Postado em 09/03/2009
No litoral paulista, aldeia indígena cresce e mantém tradições
CELIA DEMARCHI
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Os milhares de turistas que, especialmente durante o verão, rumam para as belas praias do litoral norte paulista já se acostumaram a uma cena que se incorporou à paisagem na altura do quilômetro 189 da Rodovia Rio-Santos, na divisa entre os municípios de Bertioga e São Sebastião. Bem debaixo da placa que indica a Reserva Indígena Guarani do Rio Silveira, os integrantes de um pequeno grupo de índios se revezam entre o calor escaldante do asfalto durante a alta temporada e a sombra fresca da vegetação rala que ainda resiste naquele trecho da estrada para comercializar cestos, adereços, flores ornamentais e pequenas esculturas em madeira de animais silvestres.
O artesanato típico guarani, porém, não representa tudo o que resta da cultura milenar desse povo que até a chegada dos portugueses, em 1500, constituía uma grande nação, com pelo menos 1,5 milhão de pessoas, do total estimado entre 4 e 5 milhões de índios de inúmeras etnias que habitavam o que é hoje o território brasileiro.
Agora reduzidos a alguns milhares, e apesar do contato estreito com os hábitos do “juruá”, como se referem ao branco, os guaranis – ao menos os que vivem em aldeias, ainda que espremidas – conservam muito de sua cultura original e conseguem driblar o que seria a pior das sinas: a perda da identidade. Usam roupas típicas do homem branco e acumulam alguns de seus vícios, é verdade. Apesar disso, continuam falando sua própria língua, além do português, e mantêm quase intacta a maior parte de seus rituais e costumes, enquanto também conquistam, por meio de uma luta constante, seu espaço na sociedade brasileira.
A Aldeia do Rio Silveira, habitada por cerca de 400 guaranis, que formam 80 famílias, representa bem a saga desse povo nas últimas décadas no estado de São Paulo, onde, somente em comunidades, vivem mais de 5 mil índios de 12 diferentes nações, segundo informações divulgadas pela Funai no estado.
Há cerca de duas décadas, porém, apenas 80 índios moravam em Rio Silveira. A população local começou a crescer em ritmo acelerado nos últimos anos, atingindo o índice atual de 7% ao ano – a média brasileira é estimada em 1,4%. Tal crescimento se deve, em especial, à redução a 2% da taxa de mortalidade infantil, resultado da melhoria das condições de vida, conquistada em luta cotidiana comandada pelo cacique Adolfo Timóteo (Verá Mirim), de 40 anos, e pelo chefe do posto da Fundação Nacional do Índio (Funai) na aldeia – na verdade o único funcionário da autarquia ali há 21 anos –, Márcio José Alvim do Nascimento, de 46 anos.
“Faz tempo que não morre criança por aqui. E nascem bebês todos os meses”, conta Nascimento, em seu escritório, instalado num complexo de construções simples de alvenaria em formato arredondado, como as ocas, onde ficam também o consultório médico, a enfermaria e a escola. Solícito, ele atende às demandas das famílias, sabe onde moram e parece conhecer cada um dos moradores pelo nome. Apontando o recém-nascido no colo da artesã Shirlei da Silva (Kretchu), de 26 anos, sentada à sua frente e ao lado de seus outros três filhos e da mãe, a parteira Maria Luiza da Silva (Araí), comenta: “É um dos caçulas da aldeia”.
Mulher de um plantador de palmito, Shirlei parece falar mal o português, retrai-se diante de perguntas. Diz, porém, que o recém-nascido se chama Adenísio e ainda não recebeu seu nome em guarani. Este é escolhido pelo pajé, que batiza as crianças em cerimônia anual, seguida de uma grande festa, a principal de seu povo.
Direito à terra
A última e de longe mais importante conquista de Rio Silveira, porém, foi a ampliação da área da reserva em 2008, depois de mais de dez anos de sua regularização, por decreto federal, em 1987. Os índios se batiam pela expansão para além dos 948 hectares que ocupavam inicialmente, havia 16 anos. Agora a reserva tem 8,5 mil hectares e engloba duas grandes fazendas, estendendo-se até o Parque Estadual da Serra do Mar e o município de Salesópolis, do qual abrange uma pequena parte.
