Postado em 07/05/2008
Novo indicador aprimora a identificação de carências das famílias mais pobres
MAURÍCIO MONTEIRO FILHO
Foto: Henrique Pita
A cada ano, um mosaico de siglas que têm a complexa missão de compor, por meio de números, uma radiografia fidedigna do Brasil inunda o noticiário nacional. Elas representam indicadores que visam construir um retrato do país em suas dimensões econômica, política e, sobretudo, social.
Para isso, cada vez mais os cálculos percorrem uma trajetória que vai do plano mais geral ao mais específico possível. Publicado pela primeira vez em 1990 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o célebre Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), de escopo nacional, convive hoje com sua versão para cada um dos mais de 5,5 mil municípios brasileiros. A mesma tendência segue o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quando calcula o produto interno bruto (PIB) de todas as cidades do país. Quem vai mais longe entre esses índices é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), também elaborada pelo IBGE, e que consegue fornecer um retrato médio dos lares brasileiros.
A despeito de servirem como termômetros importantes da situação do Brasil nos mais diversos aspectos, porém, esses números não conseguem atingir uma dimensão verdadeiramente humana. Com isso, podem delinear os perfis de cada uma das cidades do país, ou mesmo de seus domicílios, mas são incapazes de definir as necessidades mais específicas dos cidadãos brasileiros, de forma a dar aos governos federal, estadual e municipal uma perspectiva concreta de ação.
Parte dessa lacuna foi preenchida com a divulgação, no final de 2008, de um novo indicador desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para ser utilizado pelos programas de transferência de renda coordenados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). O Índice de Desenvolvimento da Família (IDF), que monitora exclusivamente a situação da população de baixa renda, é a última palavra no que seus operadores chamam de focalização. No caso do novo cálculo, o ajuste das lentes estatísticas chega ao ponto de avaliar com precisão inédita as necessidades das famílias mais carentes do Brasil.
A novidade do IDF pode ser medida até mesmo pela confusão que gerou na mídia, na época de seu lançamento, em novembro passado. Na ocasião, veículos de imprensa encararam os números como mais um inglório ranking da pobreza nacional. Dessa forma, o IDF foi noticiado como uma ferramenta para identificar as cidades mais pobres do país. Entretanto, os órgãos que lidam com o índice alertam que é equivocado fazer comparações entre municípios a partir dele. Isso porque os dados que subsidiam o IDF não são do município como um todo, mas apenas das famílias de baixa renda incluídas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), lista-base para a seleção dos beneficiários da transferência de renda federal. A única comparação possível a partir do IDF é entre as diversas situações de pobreza dessas famílias. Os mal-entendidos acabaram fazendo até com que o MDS restringisse o acesso aos resultados completos da pesquisa, que haviam sido divulgados na época do lançamento do índice.
Outro argumento que justifica as ressalvas às comparações é que há diferença na coleta de dados entre as famílias. "Cidades que obtiveram informações de melhor qualidade acabaram aparecendo com resultados piores e foram penalizadas pela própria competência nessa captação", explica Lúcia Modesto, secretária nacional de Renda de Cidadania do MDS. "Por isso, devemos relativizar as comparações."
Homogeneidade
O cálculo do IDF parte de seis dimensões principais, compostas por 41 indicadores ao todo. Os aspectos cobertos pelo índice são: vulnerabilidade, acesso ao conhecimento, acesso ao trabalho, disponibilidade de recursos, desenvolvimento infantil e condições habitacionais.
Dessa forma, por meio de perguntas sobre cada uma dessas dimensões – cuja resposta só pode ser sim ou não –, os pesquisadores traçam um mapa das condições de vida das famílias que possuam renda per capita de até meio salário mínimo ou renda familiar de até três. No quesito vulnerabilidade, por exemplo, a mensuração avalia a presença de idosos, portadores de deficiência ou gestantes, entre outros. Como o IDF varia de 0 a 1, sendo 1 o melhor índice, a resposta positiva a qualquer uma dessas questões resulta num rebaixamento da média de vulnerabilidade daquela família.
