Postado em 07/05/2008
Desconhecido no Brasil, Políbio Alves tem obras publicadas em Cuba, na Espanha e na Itália
CELIA DEMARCHI
Políbio Alves / Foto: Marcus Antonius
Aos 68 anos, o poeta Políbio Alves tem um sonho: ser lido – e reconhecido – em seu país, o Brasil. Enquanto os brasileiros não o descobrem, porém, sua obra vai ganhando as prateleiras do mundo.
Em Cuba, por exemplo, seu livro Varadouro integra o acervo da Casa das Américas desde 1990. O poema épico de 77 páginas, centrado no rio Sanhauá, que atravessa a cidade natal do escritor, João Pessoa, capital da Paraíba, e O que Resta dos Mortos, livro de contos, foram traduzidos para o espanhol e publicados simultaneamente na ilha de Fidel Castro em 1998. Já nos anos 1990, a obra de Políbio Alves entrou para o acervo da Casa do Brasil, em Madri, Espanha. E em 2000 o poeta ganhou destaque em uma coletânea publicada em Trento, na Itália, que reuniu mais de 400 autores de diversas nacionalidades, após levar o primeiro lugar do prêmio Autore dell’Ano, da Edizioni Universum, em 1999. Ainda nesse ano, Políbio Alves conquistou outra láurea, esta da União Brasileira de Escritores, do Rio de Janeiro. Pouco mais tarde, em 2002, se destacaria na vizinha Argentina – foi um dos 120 finalistas do prêmio Nuevos Escritores Latinoamericanos, da Editorial Nuevo Ser, que integraram uma coletânea editada em Buenos Aires.
Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, autores da Enciclopédia de Literatura Brasileira, vergaram-se à repercussão internacional e lhe concederam um verbete. Apesar disso, no Brasil, somente alguns dos conterrâneos mais intelectualizados do escritor conhecem, por enquanto, sua obra. Para ver Varadouro impresso em português, Políbio Alves teve de bancar do próprio bolso a primeira edição, em 1989. O livro está agora na terceira tiragem, esta patrocinada por órgãos públicos e empresas privadas de João Pessoa.
Sua primeira obra publicada, no entanto, foi O que Resta dos Mortos, em 1983, por meio do Conselho de Cultura da Paraíba. Já Exercício Lúdico: Invenções & Armadilhas, de poesia, saiu do prelo em 1992, pela Editora Idéia, de João Pessoa, depois que o poeta venceu o prêmio do Gabinete Paraibano de Cultura. Passagem Branca (poesia) derrotou 10.177 obras inscritas e levou o conceituado prêmio literário Augusto Motta, no Rio de Janeiro, em 1977, mas seria publicado apenas 28 anos depois, em 2005, ainda no estado natal do escritor, pela Dinâmica. Editores do sudeste jamais o procuraram.
A obra de Políbio Alves atravessou as fronteiras na bagagem de intelectuais da Paraíba. Um deles, o escritor Carlos Alberto de Azevedo, levou seus livros para a Alemanha e fez de Varadouro objeto de estudos na Universidade Livre de Berlim, onde ele lecionou nos anos 1990.
Nascido em 8 janeiro de 1941, no bairro Cruz das Armas, periferia de João Pessoa, o poeta é dono de uma biografia singular. Até os quatro anos, perambulou por várias cidades do nordeste com a família – o pai era uma espécie de caixeiro viajante. Após a morte precoce do pai, aos 28 anos, volta a Cruz das Armas com a mãe, que o alfabetizou. Aos 10, muda-se para o Varadouro, bairro operário às margens do rio Sanhauá que deu origem à capital paraibana.
Varadouro e Ilha do Bispo, onde ele passou o resto da infância e a adolescência, inspirariam toda a sua obra, marcada também pela dura experiência nos anos de chumbo brasileiros – Políbio Alves foi preso político no Rio de Janeiro, sem jamais ter sido militante de esquerda: "Meu texto traduz a nossa realidade. Tento mostrar isso, sou teimoso, sem nenhuma máscara, sem nenhuma ofensa. A maioria da arte é muito bem comportada".
Problemas Brasileiros – Quando você começou a se interessar por literatura, por escrever?
Políbio Alves – Tinha uns 10 anos e morava ao lado de uma escola, dessas de fundo de quintal. Como mamãe não podia pagar, ficava na porta da escola e logo estava dentro da sala. Entrei de penetra. A professora, Nice, quando viu que eu já sabia ler [a mãe o ensinava, à noite, após voltar do trabalho], ficou surpresa e me tomou como ajudante na sala. Tinha muito livro lá e eu comecei ali a minha produção. Não sabia o que era poesia, mas tinha facilidade de fazer rimas, versinhos curtos. A partir daí foi que comecei.
