Postado em 07/05/2008
Segundo o IBGE, 410 mil crianças e adolescentes (de 5 a 17 anos) trabalham em casas de família
MARCELO SANTOS
Foto: Henrique Pita
Creuza Maria Oliveira começou a trabalhar quando tinha apenas 10 anos. Foi na cidade de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Já Eva Maria Alves saiu da cidade de Catanduva, no interior paulista, para o trabalho na capital do estado quando completou 12 anos. As duas têm uma história de vida muito parecida. Ambas foram entregues pelos pais para ser educadas na casa de terceiros, como agregadas ou "filhas de criação". As duas passaram a trabalhar na manutenção das casas que, supostamente, teriam de acolhê-las. Eram responsáveis pela limpeza e cuidado com as roupas, além da tarefa de zelar pelas crianças menores. Foram privadas do convívio social, do acesso à educação e nem sequer tinham o direito de comer junto com os demais membros da família. Alimentavam-se e se vestiam com o que sobrava. Não recebiam salário, apenas moradia – num pequeno cômodo isolado da casa – e comida. Normalmente eram maltratadas, surradas e chamadas de "neguinha fedida" por suas patroas. Por sorte, ambas deixaram para trás o passado de humilhação e se notabilizaram como mulheres que lutam pela melhoria da qualidade de vida de outras crianças.
Creuza tem hoje 49 anos e preside a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), entidade responsável pela união dos diversos sindicatos do gênero espalhados de norte a sul do Brasil. Já Eva, com 53 anos, criou a ONG Novo Glicério, que por meio de atividades esportivas, principalmente o futebol, atende centenas de crianças do bairro do Glicério, na degradada zona central da capital paulista. A trajetória dessas duas mulheres poderia apenas representar um obscuro e recente resquício dos tempos de escravidão. Contudo, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualizados em 2007, ainda restam 410 mil meninas, entre 5 e 17 anos, que trabalham como empregadas domésticas na casa de terceiros. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) colocam o país no terceiro lugar no ranking daqueles onde há trabalho doméstico infantil. Está atrás apenas da África do Sul, com 2 milhões, e da Indonésia, com 700 mil. A OIT estima que existam 10 milhões de crianças e adolescentes no trabalho doméstico em todo o mundo.
No Brasil, essas crianças representam 8% do número de trabalhadores infanto-juvenis. É bem verdade que, nos últimos anos, houve uma sensível melhora nesse cenário. Para entender melhor, dos atuais 6,8 milhões de trabalhadoras domésticas mensalistas que atuam no país, 6,1% são menores de 18 anos. Em 1996, o percentual era de 14,2%. "Estamos ainda bem longe do razoável. A diminuição é muito lenta. Nesse ritmo levaríamos décadas para acabar com o problema", alerta Isa Oliveira, secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), órgão ligado ao Ministério da Justiça, criado em 1994 para ser um espaço de debate entre a sociedade civil, empregadores, trabalhadores e poder público.
Proibido para menores
Para acelerar um pouco mais a redução nesses números, o governo federal instituiu o decreto 6.481, que entrou em vigor em 12 de junho do ano passado e proíbe o trabalho doméstico aos menores de 18 anos. "Ele é o resultado da convenção 182 da OIT – da qual o Brasil é signatário –, que lista as piores formas de trabalho infantil e determina que atividades que põem em risco a saúde, a segurança e o desenvolvimento físico, psicológico e moral de crianças e adolescentes são terminantemente proibidas", esclarece Isa.
Segundo ela, é uma obrigação ética da sociedade zelar por crianças e adolescentes e denunciar casos de exploração em ambiente domiciliar. "A inclusão dos serviços domésticos entre as piores formas de trabalho infantil é o reconhecimento de que as meninas ficam expostas a riscos de humilhação, abusos e maus-tratos. Antes, além de ser subnotificados, os casos eram caracterizados como violência doméstica ou sexual."
O decreto 6.481 traz 691 atividades econômicas que estão, a partir de agora, proibidas para menores. No caso do serviço doméstico, as razões citadas são que essa função pode provocar, entre outros problemas, esforços físicos intensos, isolamento, abuso físico, psicológico e sexual, longas jornadas, trabalho noturno, exposição ao fogo, posições antiergonômicas e movimentos repetitivos.
A secretária executiva da FNPETI reclama da "chiadeira" que houve em setores da classe média, que em grande parte é usuária do trabalho dessas meninas, e nas classes de baixa renda, em que é comum pagar para a filha da vizinha olhar o bebê enquanto os pais saem para trabalhar. "É incompreensível que se defenda o trabalho de jovens com 16 e 17 anos nas atividades domésticas." Em sua opinião, nesses casos há um agravante: "Como os lares são constitucionalmente invioláveis, as ocorrências de maus-tratos, tortura, violência moral e sexual acabam tornando-se invisíveis".
