Postado em 07/05/2008
País é campeão mundial em ocorrência de raios. Foram mais de 60 milhões em 2008
FRANCISCO LUIZ NOEL
Foto: Grupo Elat
Nos dias de temporal, relâmpagos e trovões em 2008, a chance fatídica de um brasileiro ser atingido por um raio foi uma em 2,5 milhões. Por trás dessa média de risco, o perigo maior esteve em Alagoas e Tocantins, com uma possibilidade em 500 mil, e o menor no Rio de Janeiro, na Bahia e no Pará, com uma em 7,5 milhões. A lei das probabilidades sugere que a ameaça é desprezível, mas o número de mortes causadas por descargas atmosféricas preocupa especialistas e organismos de defesa civil. No ano passado, 75 brasileiros morreram fulminados – 59,5% mais do que os 47 casos de 2007, representando um recorde na década.
O sinal de alerta frente aos efeitos dos raios vem do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), localizado em São José dos Campos (SP), onde o fenômeno é o centro das atenções do Grupo de Eletricidade Atmosférica (Elat). Os pesquisadores contabilizam em mais de 60 milhões as descargas que caíram sobre o país no ano passado – quantidade superior à de 2007 e, pelas regras probabilísticas, causa da maior quantidade de casos fatais em 2008. As regiões norte e nordeste foram as mais atingidas, mas a maioria das vítimas era do sudeste. E seis em dez mortes ocorreram no verão, vitimando sobretudo homens, ao ar livre, na zona rural.
O Brasil é campeão mundial em ocorrência de raios, pela dimensão continental e pela localização, já que os trópicos formam a região mais quente do planeta. Antes do recorde de 2008, o ano com mais registros de mortes por descargas atmosféricas foi 2001, que somou 73 casos fatais. Para 2009, os especialistas preveem um número de raios como o do ano passado. Uma das causas imediatas dessa grande ocorrência é o fenômeno conhecido como La Niña, que resfria as águas do oceano Pacífico na costa do Peru e modifica o clima no continente, produzindo mais tempestades. Só em janeiro, o Elat contabilizou 14 mortes – uma a mais do que no mesmo período de 2008.
São Paulo registrou o maior número de mortes no ano passado, totalizando 20 casos, com probabilidade de risco de uma chance em 2 milhões, bem próxima da média nacional. Em seguida, ficaram Ceará, com sete mortes, Minas Gerais e Alagoas, cada um com seis, e Rio Grande do Sul, que registrou cinco óbitos. Por região, a sudeste teve 39% dos mortos; nordeste, 32%; sul, 15%; centro-oeste, 9%; e norte, 5%. Das 75 vítimas fatais, 63% estavam em áreas rurais, 22% em zonas urbanas, 10% em rodovias e 5% no litoral. Duas pessoas morreram falando ao celular ligado à tomada na parede, protagonizando os primeiros registros desse tipo de ocorrência no país.
A maioria esmagadora das mortes ocorre por parada cardíaca decorrente da violência da descarga, que às vezes provoca queimaduras. A corrente elétrica de um raio pode alcançar 20 mil amperes, correspondentes à de mil chuveiros elétricos, explica o coordenador do Elat, Osmar Pinto Junior. Produzidas em formações como cúmulos e cúmulos-nimbos, essas descargas resultam da movimentação vertiginosa de elétrons dentro das nuvens, que aquece o ar e gera os relâmpagos e trovões. Os raios nuvem-solo vão além: saem das nuvens e descem rumo à terra, onde o circuito se fecha quando as cargas negativas dos elétrons encontram partículas positivas.
A compreensão científica das descargas atmosféricas teve grande impulso no século 20, mas os riscos e o fascínio do fenômeno acompanham a humanidade desde tempos imemoriais. Antes mesmo do surgimento da vida, gigantescas tempestades com raios assolavam o planeta, em sua fase de resfriamento, há 4 bilhões de anos. Num dos trabalhos didáticos em que alerta sobre os raios a população do Piauí, onde a incidência deles é grande, o meteorologista Mainar Medeiros, da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, assinala que registros sobre o fenômeno foram encontrados na Mesopotâmia, datados de 2 mil anos antes de Cristo.