PB – Depois disso, você continuou estudando?
Políbio – Aos 12 anos fui trabalhar num hotel no centro de João Pessoa e estudar à noite. Mas menor de idade recebia metade do salário mínimo, e eu precisava de muito mais. Passei a trabalhar à noite também – largava às seis da manhã e voltava ao meio-dia. Muitas vezes nos intervalos ia para a biblioteca do Sesc, que ficava próxima ao hotel. Meus brinquedos eram os livros.
PB – E como estudou?
Políbio – Era considerado louco porque acompanhava os livros escolares, mas não frequentava escola! Para entrar no que era então o ginasial fui à Secretaria de Educação, eles fizeram uma sabatina comigo e me deram autorização. E por aí foi a minha vida.
PB – E quando você descobriu que seu negócio era mesmo escrever?
Políbio – Não sabia se meu negócio era esse, mas sabia que isso me completava, me dava prazer. Eu pensava em sair de João Pessoa, conseguir um emprego melhor, fazer um concurso público, voltar e cuidar da minha família. Em 1965, fui para o Rio de Janeiro. Cheguei com uma mala de papelão e o equivalente a uns R$ 20 no bolso.
PB – Você conta em "Notas à Margem", em O que Resta dos Mortos, que rasgou quase tudo o que escrevera antes de viajar. Por quê?
Políbio – Porque não me satisfazia. Fui para o Rio de Janeiro somente com os originais de um livro chamado Exercício Lúdico. Era muito imaturo. E, francamente, não fui para o Rio para fazer literatura, mas para buscar um emprego.
PB – Por que você foi morar na Lapa, um bairro da chamada boca do lixo, na época?
Políbio – O professor de um colégio aqui de João Pessoa recortava os jornais para ensinar as categorias gramaticais. Num desses pedaços de jornal, eu tinha lido "aluga-se vaga para solteiros na Lapa". Isso marcou minha vida. Eu não sabia o que era a Lapa, era de uma ingenuidade, de uma inocência. Fui morar em casa de estudantes, não tinha vaga e eu dormia no chão.
PB – E como foi que você voltou a estudar no Rio?
Políbio – Eu tinha o segundo ano do segundo grau e queria fazer o clássico. Passei um ano indo ao Ministério da Educação para pedir uma vaga e não consegui. Aí descobri um lugar chamado "Calabouço", que era um restaurante, onde os estudantes se reuniam para organizar manifestações contra a ditadura. Eu e outros nordestinos fundamos no Calabouço um curso supletivo, o Artigo 99. Foi assim que consegui o certificado do segundo grau – tivemos de criar um curso supletivo, onde ao mesmo tempo eu estudava e lecionava.
PB – Você também colaborou na "Tribuna da Imprensa", nos anos 1970. Como foi que começou?
Políbio – Muito simples: mandei uma carta desaforada, um depoimento, e eles publicaram. A partir daí comecei a colaborar no suplemento cultural. Para você ver como eu era uma pessoa inocente. Por que fui para o Calabouço, que era considerado inimigo número um dos militares? Porque precisava comer. E por que fui para a "Tribuna", o jornal mais combativo? Porque era o que publicava meus textos.
PB – A ingenuidade lhe custaria caro...
Políbio – Fui preso no dia 1º de maio de 1968, na pensão onde morava. Me levaram para o DOI-Codi, na Barão de Mesquita. Não gosto de falar sobre isso, sabe? É tão doloroso [a voz se embarga]. Eu nem era comunista, mas fazer parte do Calabouço já era credencial para ser preso e torturado. E o Edson Luís, que eu levei para lá? Mas no meu texto, a vida toda, vou falar sobre isso. Mesmo que não tenha palavras para descrever, de tão absurdo...
PB – Edson Luís era o estudante secundarista que foi assassinado dentro do Calabouço, em 1968?
Políbio – Sim. E quase presenciei o assassinato, eu estava a uns 100 metros, ouvi os tiros. Ele estava esperando o jantar, a polícia chegou atirando. Aloísio Raposo, nunca vou esquecer o nome do militar que atirou nele. Cheguei com o pessoal, puxando o corpo, e a polícia querendo esconder. Conheci o Edson Luís, que era de Belém do Pará, na Cinelândia e o levei para o Calabouço. Ele foi meu aluno.
PB – No Rio, você chegou a conviver com escritores como Manuel Bandeira e Clarice Lispector. Como os conheceu?
Políbio – Eu frequentava o ambiente literário, já tinha ganhado meu primeiro prêmio no Rio, em 1968, o Henry Miller de Crítica Literária. Fiquei milionário, eu, que não tinha um tostão, porque o dinheiro desse prêmio deu para comer por uma semana e comprar uma máquina de escrever [uma Olivetti Lettera] que ainda hoje tenho. Mas todo esse povo também participava do suplemento da "Tribuna da Imprensa". Eu reencontrei nessa época o Ediberto Coutinho, que é da Paraíba, e o Aguinaldo Silva, que era meu amigo, aqui do nordeste, e morava no Recife.
PB – E por que você decidiu voltar para João Pessoa?
Políbio – Eu me formei em administração, fiz concurso público em nível nacional para técnico de administração, passei e pude voltar, em 1980, como funcionário do Ministério do Trabalho. Depois fiz outro concurso aqui, e assim tem sido a minha vida. Mas tive vários empregos no Rio de Janeiro, só não fui assaltante nem travesti.
PB – Mas você já tinha ganhado prêmios, estava se estabelecendo...
Políbio – Veja como é a minha ingenuidade. Cheguei a trabalhar, depois de formado, nas editoras Francisco Alves e Rocco. Nunca mostrei meus textos lá e talvez eu tivesse tido facilidade de publicar na época. Eu queria voltar para João Pessoa, publicar na minha terra. Mas depois descobri que livro editado na Paraíba ninguém conhece. Este país é um continente, e nos meios acadêmicos nacionais não se fala de textos que ninguém conhece, só dos canonizados, que dão Ibope.
PB – Como seu trabalho foi parar em Cuba, na França, na Alemanha, na Itália?
Políbio – Temos aqui uma pioneira, paraibana de Campina Grande, chamada Elizabeth Marinheiro [doutora em literatura e crítica literária], que viaja bastante pelo mundo, levando textos de autores que ainda não foram consagrados. Ela bate palmas para Drummond, mas acredita nesses outros textos também. Foi por causa dela que fui para Portugal pela primeira vez, em 1994, participar de um congresso internacional de literatura em Lisboa. Ela me convidou para lhe fazer companhia, mas no final não pôde viajar e tive de ir sozinho. Eu não queria, achei que não saberia o que dizer lá, mas ela me disse para falar sobre o meu texto. Levei O que Resta dos Mortos. Era para falar 20 minutos, foram 40! Esse congresso foi uma vitrine.
PB – Foi assim que sua poesia chegou a Cuba?
Políbio – Foi talvez por meio desses eventos de que a Elizabeth Marinheiro participa. Comecei a receber correspondências de Cuba em 1990. Em uma delas, me pediram para autorizar uma tiragem de Varadouro para compor o acervo da Casa das Américas. Fiquei muito feliz e autorizei de imediato. Depois, eles acabaram publicando dois livros meus, de uma só vez, em 1998 (Varadouro e O que Resta dos Mortos).
PB – Você diz que Varadouro é um épico.
Políbio – Li tudo sobre épico e minha intenção foi essa, mas não quis fazer como todos os outros. No meu caso, o centro do épico não é um ser humano, mas um rio, o Sanhauá. Já falaram tanto sobre o Sena, o Tejo, por que não falar do Sanhauá? Varadouro tem o rio como centro para falar de tudo o que acontece às suas margens, desde o início da história da cidade.
PB – Quantos versos tem Varadouro?
Políbio – [rindo] Ah! Desculpe, não sei não, nunca tive a menor curiosidade sobre isso! [O livro tem 77 páginas de versos.] Agora, fiz outro épico, chamado Havana Vieja: Olhos de Ver, que tem 306 páginas e é também um poema.
PB – E como você começou a escrever sobre Cuba? Havana Vieja é parte de uma trilogia que está no prelo, não?
Políbio – Continuei recebendo correspondências de Cuba depois que meu livro foi para a Casa das Américas, mas não dava a mínima. Aliás, rasguei todas as informações que tinha sobre Cuba, porque eram tendenciosas, mentirosas. Não estou dizendo que Cuba é um paraíso. Mas já andei por alguns países e nunca vi nenhum como Cuba. Eu sou a maior prova: não sou comunista nem socialista, não tenho dinheiro e eles me publicam dois livros de uma vez, traduzidos! Onde é que no meu país, mesmo na minha província, acontece uma coisa dessas? Só se eu fosse político!
PB – Fale da trilogia.
Políbio – Visito Cuba desde 1996. Um dia recebi uma correspondência que me levou às lágrimas: foi quando encontraram os restos mortais de Che Guevara na Bolívia e me convidaram a participar da comitiva de intelectuais estrangeiros na homenagem a ele, em 1997. Eu tinha paixão por Che, não por Fidel ou Cuba, porque eu mal conhecia o país. Aquilo buliu comigo. Fui com um grupo, fiquei na casa de uma família cubana. Quando cheguei lá, meu editor, Enrique Cirules, estava me esperando, querendo me conhecer. Esse senhor era analfabeto em 1959. Hoje fala, escreve e traduz em dez idiomas.
PB – E a trilogia?
Políbio – Ah, sim, não tinha ideia de escrever. Mas caminhando pelas ruas de Cuba, em Havana Vieja, descubro meu Varadouro. Aí me apaixonei! Parece um pouco também com São Luís do Maranhão, com Salvador. Fui ler, pesquisar. E o que descobri não foi por informações teleguiadas, não. Conheci Cuba convivendo com o povo. Já fiz seis viagens para lá, de 1996 a 2002. Nunca escrevi tanto na minha vida, nunca me agoniei tanto. Porque tenho cuidado, não conhecia nada do país e seria a última pessoa do mundo a ofender o povo cubano.
PB – E quais são os títulos da trilogia, o que já está pronto?
Políbio – A Leste dos Homens, um romance que fala da ditadura no Brasil e como foram aqueles anos em Cuba. A Traição de Hemingway conta a história de um escritor brasileiro que vai a Cuba se encontrar com Hemingway, mas ele está indo para os Estados Unidos. Ambos já estão traduzidos.
PB – Você diz em "Notas à Margem" (O que Resta dos Mortos) que tem dificuldade para escrever. Você seria um perfeccionista?
Políbio – Não, não é isso, não. Eu só entrego o texto quando me sinto bem. Mas aqui na minha terra tem pessoas que escrevem um livro em dois, três dias, eu não tenho inveja disso, não [rindo].
PB – E como você se define como escritor?
Políbio – Eu? Quero espantar, surpreender as pessoas. Quero que leiam e digam que esse escritor não é igual a outro que já leram.
PB – Você usa uma forma bem própria de pontuar o texto...
Políbio – [rindo] Sim, lógico, eu sou eu, não sou um Machado de Assis. Quem manda sou eu, ninguém mais.
PB – Quando você usa uma vírgula de forma inusitada, como acha que o leitor apreende isso, qual é o propósito?
Políbio – É para assustá-lo, eu acho, fazê-lo parar um pouco e pensar, não ficar correndo.
PB – Há muito de autobiográfico em sua obra?
Políbio – Muito e nada ao mesmo tempo. Minha história é tão simples. Na minha família não tem nenhum político, padre, santo, ditador, estuprador. A realidade, se você tem olhos para ver, é muito mais gritante, instigante, às vezes disfarçada, quero tirar esse disfarce e mostrar as vísceras dela.
PB – Que autores nacionais você considera injustiçados, com pouco reconhecimento?
Políbio – É pouco, pouquíssimo, o reconhecimento de Hilda Hilst, viu? Eu a conheci pessoalmente na Casa do Sol, em Campinas. Estava já totalmente diferente daquela mulher belíssima, deslumbrante. Amarga, não sorria com nenhuma brincadeira. Depois entendi por quê: a vida em si não é fácil, não, para quem se dá ao respeito, tem dignidade. Só o pessoal oba-oba é que acha tudo maravilha.
PB – Quais são os autores da literatura universal que você mais admira?
Políbio – Sartre. Conheci Sartre no Recife, nos anos 1960, eu e Aguinaldo Silva, saíamos seguindo ele pela rua. Admiro toda a obra dele. Também gosto muito de Camus. Tem pessoas que admiram toda uma biblioteca. Não, meu espaço para admiração é muito pouco. Gosto de Machado de Assis, de Drummond. Mas não há só esses. O Aguinaldo [Silva] é bom, não é? O Caio Fernando Abreu é deslumbrante...
PB – Que expectativas você tem para sua obra?
Políbio – Eu gostaria de ser lido, reconhecido no Brasil. E não tenho nenhuma esperança de que isso venha a acontecer, viu? Mesmo que eu já tenha extrapolado o Atlântico, o Sanhauá, porque não há uma política cultural com esse interesse. Existem produtos direcionados a determinado tipo de consumo. Literatura não é isso.
PB – Você acha que hoje a situação está ainda pior do que já foi?
Políbio – Sim, porque a tendência é desvincular as pessoas da realidade. Não existe um plano de educação, e com educação vem tudo.
PB – Apesar de tudo isso que conversamos, sua literatura não parece de apelo essencialmente social.
Políbio – Sim, mas o social está incluído no ser humano, com todas as suas características. É isso. Não acredito que nenhum escritor ou poeta não seja um "confessionador" social. Ele tem de ser isso, nos seus dias. O futuro fica para depois. O meu futuro é hoje.