Postado em 07/05/2008
Quatro séculos depois do primeiro telescópio, os homens continuam fascinados pelas estrelas
EVANILDO DA SILVEIRA
Soar, no Chile: Brasil é sócio majoritário
Foto: Augusto Damineli
Desde 30 de novembro de 1609 a humanidade nunca mais olhou o céu como antes. Nas primeiras horas da noite daquela segunda-feira sem nuvens em Pádua, na Itália, os astros ficaram mais próximos da Terra. Nessa data, Galileu Galilei (1564-1642) fez sua primeira observação astronômica a olho armado documentada. Usando um pequeno telescópio, feito por ele mesmo, ele observou a Lua crescente. Hoje, depois de o homem ter pisado no solo lunar, parece pouco. Mas foi uma verdadeira revolução científica. No mesmo ano, o alemão Johannes Kepler (1571-1630) publicou seu livro Astronomia Nova, no qual formulava as leis dos movimentos planetários, demonstrando que, ao contrário do que se acreditava, as órbitas dos planetas em torno do Sol são elípticas e não circulares. Para marcar os 400 anos desses feitos científicos, a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou 2009 o Ano Internacional da Astronomia (IYA, na sigla do nome em inglês).
A ideia é tornar o IYA 2009 um dos maiores eventos de divulgação científica do mundo. Entre suas ambiciosas metas estão a difusão na sociedade de uma mentalidade científica e de uma imagem moderna da ciência e dos pesquisadores; a promoção de comunidades astronômicas em países em desenvolvimento e do acesso a novos conhecimentos e experiências observacionais. "O principal objetivo é fazer com que as pessoas redescubram as ligações da humanidade com os astros", explica o astrônomo Augusto Damineli, da Universidade de São Paulo (USP), encarregado de organizar a programação do evento no Brasil. "Através do fascínio da astronomia, esperamos que o público se aproxime e tome gosto pela ciência."
Como contato do IYA 2009 no Brasil, sua tarefa também é levantar recursos financeiros e, principalmente, humanos para o evento. Há hoje mais de 2 mil cientistas, astrônomos amadores e educadores trabalhando em sua organização e divulgação. Em termos de dinheiro, o governo federal vai investir R$ 6 milhões. Apenas um dos programas prevê a distribuição de 50 mil lunetas a escolas públicas que participam da Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica (OBA). De acordo com Damineli, numa sociedade tecnológica como a atual, é imprescindível que as pessoas entendam os métodos e benefícios da ciência. "Esperamos que percebam que, ao atacar problemas que parecem distantes do cotidiano e meio mirabolantes para o cidadão comum, os pesquisadores descobrem coisas que revolucionam profundamente nossa tecnologia", diz.
A cerimônia de abertura internacional do IYA 2009 aconteceu em Paris, nos dias 15 e 16 de janeiro, com a participação de representantes de mais de 130 países. No Brasil, foi organizada uma semana de abertura, que ocorreu em várias cidades, entre os dias 19 e 28 de janeiro. Além disso, durante todo o ano serão realizadas diversas atividades pelo mundo, como observações públicas com telescópios, palestras, exibições multimídia, sessões especiais de planetários, exposições e eventos artísticos. A rede brasileira do IYA 2009 oferecerá uma ampla lista de atividades, entre elas a oportunidade para que pelo menos 1 milhão de pessoas vejam o céu através de telescópios.
Também acontecerá no Brasil a XXVII Assembleia Geral da União Astronômica Internacional (IAU, na sigla do nome em inglês), o mais importante encontro de astrônomos do mundo, que reunirá pesquisadores de vários países, entre 3 e 14 de agosto, no Rio de Janeiro. "É muito importante para a astronomia brasileira que essa assembleia seja realizada em nosso país, pois ela tem um impacto muito grande", diz a vice-presidente da IAU, Beatriz Barbuy, da USP. "Há um rodízio entre continentes e países e nós concorremos com a China, os Estados Unidos e o Canadá. Consideraram que era mais útil no Brasil. A próxima, em 2012, será na China."
Marcação do tempo
Para muita gente, observar os astros pode parecer apenas um passatempo de curiosos. Afinal, qual é a importância para a vida de uma pessoa saber, por exemplo, se buracos negros, pulsares, quasares, estrelas gigantes e anãs ou outros astros exóticos existem ou não? Muita. A astronomia tem inúmeras aplicações práticas, bem terrenas. Foi graças a ela, pode-se dizer, que o homem prosperou e sobreviveu neste pequeno planeta que gira ao redor do Sol.
