Postado em 05/04/2010
O grupo de dança Dzi Croquettes riu do Brasil e ?trouxe nova luz às artes cênicas, ao adotar um modo debochado e provocador de expressar a liberdade
Em 1964 ouviu-se um estouro surdo no Brasil, e o país sofreria algo como uma suspensão, que duraria até 1985. O então presidente João Goulart foi deposto pelos militares. Em dezembro de 1968, o presidente Costa e Silva publicou o Ato Institucional de número cinco, o famoso AI-5, que alterou a Constituição de 1967, fechando o Congresso, suspendendo o direito ao voto, e aplicando, “quando necessário” – como diz o texto –, “medidas de segurança”, entre outras, a liberdade vigiada.
Pouco antes disso, em novembro, entrou em vigor a Lei 5.536, que dispunha “sobre a censura de obras teatrais e cinematográficas”. Foram atingidos, em dez anos, cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro e mil letras de música.
O que ninguém esperava, no entanto, é que, em meio a tanto cinza, um pontinho dourado iria brilhar e iluminar toda uma geração. Era o início dos anos de 1970, e o ex-estudante de medicina Wagner Ribeiro de Souza – que largou a faculdade para virar ator e artista plástico – teve uma ideia: reunir um grupo para montar um espetáculo. Surgia, então, o Dzi Croquettes. “Paradoxalmente, confrontando esse fechamento da mentalidade. Porque ninguém podia pensar, ninguém podia ser diferente, ninguém podia se expressar com liberdade”, conta o cantor Ney Matogrosso no documentário Dzi Croquettes (2009), dirigido por Tatiana Issa e Raphael Alvarez (veja boxe Nonsense no cinema).
Faziam parte da trupe o bailarino e coreógrafo norte-americano, radicado no Brasil, Lennie Dale e os atores e bailarinos Cláudio Gaya, Cláudio Tovar, Ciro Barcelos, Reginaldo de Poly, Roberto de Rodriguez, Bayard Tonelli, Rogério de Poly, Paulo Bacellar, Benedicto Lacerda, Carlinhos Machado e Eloy Simões – além, claro, do próprio Wagner, autor e mentor do grupo. “No dia 8 de março de 1972, eu estava na Galeria Alaska [no Rio de Janeiro] e o Wagner passou e me chamou para tomar uma cerveja”, lembra Bayard Tonelli, também em depoimento que aparece no filme.
“Estávamos eu, Bayard, Reginaldo e Wagner”, complementa Benedictus Lacerda. Em imagem de arquivo, o próprio criador, morto em 1994, fala do encontro: “Eu falei com eles: ‘Vamos montar um espetáculo?’ E eles amaram”.
Feitos de carne
O nome veio ali mesmo. Como a ideia já era apresentar homens vestidos com roupas de mulher, Bayard Tonelli lembrou de um grupo que já fazia algo parecido, em Nova York, chamado The Croquettes. “E nós estávamos comendo umas coxinhas, umas coisas assim, e tinha uns croquetes”, conta Lacerda. Não precisou de mais nada, a imaginação de Wagner deu conta do resto: Os Croquettes – com dois “t”, como os americanos. “Nós não passamos de croquetes, porque somos feitos de carne”, emenda Lacerda, citando as palavras de Wagner na época.
Quanto ao Dzi, já era uma provocação, uma brincadeira com o artigo “the”.
Os artistas que se juntaram a esse núcleo original surgiram das mais diversas formas. Ciro Barcelos, por exemplo, veio a convite de Bayard Tonelli; e Lennie Dale, já famoso no Rio por sua mistura de bossa e jazz, foi apresentado a Wagner por Barcelos, ainda durante os primeiros ensaios, no Cabaré Casanova, no bairro da Lapa, no Rio.
“Eu notei que os meninos tinham uma garra, uma força de vontade tão grande, e que só faltava neles uma técnica de dança”, contou Dale, morto em 1994, numa entrevista que integra o filme de Tatiana e Raphael. “Então o Lennie pegou os ‘brasileiros mocoronga’ e mandou pau em cima. Oito horas todo dia de trabalho, a gente chegava a ficar torto”, rebate Wagner.
Tietes
Dos ensaios no Cabaré Casanova, o grupo, já com Lennie encarregado da coreografia, migrou para a boate Monsieur Pujol, de Luiz Carlos Miéle, empresário da noite carioca. O primeiro espetáculo, Gente Computada Igual a Você, de 1972, era uma grande mistura: números de dança, esquetes cômicas, um climão de cabaré e uma pitada de teatro. “A linguagem era de cabaré, mas, sobretudo, usando o Carnaval carioca, onde os homens se vestiam de mulher”, lembra Lacerda.