Processadas as médias das seis dimensões avaliadas, o IDF do Brasil foi estabelecido em 0,55, valor obtido a partir de informações dos 17,4 milhões de famílias inscritas no CadÚnico. Mas os dados são calculados também para o nível municipal e – aí reside o diferencial do IDF – familiar. Assim, através da decomposição do IDF em suas dimensões, é possível identificar as carências específicas de cada uma dessas famílias, que podem variar muito, até dentro de um mesmo bairro.
De maneira geral, os aspectos mais deficientes das famílias de baixa renda investigadas foram o acesso ao conhecimento e, principalmente, ao mercado de trabalho. Os valores para esses componentes foram de 0,36 e 0,21, respectivamente. Além disso, essas deficiências espalham-se de forma homogênea por todo o território nacional. "As diferenças entre os índices das regiões do Brasil são muito pequenas. A pobreza é parecida no país inteiro, e o que falta para as famílias é basicamente a mesma coisa", analisa Lúcia Modesto.
O quesito trabalho é uma boa amostra dessa distribuição da pobreza por todo o Brasil. Entre as dez cidades onde a população pobre apresenta a maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho – com IDF que varia de 0,01 a 0,02 para essa dimensão – há municípios representantes de todas as cinco macrorregiões brasileiras.
Na outra ponta das estatísticas, as notícias boas ficaram a cargo dos quesitos desenvolvimento infantil e condições habitacionais, com IDF de 0,93 e 0,73, respectivamente. Traduzidos para a realidade das famílias, os valores da dimensão desenvolvimento infantil significam mais crianças na escola e menos envolvidas em trabalho infantil.
Utilidade e finalidade
O IDF foi desenhado sob medida para gestores públicos de todas as instâncias. Sua especificidade permite a elaboração de políticas públicas focalizadas. Enquanto IDH e PIB municipal eram recebidos muitas vezes com reticência por governos locais, essa nova ferramenta tem a chance real de ser empregada para ações restritas a pequenas áreas ou grupos populacionais, potencializando o efeito dos programas de transferência de renda. Isso porque o índice é capaz de informar se uma região de determinada cidade sofre de problemas relativos a habitação, enquanto outra vizinha tem necessidade de mais escolas.
"Com o IDH municipal, por exemplo, isso nunca seria possível. Agora, podemos desenvolver um pacote customizado de ações para cada família com base em suas médias", afirma Mirela de Carvalho, pesquisadora do Ipea que participou da equipe responsável pela criação do IDF. "Estamos felizes porque o destino do índice é fiel ao que nos motivou desde o princípio, que era definir usuários prioritários e focalizar programas", completa.
Outra virtude dessa ferramenta é a possibilidade de sanar uma das críticas mais pesadas aos programas de transferência de renda federais, como o Bolsa Família: a concessão do benefício a famílias que não tenham tanta necessidade. Até então, o CadÚnico utilizava apenas o critério de renda autodeclarada, o que tornava o sistema muito suscetível a erros. Com o advento do IDF, o critério renda deixa de ser único e passa a ser controlado pelas outras variáveis do índice. "O IDF não nasceu para contestar o uso desse critério, mas para ser complementar a ele. Com o índice, será possível verificar se cada família realmente tem a carência apontada no CadÚnico", explica Mirela.
Além disso, o IDF prevê indicadores que evitam críticas comuns a outras estatísticas equivalentes. O IDH, por exemplo, é tridimensional: avalia apenas a renda per capita, o acesso à educação e a expectativa de vida da população. No primeiro quesito, esses números focam apenas o índice de analfabetismo e o percentual de matrículas em escolas. Não raro, é justamente essa a dimensão que impulsiona o IDH brasileiro para uma situação de média para boa, quando se sabe que a qualidade do ensino é muito baixa. No IDF, esse tipo de distorção é mais difícil de acontecer. "Quando avaliamos o desenvolvimento infantil, um dos indicadores é se a criança está em idade escolar correta", afirma Lúcia Modesto. Se ela não estiver na série adequada a sua faixa etária, a família perde pontos. Com isso, os resultados para o IDF tendem a ser mais realistas, porque incorporam uma dimensão qualitativa.