Desde a Antiguidade, todas as civilizações vêm observando estrelas, cometas e planetas. Mais do que tentar desvendar os mistérios do cosmo, elas tinham objetivos concretos. "A astronomia sempre teve uma grande importância na vida diária do homem", diz o astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, do Museu de Astronomia e Ciências Afins e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. "Foi ela que permitiu a medida do tempo, ou seja, a determinação da hora e a elaboração dos calendários."
Com isso, foi possível prever os eventos cíclicos dos quais dependia a sobrevivência humana, como a chegada das estações do ano, das chuvas ou do frio, o que era fundamental para os povos plantarem e colherem nas épocas mais adequadas. Os primeiros registros históricos dessas observações astronômicas nos foram legados pelos egípcios. Por volta de 750 a.C., eles começaram a utilizar o movimento do Sol para contar o tempo e desenvolveram os primeiros relógios solares.
Mais tarde, em 140 da era cristã, surgiu a mais duradoura explicação de como era o universo e como os astros se distribuíam nele. Em sua obra Almagesto, o grego Cláudio Ptolomeu sistematizou o conhecimento reunido até então, apresentando um modelo em que a Terra ficaria no centro, e os planetas e estrelas girariam ao seu redor. Essa ideia só foi derrubada em 1543, pelo astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), com sua teoria do heliocentrismo. De acordo com ela, os planetas do sistema solar giram ao redor do Sol. Essa tese foi apresentada em seu livro Das Revoluções das Esferas Celestes, publicado naquele ano. Embora não aceita pela Igreja Católica, a teoria passou a ser um referencial nas pesquisas astronômicas.
Naquele dia em que apontou seu telescópio para o céu, Galileu ajudou a confirmar que a teoria heliocêntrica de Copérnico estava correta. Na verdade, o modelo de Ptolomeu foi posto abaixo com a ajuda das descobertas de pelo menos outros dois grandes cientistas: Kepler e Tycho Brahe (1546-1601). "Copérnico deu grande contribuição ao propor que o Sol estava no centro do sistema solar", explica Mourão. "Kepler, por sua vez, para afirmar que as órbitas dos planetas eram elípticas, se baseou nos dados coletados sobre Marte durante anos, a olho nu, por seu mestre, o astrônomo dinamarquês Tycho Brahe."
A Lua não é perfeita
Equipado com "olhos" que aproximavam coisas distantes, Galileu em pouco mais de quatro meses viu mais do que Brahe em anos. "Entre 30 de novembro e 19 de dezembro ele se dedicou a observar a Lua", conta o engenheiro e astrônomo Tasso Augusto Jatobá Napoleão, professor de cursos de extensão do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG), da USP. "A conclusão que tirou com o que viu nesse período ele deixou para a posteridade no livro Sidereus Nuncius (em português, a tradução mais frequente é O Mensageiro das Estrelas, mas também há versões como O Mensageiro Sideral): ‘A partir de muitas observações dessas manchas lunares, nos convencemos de que a superfície da Lua não é lisa, uniforme e exatamente esférica, como um grande número de filósofos acredita sobre esse e sobre outros corpos celestes. Ao contrário, ela é desigual, rústica e com muitas cavidades e depressões, não diferente da face da Terra, cheia de cadeias de montanhas elevadas e vales profundos’."
O interesse de Galileu não se limitou à Lua, no entanto. Foi muito além. De dezembro a março de 1610, apontando seu instrumento para a Via Láctea, a faixa esbranquiçada que pode ser vista no céu noturno, ele descobriu que ela é na verdade um formigueiro de estrelas. "Ele também verificou que o planeta Vênus tem fases como a Lua", diz Mourão. "Ao mirar Júpiter, encontrou quatro luas que giravam ao seu redor, como se fosse um sistema planetário em miniatura." Hoje as quatro, batizadas de Io, Europa, Ganimedes e Calisto, são conhecidas como os satélites galileanos do planeta. Foram descobertas fundamentais para comprovar a teoria do heliocentrismo, pois Vênus só poderia ter fases se girasse em torno do Sol. Assim, como os satélites de Júpiter demonstravam, há corpos em órbita de outros planetas e, portanto, nem tudo gira ao redor da Terra.