A demarcação da área começa neste início de ano: “Agora temos muitos recursos, até pasto, poderemos criar algum gado e consumir carne, além de frango e peixe, e desenvolver várias outras atividades. Temos pequenos negócios que poderemos ampliar e ganhar mercado. Assim, aumentaremos o emprego. Não precisamos de paternalismo, mas de condições”, diz o cacique Timóteo.
Com semblante sério (ele nem mesmo esboçou um sorriso durante toda a conversa com a repórter), Timóteo conta que foi o primeiro cacique eleito de Rio Silveira, há 14 anos, e que várias outras comunidades guaranis aderiram a esse sistema, deixando de lado a tradicional hereditariedade do cargo, por considerá-lo mais eficaz: decidiram que o líder tem de ser aquele politicamente mais hábil para se relacionar com o poder constituído na busca pelos direitos indígenas. Na verdade, o cacique agora é eleito pelo conselho da aldeia, numa espécie de eleição indireta: “Mas fiz questão de visitar a comunidade e sentir a opinião do povo”.
Timóteo também é presidente do Conselho Estadual dos Povos Indígenas. Ele se expressa com facilidade, herança de sua atuação política, iniciada aos 19 anos, quando foi convocado pelo cacique da aldeia guarani de Ubatuba, onde morava, a acompanhar em Brasília o trabalho da Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou a Constituição brasileira de 1988: “Conquistamos muitos espaços pela participação política”, diz ele, que tem na ponta da língua os direitos indígenas previstos na Carta, como terra, saúde e educação.
O direito indígena à terra, que costuma contrariar o agronegócio, beneficia a sociedade em geral. Um exemplo: a Reserva do Rio Silveira concentra, intactos, todos os recursos hídricos que abastecem os mais de 15 mil habitantes do bairro de Boraceia. Devidamente alojados, os índios podem representar um papel ainda mais importante. Em Rio Silveira eles não estão apenas preservando, mas também recuperando a área que ocupam e têm um projeto para explorá-la de forma sustentável. Concebida pela Associação Comunitária Indígena Tjeru Mirim Ba’e Kuaa’I e pela Funai, a iniciativa já conta com apoio técnico do Ministério de Desenvolvimento Agrário: “Poderemos até colaborar na recuperação ambiental de áreas industriais e rurais, fornecendo mudas de plantas nativas, por exemplo”, diz Timóteo.
A aldeia produz, há 15 anos, palmito-juçara para reflorestamento, espécie considerada símbolo da mata atlântica. Nesse período, também incorporou o cultivo e a comercialização de mudas de outras espécies de palmeira (pupunheira e açaizeiro) e de plantas ornamentais, como orquídea, helicônia, bastão-do-imperador e bromélia. A iniciativa, coordenada desde o início por Vando dos Santos (Karai), de 47 anos, começou em 1995. A intenção era aumentar a ocorrência na mata da palmeira-juçara, um dos alimentos mais tradicionais do povo guarani, hoje ameaçada de extinção.
O projeto Nhanhoty Jejy (Fortaleza do Palmito-Juçara) ganhou status de programa de preservação ambiental e geração de renda, reconhecido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), que em 2002 concedeu à aldeia o Prêmio Gestão Pública e Cidadania pela iniciativa. “Esse trabalho emprega 80 pessoas de 20 famílias”, diz Santos, com orgulho singelo no rosto. “No começo passamos por muita dificuldade, porque o juçara demora oito anos para crescer.”
Ele não sabe avaliar exatamente quanto o grupo fatura com as mudas e as flores, mas explica que os recursos são divididos entre os trabalhadores e ainda investidos em outras ações dentro da comunidade. Até o fim do ano passado, mais de 25 mil mudas de juçara já haviam sido cultivadas e replantadas tanto na aldeia quanto em outras reservas indígenas, que, como algumas prefeituras, compram-nas para reflorestamento.
Com a expansão da reserva, os índios poderão também colocar em prática um antigo projeto de ecoturismo, que prevê a recepção de “juruás” para caminhadas na mata através de trilhas, passeios por rios e cachoeiras, visita a viveiros de plantas, degustação de palmito e compra de artesanato. “Vamos começar ainda nesta administração”, promete Marianita Bueno, secretária de Cultura e Turismo de São Sebastião, lembrando que será preciso abrir trilhas e fazer um estudo de capacidade.