Lúcia Modesto informa que, atualmente, o MDS está trabalhando para induzir o uso efetivo do índice nos municípios. Poucos estados já realizaram experiências, mas os que tomam conhecimento dele costumam recebê-lo bem. "A capacitação dos gestores para trabalhar com o índice está prevista para este ano", diz a secretária. Além disso, o monitoramento do IDF já está em curso, com o desenvolvimento de uma ferramenta que mapeará as mudanças no índice dos municípios daqui a um ou dois anos.
Pobreza na floresta e na cidade
Apesar de o IDF representar uma estatística totalmente inovadora sobre a realidade social brasileira, o MDS comemorou o nível de correlação apresentado entre seus valores e os do IDH municipal e da PNAD. "Essa proximidade mostra que a consistência das informações do IDF é muito alta", avalia Lúcia Modesto.
De fato, colocados lado a lado, os rankings de IDH e PIB municipais e os resultados do IDF mostram situações bastante semelhantes dos municípios. Essa comparação entre índices tornou célebre a então desconhecida cidade de Jordão, no Acre, que compartilha más posições tanto no IDF como no IDH: ocupa o degrau mais baixo do primeiro e é a penúltima colocada na lista do último. Ironicamente, uma cidade em que dificilmente se consegue sintonizar uma televisão recebeu equipes de reportagem para retratar sua pobreza.
Jordão é também representante de uma área que apresentou os resultados mais preocupantes no IDF: a região norte. Enquanto as piores colocações das listas de PIB e IDH municipais costumam ser quase que monopolizadas por cidades nordestinas, o IDF mostrou que, quando se refinam as estatísticas, a carência amazônica pode ser maior.
As duas foram as únicas regiões a ficar abaixo da média nacional – o norte com 0,51 e o nordeste com 0,53. No paralelo entre elas, porém, o norte somente supera o nordeste na dimensão disponibilidade de recursos. Em todas as outras, tem resultados menos favoráveis – exceto no quesito acesso ao trabalho, em que ambas empatam em baixíssimo 0,19. Novamente, aqui pode haver desigualdades nos processos de captação das informações, mas, de qualquer maneira, esses resultados indicam a necessidade maior de investimentos na região amazônica e em seu entorno.
Não por acaso, o Acre é considerado tanto pelo MDS como pelo Ipea um dos maiores parceiros na elaboração e aplicação do IDF. A cidade acreana de Feijó foi a segunda a utilizar a metodologia proposta pelo Ipea – a primeira foi Nova Lima, em Minas Gerais. Além de Jordão, outro município do Acre – Marechal Thaumaturgo – figura entre os dez IDFs mais baixos. Os governantes do estado, porém, têm avaliado as perspectivas da aplicação do novo indicador com otimismo. A secretária estadual de Assistência Social, Laura Okamura, explica que os índices anteriormente empregados, como o IDH ou mesmo o CadÚnico, não tinham capacidade de retratar as populações da floresta com precisão. E, no caso acreano, isso é decisivo: 80% de seus habitantes estão em áreas tomadas pela selva amazônica. "Os outros indicadores são muito mais voltados para as zonas urbanas. Precisávamos de outro instrumental para as regiões de floresta, onde o conceito de pobreza é muito diferente", pondera. "A mensuração realizada pelo IDF é mais adaptada a essa realidade e chega muito mais perto da pessoa."