"Nossa sociedade acha que filho de pobre e de negro deve sair do ventre já segurando uma vassourinha e um rodo nas mãos", denuncia a presidente da Fenatrad, Creuza Maria Oliveira. Ela acredita, no entanto, que o país caminha para ter uma legislação mais justa. "O decreto 6.481 não veio por acaso. Lutamos muito para que o tema fosse tratado com mais respeito. A verdade é que a maioria de nós, adultas, que está no trabalho doméstico, veio do trabalho infantil doméstico", diz.
Diariamente ela recebe relatos de trabalho infanto-juvenil na sede da entidade, que fica em Salvador. "Já vi casos em que o empregador demitiu sua empregada e foi buscar uma criança de 13 anos, que estava no orfanato, para que tomasse conta da casa e dos filhos. Isso é mais comum do que se imagina", declara. Ela conta que o argumento usado por famílias que usam o trabalho infantil doméstico é muito parecido: "Dizem que pretendem adotar a criança, que darão comida e casa, mas esquecem que ela precisa de muito mais. Precisa de dignidade, cidadania, direito de brincar e se relacionar com outras crianças e acesso à educação".
A advogada Margareth Galvão Carbinato, presidente do Sindicato dos Empregadores Domésticos do Estado de São Paulo, pensa diferente. "Se o jovem não tem emprego, vai para a marginalidade. Ao ver a mãe ou o irmãozinho com fome, a menina vai para a prostituição", diz ela.
Margareth critica o decreto 6.481, que, em sua opinião, não tem poder para proibir o trabalho de adolescentes. "Para isso seria necessário uma emenda constitucional. Uma lei internacional [refere-se à convenção 182 da OIT] não pode se sobrepor à Carta Magna do país. É um decreto inócuo", afirma, explicando que a Constituição permite o ingresso no mercado de trabalho a partir de 16 anos.
Fundadora da entidade que há duas décadas presta atendimento aos empregadores domésticos, ela é contra a equiparação dos direitos das empregadas domésticas aos dos demais trabalhadores (ver texto abaixo). "Há benefícios [na categoria das trabalhadoras domésticas] inexistentes em muitas profissões, nas quais o patrão não dá comida, café da tarde, banho nem moradia."
Menos polêmico, mas também contrário à proibição de menores no serviço doméstico, Mario Avelino, administrador de empresas e responsável pelo portal de internet Doméstica Legal (www.domesticalegal.com.br), procura não acirrar a discussão. "O maior problema está na ilegalidade. Normalmente, quem contrata menores de 18 anos não registra essas funcionárias."
Com sede na cidade do Rio de Janeiro, ele atende 4,2 mil patrões em sua empresa e alega que 200 mil adolescentes, que já atuam como empregadas domésticas, podem ficar desempregadas devido ao decreto. "Avisamos os empregadores que, a partir de setembro passado, não poderiam trabalhar mais com menores de idade." Mario Avelino diz que é preciso haver investimentos em cursos de profissionalização para as trabalhadoras domésticas como forma de prepará-las para melhores empregos e profissões.
Filhos de criação
Um grave problema no cenário do trabalho infanto-juvenil doméstico está no recrutamento de crianças, que são levadas com a promessa de receber cuidados relativos a educação, saúde e alimentação, mas que, na verdade, acabam se tornando vítimas de uma exploração desumana. A observação é da juíza federal Maria Zuila Lima Dutra, titular da 5ª Vara do Trabalho em Belém, que julgou diversos casos com essas características. Segundo a magistrada, há uma evidente diferença de tratamento em relação aos filhos legítimos, que vai desde a qualidade da escola oferecida até a absoluta ausência de lazer. "É por isso que afirmo que o explorador desse tipo de mão de obra utiliza-se da expressão ‘filha de criação’ para mascarar ‘trabalho escravo’, ‘trabalho servil’ e outros assemelhados, pois deixa de empregar um adulto para os serviços domésticos de sua casa, pagando o salário devido, para se valer da mão de obra infantil, pagando nada ou um valor insignificante, como comprovei na pesquisa de campo feita em Belém", afirma.
Autora do livro Meninas Domésticas, Infâncias Destruídas – Legislação e Realidade Social (Editora LTR), ela explica que acompanhou, por meio de pesquisas e audiências, relatos de garotas trabalhadoras domésticas que apanhavam com sandálias, cadeiras, facas e outros objetos, além de casos de agressão moral, cerceamento da comunicação e da liberdade, abuso sexual e até mesmo assassinato. "Diante de tudo o que pude ver, sentir e descobrir em minha pesquisa, o trabalho infantil doméstico é uma das piores formas de escravidão da modernidade, devido à alienação cultural, física e moral a que é submetida a pessoa explorada."
Dois casos são emblemáticos desse tipo de abuso. O primeiro foi o assassinato de Marielma de Jesus da Silva Sampaio, em 2005. A menina tinha 11 anos quando deixou a cidade de Vigia, no interior do Pará, para morar com um casal em Belém. Segundo sua mãe, o casal prometeu cuidar da menina e matriculá-la na escola, o que jamais aconteceu.
Quatro meses após ser mantida presa, obrigada a cuidar dos afazeres domésticos e de um bebê de um ano, Marielma foi encontrada morta, com costelas quebradas e rins e pulmões perfurados. O casal foi preso, acusado do assassinato.