Cidadania
Os guaranis de Rio Silveira ainda têm pouco conforto, trabalho escasso e renda baixa. Há 20 anos, entretanto, parecia que nem mesmo sobreviveriam: “No começo, chegamos a enterrar três crianças num dia e mandar 18 índios para tratamento de pneumonia em São Paulo de uma só vez. Não havia enfermaria, nem sequer escritório, as informações eram guardadas em uma bolsa”, conta Nascimento.
Com um trabalho persistente, o técnico da Funai, que também é pós-graduado em etnologia indígena e história, foi firmando parcerias entre a autarquia e os governos municipais e estadual e finalmente a comunidade começou a receber serviços públicos estruturados. Hoje, a aldeia tem um posto médico equipado com consultório odontológico e enfermaria. Um técnico em enfermagem atende diariamente a população, que o infectologista Leo Jardim, servidor da prefeitura de São Sebastião, visita, como clínico geral, três vezes por semana. O atendimento médico às crianças é semanal e fica por conta de um pediatra da prefeitura de Bertioga.
Jardim trabalha na aldeia desde o final dos anos 1980. Ele acha mais fácil observar o paciente índio, em especial as crianças, que estão sempre “simples e leves” e dialogam com o médico sem intermédio dos pais. “Isso possibilita um diagnóstico mais rápido. É um prazer trabalhar aqui.”
O médico atribui a redução da mortalidade infantil, em especial, aos cuidados médicos com as gestantes durante o pré-natal e à difusão de conhecimentos de puericultura. E diz que, atualmente, as doenças mais comuns entre crianças e adultos são as moléstias digestivas e respiratórias, como verminoses, gripes e pneumonia, relacionadas ao meio doméstico, principalmente à fumaça dos fogões a lenha e ao clima mais instável dos últimos anos.
Já de acordo com o pajé Gino Castro Verá, de 63 anos, o problema de saúde mais comum entre adultos na aldeia, principalmente mulheres, é a “doença invisível”. Seus sintomas são um mal-estar generalizado, uma profunda tristeza: “É só da parte espiritual, muito difícil de tratar. Fazemos muita oração”. Com a voz firme e uma expressão séria, sem sorrir em momento algum, Verá, que também é conhecido pelo nome espiritual Nhanderu (nosso pai), diz que algumas vezes o médico não consegue descobrir as doenças dos guaranis. Nesses casos o tratamento, que inclui ervas medicinais, é feito pelo pajé na Casa da Reza, com o paciente sentado em frente a uma espécie de altar e voltado para o leste, ou seja, para o nascente: “A gente procura ajudar um ao outro”, diz Verá.
Uma enorme tapera de pau a pique, a Casa da Reza é também o local onde a comunidade se reúne diariamente para fazer orações “a um único Deus” e, semanalmente, para discutir de forma coletiva, sob o comando do pajé e do cacique, assuntos gerais e até familiares, e dar-lhes encaminhamento.
Além de cuidados médicos, a orientação nutricional para a infância, a educação, a merenda escolar e a melhoria da renda nos últimos anos contribuíram para a queda do índice de mortalidade infantil. Os índios ampliaram seus ganhos porque conseguiram mais trabalho. Alguns são funcionários públicos que prestam serviços dentro da aldeia, como professores e agentes de saúde e sanitários. Outros produzem artesanato e cultivam e comercializam mudas de palmito e plantas ornamentais. Quase todas as famílias recebem recursos do programa Bolsa Família, do governo federal, aposentadoria pelo INSS e auxílio-maternidade.
A este último, porém, não têm direito as mulheres com menos de 16 anos, porque a legislação brasileira proíbe o trabalho para jovens até essa idade. Tal situação é especialmente problemática para as índias, que em geral se casam e se tornam mães logo que entram na adolescência. A simpática e sorridente artesã Ivanilda dos Santos (Pará) é um exemplo dessa situação: aos 32 anos, é mãe de quatro filhos (de 17, 11, 9 e 5 anos) e avó de uma menina de 2.