Mesmo um índice multifacetado como o IDF, contudo, ainda carece de ajustes para captar a situação acreana – e amazônica – com precisão, segundo acredita a secretária. Ela utiliza exatamente o exemplo de Jordão para justificar essa avaliação. "O que foi mostrado na TV foi um olhar urbano. O município tem maioria absoluta indígena. Qualquer padrão nacional vai apresentar uma situação de miséria absoluta", explica ela. Além disso, Laura afirma que a posição fronteiriça com o Peru afeta negativamente o município, uma vez que o país andino sofre um processo acelerado de desmatamento que acaba empurrando suas nações indígenas para dentro dos limites de Jordão. "Essa migração está causando falta de alimentos da floresta para os indígenas do município", alerta.
Outra questão para a qual o IDF precisa de adaptações locais é a dimensão de vulnerabilidade, em que itens relativos à composição familiar têm grande peso. Afinal, pelo padrão aplicado a todo o território nacional, a ausência de cônjuges é contabilizada negativamente, e as famílias indígenas não têm a mesma configuração das demais. "Usando nosso conceito de núcleo familiar, as famílias desses povos parecerão totalmente desagregadas", diz Laura.
Essas diferenças, principalmente quando envolvem aspectos culturais, têm tornado a aplicação do IDF um tema delicado no estado. Diante de maus resultados na dimensão da habitação, o natural seria desenvolver uma política específica para sanar o problema. "Mas esses são povos habituados a andar pelas florestas, e acabam abandonando as casas", exemplifica Laura. Ainda assim, técnicos do estado estiveram em Brasília em março para receber capacitação sobre como trabalhar com a ferramenta.
Pioneira em resultados
Já para um município predominantemente urbano, mais especificamente situado na zona metropolitana de Belo Horizonte, o IDF tem se mostrado uma ferramenta valiosa. Em Nova Lima, cidade de 72 mil habitantes, os resultados já estão aparecendo. Todas as 2.083 famílias do CadÚnico foram incluídas na pesquisa do IDF da cidade antes mesmo de esse indicador ter sido divulgado pelo MDS. Na primeira mensuração, realizada em agosto de 2006, as famílias de baixa renda da cidade tiveram um índice de 0,46.
A maior atenção à população carente de Nova Lima se fazia ainda mais necessária, uma vez que a cidade vinha sofrendo com o desemprego e a miséria após a redução drástica de sua atividade econômica mais importante, com o fechamento da maior mina de ouro do município.
Por essa razão, a prefeitura local acabou por explorar todas as potencialidades do IDF. A principal medida foi a utilização do índice para identificar as famílias mais carentes do município. Com isso, 1.107 delas foram selecionadas para inclusão num programa complementar ao Bolsa Família, chamado Vida Nova. Com o incremento, o benefício pode chegar a R$ 300, dependendo da necessidade. Além disso, a ação prevê a formação de 50 grupos de apoio familiar, com a participação de psicólogos e assistentes sociais.
Ainda com base no IDF, o município territorializou os dados das famílias, identificando regiões ou bairros da cidade que apresentassem maior carência e que pudessem ser alvo de políticas focais de capacitação profissional, alfabetização e segurança alimentar, entre outras.
"Trabalhamos com o IDF na perspectiva da promoção", define Maria de Fátima Monteiro, coordenadora de programas de transferência de renda de Nova Lima. Essa parece ser exatamente a vocação da ferramenta: desde o início da experiência no município, não houve uma única dimensão que não tenha sofrido uma melhora significativa em sua média. O índice de vulnerabilidade passou de 0,62, em agosto de 2006, para 0,67 em julho de 2008, o acesso ao conhecimento saltou de 0,37 a 0,48, o acesso ao trabalho foi de 0,22 a 0,38 e as condições habitacionais melhoraram de 0,82 a 0,86. O salto mais expressivo, porém, verificou-se no quesito desenvolvimento infantil: de 0,12 para impressionantes 0,95. Com isso, Nova Lima passou de um IDF total inicial de 0,46 para 0,66, bem acima da média nacional. Uma prova matemática de que, quando há vontade política e consciência de onde e como aplicar os recursos, é possível promover a justiça social no Brasil.