Evidência do temor aos raios na antiguidade grega era a sua associação com Zeus, pai de todos os outros deuses e dos mortais, que aplacava a sua ira despachando relâmpagos, trovões e descargas nuvens-solo. Na antiga China, as descargas estavam sob o condão da deusa Tien Mu, enquanto nas mitologias nórdica e germânica eram associadas ao deus Thor. Os raios também são relacionados a entidades sobrenaturais nas sociedades tribais da África e das Américas. E, na umbanda e no candomblé, respondem ao poder de Iansã – o mais popular orixá feminino depois de Iemanjá, a rainha do mar.
Desafios da proteção
Embora a previsão de temporais seja atividade corriqueira nos serviços de meteorologia, o efeito dos raios sobre pessoas e edificações impõe desafio permanente aos organismos de defesa civil. "O que podemos fazer é alertar a população. O raio é um elemento da natureza. Não temos como prever seu local de queda, embora possamos ter indicadores, como as formações de nuvens", afirma na Subsecretaria de Defesa Civil da prefeitura do Rio de Janeiro o coronel bombeiro e assessor especial Gilberto Mendes. As recomendações são veiculadas em cartilhas distribuídas em eventos, campanhas e, para os internautas, no site da Defesa Civil.
Um dos cuidados básicos para fugir ao alcance dos raios tão logo se formam as nuvens de tempestade é o abrigo em estruturas fechadas, como casas e automóveis. Embora o material metálico possa atrair descargas, elas não têm o poder de penetrar nos veículos. Outras recomendações: nunca ficar sob árvores isoladas e sempre afastar-se do mar, lagos, rios e piscinas. Usar calçados com sola de borracha também ajuda quando as pessoas estão em varandas e jardins, pois o material detém a irradiação de uma descarga nas proximidades. Falar ao celular não é problema, desde que o aparelho não esteja ligado na rede elétrica.
Para os cariocas e moradores de outras cidades litorâneas, a praia é um dos principais lugares de risco nas tempestades, assim como campos de pelada e descampados. "Orientamos as pessoas a nunca permanecer em lugares descobertos nessas horas", reforça o coronel da Defesa Civil. Um caso típico, ocorrido em 19 de janeiro, foi o do menino Alexandre Paulo de Oliveira, de 11 anos, morto por um raio quando soltava pipa em tempo chuvoso no bairro da Penha. Por ironia, foi empinando uma pipa, presa por fio metálico, que o americano Benjamin Franklin constatou em 1792 que a eletricidade descia pelo metal e inventou o para-raios, usado hoje nos prédios e instalações industriais.
No mesmo dia, outra pessoa foi atingida por uma descarga no Rio de Janeiro, em episódio menos comum, relacionado com o aumento da prática de trilha e outras formas de lazer nas montanhas da cidade. A estudante Vanessa Alves de Assis Vieira, de 24 anos, foi atingida por um raio quando estava com amigos na Pedra Bonita, em São Conrado. Derrubada ao chão, a jovem foi resgatada por um helicóptero do Corpo de Bombeiros e, desacordada, conduzida ao Centro de Recuperação de Afogados da corporação. Apesar do atendimento médico, com massagem cardíaca e respiração artificial, Vanessa morreu antes de chegar ao Hospital Lourenço Jorge, na Barra da Tijuca.
A exemplo do que passaram os cariocas, os paulistas também viveram sustos com uma saraivada de raios nos dias 13 e 14 de janeiro. O monitoramento do Elat registrou 2,5 mil descargas atmosféricas na Grande São Paulo – 15% do total esperado para a temporada de raios, entre outubro e março. Somente no dia 13, em 40 minutos de tempestade noturna, 1,7 mil descargas desabaram sobre a região metropolitana, em ritmo equivalente a quase uma por segundo, com incidência maior em Barueri. No dia 14, no município litorâneo de Caraguatatuba, o lavrador Vanderlei Cunha de Oliveira morreu após ser atingido, enquanto trabalhava, quando começou a chover.
