Postado em 05/04/2010
Sinal de brasa
O cineasta Walter Lima Junior relata sua trajetória no cinema, desde a época dos cineclubes, passando pela experiência do Cinema Novo e pelas dificuldades das primeiras investidas
Quando construiu o próprio cinema numa caixa de sapato, Walter Lima Junior era apenas uma criança. Não imaginava, porém, que seria um dos principais propulsores do Cinema Novo (movimento cinematográfico brasileiro influenciado pelo Neorrealismo italiano e pela Nouvelle Vague francesa, a partir dos anos de 1950) no país. Nascido em 1938, em Niterói, no estado do Rio de Janeiro, cultivava já na infância o desejo de ser diretor. Tanto que fazer filmes era a brincadeira preferida no quintal de casa.
Walter desenhava cenas no papel de seda, cujo rolo passava por uma caixinha de papelão iluminada. E, claro, cobrava ingressos pela atração. “O cinema se inventava na minha cabeça”, disse o diretor de A Ostra e o Vento (1997) e Os Desafinados (2008), entre outros filmes, em conversa com a Revista E.
Com um viewmaster (brinquedo com discos de pequenas fotografias que, viradas contra a luz, produzem imagens), o garoto também improvisava a sétima arte.
Substituía as rodinhas da máquina com fotogramas (fitas de celuloide do cinematógrafo) que apanhava no chão das salas de projeção dos cinemas. Ele alugava as “sessões” da engenhoca aos colegas da escola. “Se as imagens fossem coloridas, o aluguel saía mais caro”, revela.
Sem interesse em atividades comuns dos garotos da época, Walter aos 12 anos assistia a quatro filmes por semana. E, embora não tenha memória da sua primeira ida ao cinema, vivia em função dele. “Às escondidas dos meus pais, eu saía de Niterói rumo ao centro do Rio de Janeiro – onde estavam concentrados os cinemas de rua. Por causa da minha baixa estatura, às vezes era barrado na bilheteria. Mas quase sempre entrava”, informa o cineasta.
Bons companheiros
O interesse pelo cinema me tornou solitário. Ninguém me acompanhava às salas. A minha família não tinha proximidade com a área. Mas, em minhas andanças, um dia encontrei um cineclube na Escola Brasileira de Administração Pública – então localizada na Praia de Botafogo [no Rio de Janeiro]. Ali descobri que tinha gente tão maluca quanto eu que adorava cinema.
"A experiência de fazer Deus e o Diabo foi maravilhosa. Ali se formava o grupo do Cinema Novo. Transformaríamos o cinema numa linguagem de combate"
Pela primeira vez coloquei os pés em um cineclube. No lugar, conheci outras pessoas que ambicionavam a carreira de diretor. Um deles foi Leon Hirszman [cineasta carioca, 1937-1987], que me apresentou os expoentes do cineclubismo – como o Centro de Estudos Cinematográficos da Faculdade de Filosofia. Lá, conheci também Paulo César Saraceni e Plínio Sussekind Rocha – cineasta e físico, respectivamente.
Passei a me interessar muito por Eisenstein [cineasta soviético, 1898-1948]. E, com essas experiências, fiz um cineclube em Niterói. Comecei a elaborar boletins de filmes e quando me dei conta já estava escrevendo críticas de cinema.
Trabalhava de “graça”, em troca de acesso gratuito às salas de filmes. Considero os cineclubes como um fenômeno do final dos anos de 1960. Eles serviam como um espaço de socialização. As fitas de VHS [sistema de vídeo caseiro] naquela época nem existiam. Então, os cinéfilos se reuniam para conversar e saber quais os gostos dos outros colegas.
A gente dizia: ‘Fulano é um bom caráter porque gosta de tal filme’. ‘Já o Sicrano não presta porque gosta de tal produção’ [risos]. A gente conversava nos cineclubes com pessoas de diversas áreas. Fazíamos uma crítica do cinema, sem olhar essa arte de maneira superficial.
Corte frustrante
A crítica de cinema me levou a conhecer o especialista na área Antonio Moniz Vianna [1924-2009]. O Moniz estava constituindo uma cinemateca no Museu de Arte Moderna do Rio e me convidou a trabalhar nela. Ele foi também meu editor-chefe no jornal Correio da Manhã, onde trabalhei como repórter policial. Gostava de fazer reportagens, mas não escrevia sobre filmes. E por passar o tempo inteiro trabalhando, parei de ir aos cinemas. A redação parecia que ia me devorar.