A originalidade estética e comportamental dos dançarinos influenciou gerações
No ano seguinte, o Dzi Croquettes veio para São Paulo, com um espetáculo homônimo, produzido pelo cantor Ney Matogrosso, na época integrante da banda Secos e Molhados, contemporânea do grupo e com quem compartilhava algumas características, como a maquiagem pesada e o figurino exuberante. “Inclusive eles eram muito amigos”, informa a diretora Tatiana Issa. “E diz-se que um influenciou o outro ou que o outro influenciou um, enfim, ninguém sabe quem veio primeiro, o ovo ou a galinha.”
O Dzi fez temporada então em casas como a Ton Ton e o Teatro 13 de Maio, onde foi descoberto pela classe artística paulistana. “E eu fiquei muito encantada com a irreverência, com a liberdade, com o talento, com o nonsense, com tudo que eles representavam”, declara a fotógrafa Vânia Toledo. “A partir daí, eu me tornei amiga de alguns deles. Adorava ver o Lennie Dale dançar.”
Vânia conta que o Dzi tinha tudo que interessava a sua geração, sufocada pela ditadura. “Humor, dança, teatro, talento, irreverência, liberdade. Principalmente liberdade de expressão no palco, na dança, na fala, e eram muito engraçados.” Para a fotógrafa, Dzi Croquettes era “quase um estado de espírito”.
É bem possível que Vânia tenha cruzado, sem saber, com a antropóloga Regina Müller na plateia ou nos bastidores do grupo. Regina chegou a participar da vida artística do Dzi. Na verdade, das Dzi Croquettas, já que a antropóloga integrou o elenco do espetáculo As Fadas do Apocalipse, escrito por Wagner Ribeiro e encenado em 1973, no Teatro Ruth Escobar. Entre as Croquettas, estiveram também Lidoka, Leiloca e Regina Chaves, que, mais tarde, iriam integrar o grupo As Frenéticas, cria direta do Dzi (veja boxe Filhos da purpurina).
A antropóloga Regina Müller prepara-se no camarim
Políticos, por que não?
Mas a vida do Dzi não foi só brilho. O furor causado pelo grupo não demorou a chamar a atenção dos censores da ditadura. “A atitude deles era completamente política”, afirma Vânia Toledo. “Tanto que eles só começaram a ser notados pela repressão depois do sucesso absoluto que fizeram. Até então, os censores achavam que era um bando de gays dançando.”
Na verdade, não eram somente os militares que tinham essa opinião. Uma ala da própria classe artística do período, segundo testemunha quem acompanhou a fase, torcia o nariz para o grupo. “O teatro é um meio muito careta, principalmente naquela época”, afirma Vânia Toledo. “Ele era divido entre os sérios e os não sérios.” Na concepção da fotógrafa, os “sérios” podiam ser reconhecidos pela “culpa, aquela coisa com a ditadura, com o sofrimento, não era permitido ser feliz”. O que os colocava em um lado oposto a artistas como os do Dzi. “De repente, o Dzi Croquettes mostra um tipo de solução, que é por meio do humor, da crítica social, do desbunde.”
Abalou Paris
Como aconteceu com boa parte dos artistas brasileiros – “sérios” e “não sérios” –, a repressão não deixou alternativa a não ser sair do país. “Eles tiveram que ir embora, foram proibidos aqui, não podiam mais se apresentar”, conta Tatiana Issa. A primeira parada foi Lisboa, em Portugal, onde eles, digamos, não foram bem compreendidos. Até que o grupo conseguiu dinheiro com o fotógrafo francês Patrice Calmettes e, em 1974, o Dzi aporta em Paris com o espetáculo Dzi Croquettes Internacionales. Tudo resolvido? Ainda não. “A imprensa francesa nos boicotou.
Não falaram uma linha sobre nós”, lembra Benedictus Lacerda. As lantejoulas do Dzi voltaram a brilhar quando a atriz norte-americana Liza Minelli assistiu ao espetáculo. Apaixonada à primeira vista, Liza carregou consigo nomes das artes e do jet set internacionais – dos atores Omar Sharif e Jane Moreau, passando pela cantora e dançarina Josephine Baker, a atriz Catherine Deneuve e o estilista italiano Valentino. Desnecessário dizer que atrás deles veio toda a imprensa francesa. O resto é história. “A coqueluche de Paris era assistir ao Dzi Croquettes”, arremata Rogério de Poly.
O próximo passo seria Nova York. Aí, sim, poder-se-ia dizer que o mundo estaria aos pés do grupo. Mas a vontade de voltar ao Brasil puxou o freio do Dzi. Um fazendeiro baiano os convidou a voltar e, aqui, isolados no interior da Bahia, tiveram início as brigas e os excessos. “Eu acho que o que acabou com o Dzi Croquettes foram as drogas, lamentavelmente”, analisa Vânia Toledo.