"Ilhas de calor"
As tempestades de raios na Grande São Paulo guardam, de acordo com estudo do Elat, associação com dois fatores – o aquecimento global e a poluição. Os especialistas do Inpe atestaram, em 2007, que a ocorrência de raios na região vem crescendo 30% a cada vez que aumenta um grau na temperatura. Como os termômetros registraram a elevação de dois graus nos últimos 50 anos, o número de descargas atmosféricas sobre a cidade e os municípios vizinhos cresceu 60% em meio século. Problema semelhante, com a mesma correlação entre o aumento dos raios e da temperatura, vem acontecendo na chinesa Hong Kong, compara o estudo.
"As tempestades se formam a partir do vapor da água, que é empurrado para cima, na atmosfera. Quanto mais quente, mais leve fica o ar, tornando mais fácil a subida do vapor. Com seu resfriamento nas camadas mais altas, forma-se água e depois gelo, típico das tempestades", resume Osmar Pinto Junior. Um dos autores do livro Relâmpagos, Osmar acrescentou o tema do aquecimento à segunda edição, recém-lançada. A localização dos pontos atingidos pelas descargas, ele explica, é condicionada por fatores como a condutividade elétrica e a distância. A condutividade depende do volume de elétrons livres no local, sendo maior nos metais. E o risco numa montanha tende a ser maior do que ao nível do mar.
A relação da poluição do ar com a incidência dos raios é apontada pelo Elat em outro estudo, também de 2007. Analisando dados de seis anos, o grupo do Inpe constatou que, na média, o registro de descargas atmosféricas é 15% menor nos fins de semana, quando arrefecem a atividade industrial, o tráfego de veículos e, em consequência, as emissões de gases na atmosfera. De segunda a sexta-feira, a poluição gera a chamada "ilha de calor", que precipita a ocorrência de tempestades. Em dezembro, a mesma constatação foi divulgada na Sociedade Americana de Geofísica pela agência espacial americana (Nasa), com base em observações no sudeste dos EUA.
O território paulista é monitorado por cinco dos 49 sensores remotos da Rede Brasileira de Detecção de Descargas Atmosféricas (BrasilDat), que remetem dados para as centrais do Inpe e, no Rio de Janeiro, de Furnas Centrais Elétricas. Além da cobertura do sensor instalado no instituto, em São José dos Campos, São Paulo possui detectores nos municípios de Ibiúna, Pirassununga, Cachoeira Paulista e Castilho – neste último o equipamento fica na usina hidrelétrica de Jupiá, na divisa com Mato Grosso do Sul. A cada radiação eletromagnética detectada, a uma distância de até 350 quilômetros, os aparelhos registram a natureza da onda, horário, duração e intensidade da descarga, analisadas nas centrais de informação do sistema.
A BrasilDat, terceira maior rede do gênero no planeta, concentra dados de três outros sistemas – a Rede Integrada Nacional de Detecção de Descargas Atmosféricas (Rindat), do sudeste; o Sistema de Detecção de Descargas Atmosféricas (Siddem), do sul; e o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam). Formada em 2005, como resultado de parcerias do Inpe com várias outras instituições, a rede brasileira vem possibilitando aos pesquisadores o estudo da distribuição e da evolução temporal dos raios no território nacional, além de subsidiar atividades de engenharia e meteorologia.
Interior vulnerável
No nordeste, que concentrou 24 dos 75 registros de mortes ocasionadas por raios em 2008, o Piauí é um dos estados mais atingidos. A maior incidência de descargas ocorre na região metropolitana de Teresina e tem causa associada à topografia. "A capital do estado está situada numa subida bem acentuada. No topo, forma-se uma planície com um vale no centro. Os ventos batem na encosta, chegam à planície e trocam calor com o ar do vale. O fenômeno resulta na formação de nuvens que ocasionam relâmpagos, trovões e raios", explica Mainar Medeiros.