As pessoas falavam sobre os filmes, mas eu ficava agoniado porque não tinha tempo de assisti-los. Tive uma crise existencial por causa disso. Não fazer o que mais queria foi muito ruim. Um dia, porém, procurei o Leopoldo Torre Nilsson [cineasta argentino, 1924-1978] e consegui um estágio com ele entre 1962 e 1963. Fui ser o quarto ou quinto assistente dele, em Mar Del Plata. Gostava muito do Leopoldo, pois ele era um sujeito falastrão e ria de tudo.
Quando retornei ao país, já conhecia bem o universo do cinema. Logo recebi meu primeiro convite importante para trabalhar num set cinematográfico. Fui assistente de direção de Adolfo Celi, no filme Marafa – adaptação do romance de Marques Rebelo. Mas o Celi, depois de bater boca com o produtor, largou o trabalho no meio. Ele simplesmente deu de ombros e foi embora. Perguntei-me: “Como o cara tem coragem de abandonar um filme assim?”. Nunca tinha visto aquilo.
Rumo à terra do Sol
No mesmo ano do Marafa, encontrei o Glauber Rocha [cineasta baiano, 1939-1981], que queria um assistente de direção para fazer o Deus e o Diabo na Terra do Sol [filme de 1964]. Ele tinha como certo para a função o Vladimir Herzog [jornalista croata naturalizado brasileiro, 1937-1975]. Mas o Vlado havia ganhado uma bolsa da BBC de Londres. E não queria desperdiçá-la, embora estivesse chateado por negar o convite do filme. Quando o Glauber perguntou: “E agora, quem eu chamo pra assistente?”. Eu respondi: “Eu estou a fim”. Foi assim que ganhei a vaga.
A dois dias apenas da viagem à Bahia – local das filmagens –, tive de voltar ao jornal para entregar meu cargo de repórter a Moniz Vianna. Quando comecei a falar, estranhamente apagou-se a luz da redação. Apesar do escuro, Moniz não parou de trabalhar. Ele catava milho nas teclas da máquina de escrever e, ao mesmo tempo, fumava o charuto. Aquilo parecia uma cena de cinema. Eu só enxergava o sinal da brasa a cada tragada dele. O blackout repentino, justo naquele momento, era um sinal pra mim.
Vianna me alertou de que Glauber não me pagaria pelo trabalho do filme. E de que eu ia me arrepender de deixar o trabalho no jornal. O que de fato veio a se confirmar. O Glauber não me pagou mesmo, o cinema não dava dinheiro. Apesar do emprego perdido e da ausência de remuneração, tinha de fazer a escolha. Disse a Vianna que, se não a fizesse, eu seria infeliz.
Quando Moniz concordou com minha opção, a luz voltou tão repentinamente quanto havia se apagado. Saí do local aos pulos de alegria. Pensava que aquele retorno da luz tinha mesmo um sentido. Era uma coincidência que eu via com outros olhos.
B.O
A experiência de fazer Deus e o Diabo foi maravilhosa. Ali se formava o grupo do Cinema Novo. Transformaríamos o cinema numa linguagem de combate. A gente fazia filmes sem depender de Vera Cruz [mais importante estúdio cinematográfico brasileiro dos anos de 1950] e de Hollywood. Daí o slogan “Uma Câmara na Mão e Uma Ideia na Cabeça”. As produções nacionais naquela época recebiam o rótulo de “B.O” [baixo orçamento].
Mas todas tinham ideologia. Quando voltei da Bahia, terminei a faculdade de Direito na Universidade Federal Fluminense, profissão que jamais exerci. Por causa da conclusão do curso, tive um material de José Lins do Rego [escritor paraibano, 1901-1957] custeado pela minha família. Com ele, adaptei um roteiro que ganhou um orçamento do governo carioca para fazer um filme.
Pedi ajuda também ao governo da Paraíba, e levantei recursos para filmar Menino de Engenho [filme de 1965, adaptado do livro homônimo do Lins] – clássico do Cinema Novo. O filme recebeu o prêmio do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro.
Para fazer o Menino de Engenho, voltei-me para as raízes da minha família. Ela é toda nordestina, fui o primeiro da geração a nascer no Rio. Isso me ajudou a fazer o filme, além do meu interesse pelo tema do Lins, que conta o ciclo da cana-de-açúcar no Nordeste. E mostra a opressão daquele povo.
Depois do Menino, não parei mais de filmar – são mais de dez obras cinematográficas. Já na minha segunda produção [Brasil Ano 2000, de 1969], mostrei uma aventura tropicalista. Esse longa ganhou dois prêmios seguidos: Urso de Prata do Festival Berlim, e Concha de Ouro em Cartagena.