“E eu digo lamentavelmente porque é muito triste pessoas brilhantes irem embora cedo por excessos.” O grupo não acabou ali. Uma divergência entre Lennie Dale e Cláudio Tovar, a respeito de um cenário, provocou um racha. Depois disso, o Dzi, com uma formação diferente, que incluía o diretor Jorge Fernando, faria mais dois espetáculos. Romance, em 1976, e Dzi Croquettes – TV Croquette Canal Dzi, em 1980.
Filhos da purpurina
O Dzi Croquettes teve uma carreira rápida, mas isso não o impediu de influenciar artistas de sua época e da geração seguinte
Sérgio Sampaio e Erasmo Carlos com As Frenéticas
“Eu acho que eles são o símbolo de uma era, a era do desbunde, macho, fêmea. Eles eram sexy em cena”, diz o ator, autor e diretor de teatro Miguel Falabella no documentário Dzi Croquettes (2009), de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, exibido em março no CineSesc. O diretor não foi o único “freguês” dessa fonte. Toda uma geração que se seguiu à do grupo – mais fortemente a dos artistas que surgiram nos anos de 1980 – confessam-se influenciados. “O teatro chamado besteirol, que proliferou no Brasil nos anos de 1980, foi ali que começou”, analisa o jornalista Dário Menezes, no filme.
“Miguel Falabella, Mauro Rasi, Vicente Pereira, Guilherme Karan...” O grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone era o que mais abertamente lembrava o Dzi no quesito besteirol. Dele, saíram figuras como Regina Casé, Luís Fernando Guimarães e Evandro Mesquita.
Na televisão, o programa TV Pirata, atração da Rede Globo de meados da década de 1980, tinha na sua raiz muito do nonsense criado por Wagner. “Foi do TV Croquette [Dzi Croquettes – TV Croquette Canal Dzi, de 1980], último espetáculo deles, que veio a TV Pirata”, sugere Tatiana Issa.
No campo da música, o Frenéticas (na foto, com Sérgio Sampaio e Erasmo Carlos), grupo formado no final dos anos de 1970, é uma influência direta do Dzi. Na década seguinte, o conjunto ditou moda com hits como Dancing Days, Feijão Maravilha e Perigosa. “A gente fez uma versão feminina mesmo do Dzi”, relata, também no documentário, Lidoka, uma das ex-integrantes do grupo.
Nonsense no cinema
Filme sobre o grupo Dzi Croquettes participa de festival de documentários musicais, em São Paulo
Filme de Tatiana Issa e Raphael Alvarez: destaque no In-Edit, no CineSesc
Em sua segunda edição, o In-Edit – Festival Internacional do Documentário Musical apresentou, de 18 a 28 de março, em São Paulo, uma seleção de 73 títulos – entre produções nacionais e estrangeiras, curtas e longas-metragens. Os trabalhos foram divididos em sete núcleos: Competição Nacional, Mostra Brasil, Retrospectiva Brasil, Brasil.doc, Curta o Som (dedicado aos curta-metragens), Sessões Especiais e Docs Internacionais.
O evento ocupou sete salas da cidade, entre elas o CineSesc, que, como parte da Competição Nacional, exibiu, no dia 22 de março, o documentário de longa-metragem Dzi Croquettes (2009), de Tatiana Issa e Raphael Alvarez. “Resolvemos inicialmente, entrevistar os Dzi Croquettes ainda vivos, para termos isso em arquivo”, diz Raphael.
No entanto, o universo a ser descoberto pela dupla era maior do que ela suspeitava. “A gente foi fazer as entrevistas com os integrantes e cada um ia indicando outra pessoa”, emenda Tatiana.
Quando os cineastas se deram conta, já tinham colhido, em dez dias, depoimentos de 45 pessoas, entre ex-integrantes, artistas e amigos que conviveram com o Dzi Croquettes. “A gente fez o filme inteiro sozinhos, eu e o Rapha.”
A única ajuda que os dois receberam na empreitada de resgatar a história do grupo veio do Canal Brasil, que entrou como co-produtor do projeto. “É importante dizer isso”, afirma Tatiana. “Porque ninguém mais abriu as portas para a gente – e depois todos se arrependeram quando a gente ganhou os prêmios.” Entre eles, o do Festival do Rio de Janeiro, da Mostra Internacional de São Paulo e o do Palm Springs Internacional Festival, nos Estados Unidos.
Quem perdeu a exibição de Dzi Croquettes na mostra pode ficar tranquilo. Segundo Tatiana Issa, o filme deve entrar em cartaz no Brasil na primeira semana de junho. ::