Não é à toa que a planície que abriga a capital piauiense é denominada Chapada do Corisco – sinônimo de raio entre os nordestinos do interior. Em janeiro, o número de descargas elétricas no estado superou em 10% a quantidade do mesmo mês de 2008, informa Medeiros. Autor de estudos sobre o fenômeno, o meteorologista tem presença assídua nas tevês, rádios e jornais locais, quando o assunto são os raios e as precauções a ser tomadas pela população. "Esperamos que os alertas e recomendações também estejam chegando ao homem do campo, pelo rádio e pela TV", assinala Medeiros.
Contudo, é justamente do interior a maioria dos registros de mortes por raios no Piauí e em outros estados nordestinos. Só em janeiro, foram três casos fatais entre os piauienses. Num deles, no dia 19, Antônio Carlos de Queirós, de 25 anos, integrante do Conselho Tutelar dos Direitos da Criança e do Adolescente de Esperantina, teve morte instantânea ao ser atingido quando pescava num açude. Outra vítima, dez dias depois, no município de União, foi a empregada doméstica Luzineide Alves da Silva, de 38 anos, que dormia em sua casa. O raio também destruiu um aparelho de som ligado e o televisor, deixando um buraco no chão do quarto.
Prevenção nas empresas
Os riscos à vida e danos a instalações vêm redobrando a preocupação das grandes empresas com os raios, que causam prejuízos de milhões de reais a cada ano. Seguindo o exemplo de concessionárias de energia elétrica, que intensificaram nos anos 1990 o monitoramento meteorológico em áreas de cobertura, a Petrobras faz o mesmo em suas refinarias desde 2003. Elas estão entre os mais de 50 clientes empresariais do Instituto Tecnológico Simepar, vinculado à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná. A iniciativa da companhia foi pioneira fora do setor elétrico e estimulou a adesão de empresas de vários ramos, como o de siderurgia e o de mineração.
A cada tempestade em formação na área de uma refinaria, o alerta disparado pelo Simepar resulta em medidas preventivas como a retirada de trabalhadores de locais abertos ou estruturas metálicas expostas ao tempo. A obediência a essas normas não se limita às atividades industriais, tendo se estendido às empreiteiras a serviço da Petrobras. "A ocorrência de um raio num canteiro de obras, com grande concentração de pessoas, pode ter efeito muito maior do que uma descarga que atinge uma pessoa no campo ou na praia", salienta o meteorologista do Simepar Marco Antonio Rodrigues Jusevicius.
No monitoramento preventivo para empresas, o instituto desenvolveu um sistema alimentado por informações meteorológicas e dados da BrasilDat. Responsável por seis sensores da rede no Paraná, o Simepar teve origem na Companhia Paranaense de Energia (Copel) e ganhou independência na década passada. A empresa tornou-se uma das muitas do setor, de diversos estados, na carteira de clientes do Simepar. No caso das concessionárias de energia, o acompanhamento de tempestades e descargas atmosféricas permite mais agilidade nos reparos, graças à mobilização prévia de equipes de manutenção para atuar em locais situados na rota das intempéries.
Exemplo é a parceria em curso entre o instituto paranaense e Furnas, empenhados em montar uma rede de sensores no trecho inicial das linhas de transmissão de energia de Itaipu rumo ao sudeste, conhecidas como linhão. Os equipamentos estão sendo instalados no Paraná, ao longo dos mais de 200 quilômetros entre Foz do Iguaçu e Campo Mourão, que compõem o trajeto do linhão mais vulnerável às descargas atmosféricas e ventanias. "Se houver queda de um raio e o sistema desligar, a empresa saberá com exatidão onde o problema aconteceu e as equipes poderão correr para o ponto certo, ganhando um tempo precioso", diz Marco Antonio.
Indústrias de porte que não podem parar também estão aderindo ao monitoramento de descargas atmosféricas. Em Serra (ES), a ArcelorMittal Tubarão utiliza os alertas de tempestades de raios para trocar a energia recebida da concessionária local pela gerada na planta industrial, de modo a evitar paralisações na laminação de aço. Para a Aracruz Celulose, que produz a própria energia e vende o excedente, o acompanhamento das condições meteorológicas e da ameaça de raios também permite a adoção de medidas preventivas para afastar o risco de interrupções na alimentação de equipamentos.