Desde a época de Galileu, os recursos para observar os astros progrediram muito, e o conhecimento que temos do universo é infinitamente maior. "Os grandes telescópios em Terra e no espaço estão revelando novos fatos todos os dias", diz o astrônomo Sylvio Ferraz Mello, da USP. "É um estonteante carrossel de descobertas." Às vezes, no entanto, elas surgem inesperadamente e sem que seja necessário olhar para o céu. A radiação cósmica de fundo, considerada pela maior parte dos cosmologistas a melhor evidência do modelo do Big Bang de criação do universo, é um exemplo disso. Trata-se de uma radiação que se originou cerca de 300 mil anos depois dessa explosão primordial.
Ela foi detectada por acaso em 1964, quando dois cientistas americanos, o astrofísico Arno Penzias e o físico Robert Woodrow Wilson, estavam testando um delicado receptor de micro-ondas usado em pesquisas de comunicações para a Bell Telephone Laboratories. Eles registraram um estranho ruído de origem desconhecida. Investigando, descobriram que ele não vinha de nenhum lugar da Terra, nem do sistema solar, nem tampouco de nossa galáxia. Na verdade tratava-se de uma radiação eletromagnética difusa que permeava todo o universo. Pelo feito, os dois receberam o Nobel de Física de 1978.
Avanço do conhecimento
Outros achados mais recentes ajudaram a mudar a concepção que se tem do cosmo. Para Damineli, entre os mais chocantes está o de que a maior parte da matéria existente não tem prótons e nêutrons, como nós, os planetas, as estrelas e as galáxias. Seria uma forma totalmente diferente de matéria, chamada "matéria escura". "Na mesma categoria está a descoberta, feita em 1998, de que na verdade o maior componente do universo é uma forma de energia, como uma ‘gravidade repulsiva’, que está acelerando sua expansão", diz. "Hoje sabemos que só 4% de tudo o que existe é constituído de matéria comum, aquela que é tratada pela física."
Muito desse avanço do conhecimento astronômico se deve às novas tecnologias e aos telescópios atuais, milhares de vezes mais potentes que a pequena luneta usada por Galileu, a maior parte deles instalada na superfície do planeta – alguns com resolução que os torna capazes de "ver" uma bola de futebol a mais de 50 quilômetros de distância. Há ainda os telescópios espaciais, que podem "enxergar" em várias faixas de comprimento de ondas eletromagnéticas, como os raios X e gama e o infravermelho, além da luz visível. O mais famoso deles é, sem dúvida, o Hubble, lançado pela Nasa, a agência espacial americana, em 24 de abril de 1990, para vasculhar desde o sistema solar até os confins do universo. Com sua resolução ele seria capaz de "ver" isoladamente os faróis de um carro que estivesse na Lua.
O Brasil não tem nenhum grande telescópio, mas participa de alguns dos mais importantes observatórios e projetos de pesquisa astronômica do mundo. É sócio majoritário, por exemplo, no Observatório do Sul para Pesquisa Astrofísica (Soar, na sigla do nome em inglês), que tem um telescópio de 4 metros de diâmetro, situado nos Andes chilenos, e parceiro minoritário no Gemini, que possui dois de 8 metros, um no Havaí e outro também no Chile. Além de permitir novas descobertas e o aumento do saber sobre o cosmo, a observação por meio de telescópios requer tecnologia de ponta, o que serve como estímulo ao desenvolvimento tecnológico de qualquer país. "O que distingue a astronomia é que ela tem sido uma ciência de vanguarda ao longo de milênios", diz Damineli. "Muito das tecnologias que usamos surgiu dela."
Ele cita como um dos exemplos a internet, que nasceu do estudo do Big Bang. "O laboratório de Genebra, no qual eram feitas as pesquisas sobre a origem do universo, era tão grande e complexo que, para discutir seus resultados, os cientistas criaram uma rede de computadores, que foi exportada para o mundo cotidiano e hoje é usada amplamente", explica. A série de tecnologias surgidas da astronomia é grande. A investigação sobre o que mantém as estrelas brilhando, por exemplo, levou à descoberta da fusão nuclear do hidrogênio, uma das fontes de energia atualmente mais promissoras. O estudo da luz das estrelas criou a espectroscopia, que agora é largamente empregada na identificação de produtos químicos e em outras análises de laboratório.