Outro caso que gerou comoção nacional foi o de L. R. S., de 13 anos. Em março de 2007, ela foi encontrada acorrentada, amordaçada e com hematomas pelo corpo. O inquérito policial constatou que a menina sofria torturas na casa em que vivia como "filha de criação". A empresária goiana Sílvia Calabresi, dona da casa, foi presa. Segundo a juíza que sentenciou o caso, ela já havia utilizado antes o trabalho doméstico infantil, sob o pretexto de "criar" outra criança.
Reação
Para enfrentar o problema, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) Emaús, que fica em Belém, tem realizado campanhas para incentivar a comunidade a denunciar esse tipo de situação. "É comum famílias buscarem no interior do estado e na periferia das cidades crianças e adolescentes para trabalhar em suas casas. Isso é visto com normalidade assustadora por aqui", critica a pedagoga Renata Santos.
Ela representou o Cedeca no último Fórum Social Mundial, realizado no início do ano em Manaus, e conduziu debates sobre o tema. "Infelizmente, não conseguimos montar uma rede de articulação para enfrentar o trabalho doméstico infantil em todo o país", lamenta. Segundo levantamentos do Cedeca, existem no Pará cerca de 20 mil meninas nessa situação.
A pedagoga revela que identificou agências de babás e domésticas, em Belém, que ofereciam crianças para o trabalho nas casas. "Ligamos para o número de um anúncio no jornal e nos identificamos como empregadores. Explicamos que queríamos uma criança, de até uns 13 anos, e o atendente disse que tinha pessoas com esse perfil", conta ela, indignada.
O trabalho de conscientização do Cedeca começa nas escolas públicas, onde aborda os alunos que trabalham em casa de terceiros. "Já conseguimos tirar cerca de mil crianças dessa situação."
Já em Belo Horizonte, das aproximadamente 500 crianças retiradas do trabalho doméstico infantil pela organização não governamental Circo de Todo Mundo, boa parte veio do interior e da periferia – assim como acontece em Belém e nas demais capitais. "O grande problema é que as pessoas entendem isso como uma espécie de caridade", critica o psicólogo Paulo Vidal, da ONG. Ele explica que uma das estratégias adotadas foi atuar também entre os empregadores. "Foi preciso conscientizar da gravidade do problema."
Jocasta da Cruz Roque, hoje com 21 anos, foi uma das crianças que encontraram uma oportunidade, graças a uma bolsa concedida pelo Circo de Todo Mundo. A jovem conheceu a instituição quando tinha 12 anos. "Antes eu trabalhava para uma família que morava próximo da minha casa. Eu tomava conta, sozinha, de duas crianças: uma de 3 e outra de 5 anos. Isso quando eu tinha apenas 9."
Na opinião da pesquisadora Dora Porto, doutora em ciências da saúde e especialista em bioética pela Universidade de Brasília (UnB), trata-se de um problema de preconceito racial e de gênero. Autora da tese "Bioética e Qualidade de Vida", ela colheu relatos sobre o padrão de vida de mulheres negras e pardas na periferia do Distrito Federal. Descobriu que 80% de suas entrevistadas eram domésticas. "As 20% restantes não haviam desempenhado essa função, mas tinham sido criadas por mães ou avós que trabalhavam como domésticas. Como foi visto nas entrevistas, essa atividade revela-se a alternativa profissional daquelas a quem foi negada qualquer outra opção."
Ela conta que a relação das crianças e adolescentes com seus patrões produz sentimentos ambíguos. "Por um lado gratidão e amor e por outro a sensação de rejeição e humilhação, que levam à baixa autoestima." Além disso, segundo a pesquisadora, a condição de criança, associada à distância da família, colocava essas meninas totalmente à mercê de suas empregadoras, não lhes facultando a possibilidade de romper o vínculo empregatício, mesmo que os problemas enfrentados por elas fossem considerados muito grandes. "Somando as dificuldades do trabalho em si, a ausência da mãe e da família e a distância do ambiente conhecido, não se pode duvidar que o trabalho doméstico infantil seja um fator de sofrimento."
A dura realidade das pequenas empregadas
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Uma categoria discriminada
De acordo com o artigo 7º da Constituição Federal, as trabalhadoras domésticas têm apenas parte dos direitos reservados aos trabalhadores rurais e urbanos, já que não possuem garantias de:
• Jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais;
• Recolhimento obrigatório do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS);
• Hora-extra;
• Remuneração do trabalho noturno;
• Salário-família para dependentes;
• Assistência gratuita aos filhos e dependentes até os 5 anos em creches ou pré-escolas.
Está em discussão no Executivo o envio de um projeto de emenda constitucional (PEC) sobre o tema. "Precisamos eliminar um artigo restritivo e discriminatório que diz que todos os trabalhadores têm direito ao que está previsto na Consolidação das Leis do Trabalho, exceto as empregadas domésticas", afirmou Maria Elisabete Pereira, diretora de Programas da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, órgão ligado à presidência da República, em entrevista à Agência Brasil.
Fontes: Jornal "Folha de S. Paulo", Agência Brasil e Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres