Postado em 22/12/2008
Origem da Violência
por Nancy Cardia
Mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Nancy Cardia representa o Núcleo de Estudos da Violência (NEV), ligado à USP, do qual é diretora adjunta junto à Organização Mundial de Saúde (OMS) para discussões ligadas à prevenção da violência – um trabalho desenvolvido pelo Departamento de Prevenção de Violência e de Lesões do órgão mundial. Ph.D., também em psicologia, pela London School of Economics and Political Science, a convidada da seção Encontros deste mês é vice-presidente do Instituto São Paulo contra a Violência e organizadora das séries de livros Polícia e Sociedade – 11 volumes editados pela Edusp com recursos da Fundação Ford – e Educação em Direitos Humanos, cinco títulos lançados pela Edusp em conjunto com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Na conversa com o Conselho Editorial da Revista E, a psicóloga, que atua nas áreas de direitos humanos, justiça social e violência urbana, falou sobre o trabalho desenvolvido no NEV há nove anos e contou um pouco sobre o resultado das pesquisas feitas pelos grupos de trabalho dos quais já participou. Os resultados desses estudos são, segundo ela, “traumatizantes”.
“Nós ficamos absolutamente pasmos com o desempenho da polícia, do Ministério Público e do Judiciário”, comenta, referindo-se a um trabalho cujo objetivo era juntar as pontes de diversos casos de violência em São Paulo – fatos largamente explorados pela mídia e de grande impacto na sociedade em sua época – e que, muitos deles, foram encerrados sem conclusão ou punição dos culpados. “O que a gente viu ao longo dessas reconstruções foi a geração de um incrível e absurdo processo de impunidade”, revelou. A seguir trechos.
Início das Pesquisas em Violência
Comemoro esse mês 19 anos no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. Antes, trabalhei 13 anos no IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas – com habitação e fiz muita pesquisa em favelas e conjuntos habitacionais. Na minha tese de doutorado, trabalhei com associações de moradores: escolhi duas comunidades muito parecidas em termos demográficos e nas conquistas feitas junto ao poder público; o que variava era o tipo de liderança exercida dentro da associação. Em uma, a liderança era democrática e, na outra, profundamente autoritária. Descobri que a liderança democrática não necessariamente conseguia garantir a participação da população ou era percebida como boa. A população achava que um líder que consultava a população era fraco; o líder forte era o que mandava. Nessa pesquisa, vi muita violência e o peso que essa violência tinha em afastar os moradores uns dos outros, em criar territórios proibidos de circulação, e assim por diante.
Democracia e NEV/USP
Nancy Cardia é psicóloga e diretora adjunta do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP). Esteve presente na reunião de pauta do Conselho Editorial da Revista E no dia 19 de novembro de 2008. |
Violações dos Direitos Humanos
Nosso trabalho seguinte foi sobre a continuidade, em plena democracia, das graves violações de direitos humanos. Isso representado pela continuidade da presença na nossa sociedade de linchamento, execução sumária e uso abusivo da força letal pela polícia. Hoje temos um banco de dados com notícias de jornal, de 1980 até os dias atuais, sobre esses três temas. Não existe um momento até agora em que se possa dizer que desapareceu o linchamento ou a execução sumária. Escolhemos, então, 28 casos do município de São Paulo até os anos de 1990 e os reconstruímos, a partir da recuperação da documentação, desde o inquérito policial até o sentenciamento, quando houve. Voltamos às localidades onde os crimes ocorreram e entrevistamos a população, delegados, promotores e juízes. Praticamente todos os casos ficaram impunes; casos de tortura que levaram à morte eram reclassificados para lesão corporal grave, e, como tal, prescreviam e eram arquivados.?Começamos a nos perguntar o que fazer para melhorar, porque, apesar de uma entidade acadêmica, nos preocupamos em como mudar a realidade que identificamos.
Polícia
Isso nos levou a fazer um estudo sobre seleção, treinamento e estrutura de carreira de delegados, oficiais da PM, promotores e juízes no estado de São Paulo. Identificamos uma série de problemas, por exemplo, que as corregedorias dessas corporações não dialogavam com quem selecionava, treinava e fazia as promoções. A idéia de que possam existir problemas de desempenho decorrentes da maneira como esses profissionais eram recrutados não ocorria a eles. Descobrimos que a Academia de Polícia Civil não adquiria livros há décadas. A partir daí, conseguimos recurso para promover o contato entre as polícias do Canadá e Brasil, trazendo as experiências de policiamento comunitário de lá, como uma tentativa de estabelecer?controle externo sobre a atuação da polícia. Já com a Fundação Ford, conseguimos apoio para uma coletânea de 11 títulos sobre administração de trabalho policial, inovações etc., que foi editada pela Edusp, a série Polícia e Sociedade, que está sendo complementada agora com um livro baseado em uma pesquisa que fizemos em associações de moradores na cidade de São Paulo, A Polícia que a Sociedade Deseja. Com recursos da União Européia, já treinamos 200 policiais civis e militares, juízes e promotores no estado. Esse trabalho do Canadá também nos levou a estudar os conceitos comunitários de segurança. Desde 1985, cada delegacia de polícia, cada batalhão de polícia militar, nas diferentes regiões de São Paulo, tem que ter um conselho de segurança da comunidade. É interessante porque todo mundo diz que não funciona, mas estão aí há 23 anos e os cidadãos continuam insistindo que querem uma polícia diferente – apesar da insatisfação, a população continua insistindo na mudança.
“Nosso trabalho seguinte foi sobre a continuidade, em plena democracia, das graves violações de direitos humanos. Isso representado pela continuidade da presença na nossa sociedade de linchamento, execução sumária e uso abusivo da força letal pela polícia”