A primeira escola da aldeia, provisória, foi inaugurada em 1996 pela prefeitura de Bertioga e instituiu os quatro anos iniciais do ensino fundamental. Em 2000 ela se tornou permanente e recebeu o nome de Escola Municipal Nhembo’e’á Porã (“lugar onde se aprendem coisas boas”). Em 2009 houve uma expansão, com o atendimento de estudantes do quinto ano em diante, incluindo o ensino médio, por meio da Escola Estadual Tjeru Ba’e Kuaa’I (“Deus da Sabedoria”), que funciona no mesmo prédio. Todas as turmas têm como disciplina a língua guarani. Nos primeiros quatro anos, os mestres são todos guaranis, até porque as crianças pequenas em geral não falam português.
Este ano a comunidade se prepara para comemorar a formatura de sua primeira turma no ensino médio e assistir ao ingresso de jovens de sua escola em faculdades. Janilson dos Santos (Karai Krekow), de 21 anos, deve concluir o ensino médio em 2010. Tímido, ele conversa com o pai, Vando dos Santos, antes de falar de seus planos para o futuro. Em seguida abre um sorriso largo e diz que almeja ingressar em uma faculdade de agronomia e permanecer na aldeia depois de formado.
“Queremos formar agrônomos, antropólogos, biólogos, contabilistas e criar um sistema de recursos próprios para construir nossas casas, produzir nossos alimentos, comercializar nossas mercadorias e não mais depender do governo”, diz Timóteo, pontuando: “São Paulo foi o último estado a dar condições para a educação indígena. Os outros estados haviam feito isso bem antes”.
Moradia digna
Em 2003, o governo de São Paulo inaugurou em Rio Silveira, por meio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), o primeiro conjunto habitacional em aldeia indígena do Brasil. Com as novas casas – 59, uma para cada família –, foram chegando também esgoto canalizado, água encanada e coleta de lixo. Até ali, os 270 guaranis da comunidade habitavam taperas de pau a pique.
Inusitado, o projeto havia sido amplamente debatido com os índios, ONGs, antropólogos. Resultou em casas ovais, sem divisões internas, como as ocas, com paredes de eucalipto, telhado de piaçava, varanda e piso de cimento liso, além de cozinha com fogão a lenha e banheiro com a porta voltada para o lado de fora, ambos de alvenaria.
O projeto, contudo, de cerca de R$ 1 milhão, contabilizado a fundo perdido, se mostrou inadequado. Ao longo dos anos a piaçava, apropriada a climas secos, se deteriorou e surgiram goteiras; ao mesmo tempo, as fossas sépticas passaram a se encher de água durante a época de chuvas mais fortes, devido à permeabilidade do solo, fazendo o esgoto voltar para os banheiros. A situação se tornou insustentável no ano passado, quando foram cerca de 240 os dias chuvosos na região. O fogão a lenha dentro das cozinhas tampouco foi boa ideia, pois a fumaça contribui para a ocorrência de doenças respiratórias. Já o crescimento da população foi mal avaliado e começaram a surgir “puxadinhos” de alvenaria e pau a pique, para abrigar as novas famílias.
“Sabíamos desde o início que o projeto, que era pioneiro, teria de ser revisto”, diz Nascimento. Agora, a comunidade pleiteia a construção de 120 novas moradias de alvenaria, ainda de modelo circular, mas com telhas cerâmicas, além de miniestações de tratamento de esgoto. As atuais casas seriam usadas apenas como adendo, para, por exemplo, receber visitantes de outras aldeias. De acordo com a arquiteta e urbanista do Programa de Atuação em Cortiços e Moradia Indígena e Quilombola da CDHU, Lia Affonso Ferreira Barros, a empresa está avaliando a proposta, mas defende a reforma das casas e a troca do telhado por material mais durável.
Depois de Rio Silveira, a CDHU ergueu outros conjuntos habitacionais indígenas. Das cerca de 28 aldeias paulistas, concentradas no litoral norte e sul, no vale do Ribeira, na região oeste e na Grande São Paulo, 21 foram ou estão sendo atendidas. Segundo Lia, os projetos variam a cada comunidade. Em geral, elas optam por moradias ovais, mas há também as que escolhem habitações parecidas com as do “juruá”. As casas, porém, são sempre de alvenaria, têm fogão a lenha, caixilhos de madeira, banheiro separado, ou com porta do lado de fora da construção, e varanda.