O próprio desenvolvimento dos telescópios resultou em máquinas fotográficas, na robótica e na mecânica de precisão. A ida à Lua deu origem à miniaturização de componentes eletrônicos, que hoje estão em computadores e celulares, e à criação de satélites, usados atualmente na supervisão do meio ambiente e nas comunicações, entre outras aplicações. A astronomia ajudou inclusive a aperfeiçoar outras ciências, como a matemática. Para calcular a gravidade da Lua, por exemplo, Newton desenvolveu o cálculo integral e diferencial, que é usado há mais de 200 anos na construção de grandes estruturas.
Contribuição importante
Embora em pequeno número – são menos de 500 no país ante 20 mil no mundo –, os astrônomos brasileiros têm tido participação de destaque nesse avanço do conhecimento sobre o universo e no desenvolvimento tecnológico subsequente. "Somos muito produtivos e contribuímos com uma fração relevante dos artigos publicados em periódicos científicos importantes", diz Damineli. "São trabalhos de excelente nível, comparáveis aos melhores do mundo. Temos pesquisadores de liderança mundial em algumas áreas de estudo específicas, entre as quais podemos citar estrelas de grande massa, sistemas binários, anãs brancas e galáxias com núcleos ativos."
O próprio Damineli, que dedicou toda a vida ao estudo de estrelas de grande massa, tem descobertas importantes no currículo. Uma delas é que a estrela Eta Carinae, a mais luminosa da Via Láctea, que ele pesquisa há 20 anos, é um sistema duplo, composto por dois astros e não um. Ele descobriu que a cada 5,5 anos a estrela sofre um pequeno "apagão" para quem a observa da Terra. Damineli concluiu que isso deve ocorrer porque o sistema é duplo e uma das estrelas, a menor, passa na frente da outra.
Confiante em suas observações, ele previu que o fenômeno ocorreria no dia 9 de janeiro passado, com uma margem de erro de dois dias para mais ou para menos. E de fato o fenômeno foi registrado pelo telescópio Soar na data prevista. Isso reforça a teoria de Damineli, que ainda não é aceita com unanimidade pelos astrônomos. O "apagão" não é nada comparável a um eclipse nem pode ser visto a olho nu. É uma diminuição na luminosidade de nitrogênio e hélio, apenas detectada pelo telescópio, que enxerga frequências de luz invisíveis ao olho humano.
A astrônoma Thaisa Storchi Bergmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é outra pesquisadora de destaque internacional. Ela é uma das cientistas brasileiras mais citadas em sua área em publicações especializadas do mundo todo. Thaisa estuda galáxias ativas – aquelas que têm em seu centro um buraco negro engolindo matéria – e tenta entender e mapear o processo de alimentação desses objetos de enorme massa. "Existem vários modelos para isso, mas não há fatos que os comprovem ou não", explica.
Thaisa tem um papel importante no estudo de buracos negros, corpos que têm tanta massa e, por consequência, uma gravidade tão grande que nem a luz consegue escapar – o que explica seu nome. Ela foi a primeira a detectar, em 1991, a presença de um disco de acreção (matéria girando em alta velocidade) em torno de um buraco negro no centro de uma galáxia normal próxima, a NGC 1097, situada a 50 milhões de anos-luz da Terra (um ano-luz é a distância que a luz percorre em um ano, aproximadamente 9,5 trilhões de quilômetros) e semelhante à Via Láctea. Até então, não havia evidência de que os buracos negros existissem no centro da maioria das galáxias.
Apesar de os objetos de estudo dos astrônomos estarem a milhões ou bilhões de anos-luz da Terra, nosso dia a dia está cheio de fatos e processos derivados deles. Toda a energia que move nosso cotidiano, nossa vida, vem de uma estrela, o Sol. Todos os átomos de que somos feitos ou que nos cercam vieram de estrelas que já morreram. Sem a morte delas, não haveria vida, nem mesmo pedras. A água que bebemos pode ter sido trazida por cometas. "Diante de tudo isso, é incrível que muitas pessoas ainda imaginem que a Terra é uma coisa, o céu outra, completamente diferente", diz Damineli. "Na verdade, acho que o principal impacto da astronomia no cotidiano é que, quando exploramos novas fronteiras lá fora, nosso espaço interior se amplia. E isso é essencial para a cultura humana."