O que Diz Sim e O que Diz Não. Cenário simples, interpretação idem, mas intenção nobre. "Um grande momento digno do teatro", como definiu José Saffioti Filho, assistente técnico do Sesc São Carlos e responsável pelo teatro da unidade.
Brecht On Tour
Em São José dos Campos, 7200 pessoas compareceram aos espetáculos que presentearam a cidade na semana de 16 a 22 de março. O gerente da unidade, Jubel Raimundo Cardoso, resume a importância que Brecht 100 Anos teve na cidade: "O Sesc, ao realizar a comemoração do centenário do nascimento deste dramaturgo, mais uma vez concretiza sua missão de viabilizar as mais variadas formas de interpretação do teatro, promovendo a divulgação do trabalho de um incontável número de atores e diretores brasileiros que aqui se apresentaram nesse período", orgulha-se.
Em Campinas, o evento garantiu uma média de 700 pessoas nas peças e lotação máxima nos cabarés, burburinho total provocando inquietação na cidade, já famosa por seu público enorme de alunos da Unicamp. "Atrelada a ideais políticos, a obra de Brecht carrega um forte conteúdo poético que ainda hoje chama a atenção pelo que tem de atual. Daí, a necessidade deste resgate", explica o gerente adjunto da unidade Antonio Tristão. Para os espetáculos musicais, foi necessário transformar o salão do Jockey Club Campineiro, local pouco utilizado para eventos, segundo Tristão, em um cabaré alemão do pós-guerra. "O Sesc Campinas levou para lá toda a estrutura de um bar-teatro", explica. "Com iluminação, sonorização e cenografia. Foram quatro noites de lotação máxima e muito trabalho de toda a equipe de profissionais envolvida", ressalta.
Tendo em vista a aceitação do público, assíduo durante a semana de espetáculos, pode-se definir Brecht 100 Anos como um dos mais importantes eventos de teatro já levados a essas cidades. "E, muito provavelmente, o melhor momento das artes cênicas da cidade de Campinas", completa Tristão.
Em São Carlos, os moradores e os estudantes da Universidade Federal e da USP também tiveram assunto extra para as rodas de conversa. Os espetáculos de Brecht aterrissaram na cidade numa segunda-feira, dia 23, fazendo a semana dos sãocarlenses começar bem. Maira Maiane, estudante de 23 anos, começou a maratona brechtiana assistindo à peça Santa Joana dos Matadouros: "Achei excelente, muito bem montada.", diz. Como a maioria dos presentes, Maira pouco conhecia de Brecht – "Tinha lido um conto dele uma vez, mas nunca tinha visto uma montagem. Eu sempre soube que Brecht era uma pessoa altamente politizada, um marco em seu tempo, mas os trabalhos apresentados mostram um lado mais alegre de Brecht, que não deixa de ser contestador".
Os mesmos rostos podiam ser em encontrados todos os dias de espetáculo e em todos os espaços onde eram apresentadas as peças e musicais. O teatrólogo e morador da cidade Luiz Gustavo também acompanhou a semana toda e deu uma rápida aula sobre o que Brecht representava a todos que se identificavam com o teatro: "Os espetáculos mostram um resgate do ator, que se compreende para depois se fazer entender". Uma opinião que com certeza seria endossada por muitos dos diretores que trabalharam com Brecht, afinal, ser um libertário e ter a proposta de dessacralizar o teatro como espaço eram algumas das caraterísticas mais marcantes do autor. Já para o estudante Renato Votolanti, a semana cultural serviu principalmente para proporcionar mais opções aos moradores de São Carlos. "A cidade não tem muitas opções", analisa. "Coisas como esta provam o quanto o Sesc pensa na comunidade, fazendo um ótimo trabalho."
Essas semanas em contato com a obra de Brecht tiveram vários significados, atingindo as expectativas de um público profundamente heterogêneo. Um evento cujo objetivo, nas palavras do próprio gerente regional do Sesc, Danilo Santos de Miranda, é o de "apropriar-se de Brecht das mais variadas formas, apropriar-se de seus sonhos, devorá-lo, como diz nossa índole antropofágica. O sonho de fazer e levar o teatro ao maior número possível de pessoas continua vivo e se concretiza neste projeto".