Postado em 01/11/1999
Cada vez mais cedo, os jovens vêm tomando contato com drogas, violência, estresse e sexo, experiências pertencentes ao universo adulto. Quais as conseqüências desse processo?
Em artigos exclusivos, especialistas respondem a essa delicada pergunta
Zilda Arns Neumann
Em minha experiência como profissional da saúde e fundadora da Pastoral da Criança, que tem hoje dezesseis anos, tenho visto muitos exemplos de superação, através do esforço e do compromisso de homens e mulheres nas suas comunidades. São pessoas simples, com muita disposição, que quando têm apoio e orientação adequada, conseguem transformar a sua realidade.
Dessa maneira, mais de 136 mil voluntários abraçaram a campanha A Paz Começa em Casa, que a Pastoral da Criança lançou em outubro passado, preocupada com o alto índice de violência doméstica no Brasil. Mais da metade da violência contra a criança acontece dentro de casa, o que tem efeitos desastrosos no desenvolvimento do país, pois um estudo da Organização Mundial da Saúde alerta que crianças maltratadas antes de um ano de idade têm tendência significativa à violência.
O cuidado com as crianças deve começar antes do nascimento. A gestação e o aleitamento materno são os primeiros passos da educação para o amor, que faz com que a criança cresça se sentindo segura e capaz. A Pastoral da Criança já trabalha no incentivo a esses gestos e, desde outubro, a educação para a paz passou a fazer parte das ações básicas nas mais de 30 mil comunidades que acompanha.
Nos dezesseis anos de trabalho em bolsões de pobreza e miséria de todo o país, além de reduzir os índices de mortalidade infantil e desnutrição a mais da metade da média nacional, a pastoral comemora o fato de que as crianças por ela acompanhadas não ficam nas ruas.
Para construir uma sociedade justa e fraterna, além de melhorar as políticas socioeconômicas e as políticas básicas, que devem priorizar as comunidades carentes, cuidar do tecido social é ponto fundamental.
Isso quer dizer que para reduzir a violência temos de investir e valorizar as qualidades humanas, dando condições para que as crianças estudem, trabalhem, tenham lazer e convivência familiar e comunitária. A Pastoral da Criança investe nas ações básicas de saúde, no aleitamento materno, no alojamento conjunto nas maternidades, na educação essencial da criança (antes mesmo de nascer), na educação para a cidadania (que inclui deveres e direitos) e nos valores culturais de fé e solidariedade, porque acredita que isso é a melhor forma de prevenir a violência. A paz é uma cultura e deve ser construída no cotidiano das pessoas.
No dia 4 de outubro, cerca de um milhão de famílias pobres foram visitadas pelos 118.829 líderes comunitários nos 3.166 municípios em que a Pastoral da Criança está organizada. Essas famílias receberam um folheto com dez mandamentos para a paz na família. Além disso, as 6.009 equipes de coordenação da pastoral entregaram o documento "Convocação à Sociedade para a Construção de uma Cultura da Paz" para prefeitos, governadores e presidente da República. São recomendações para que todos, cada um contribuindo de acordo com suas potencialidades, sejam atores na construção de uma cultura da paz e do amor.
A falta de oportunidades leva à exclusão social e à marginalidade. Combater a violência é melhorar a distribuição de renda, o acesso à educação de qualidade e condições adequadas de saúde e lazer. Boa parte dos problemas que temos poderia ser solucionada se os 84 bilhões de dólares que o Brasil gasta no combate à violência fossem investidos na qualidade integral das famílias. Assim, os pais teriam melhores condições para educar e apoiar seus filhos e estes, se sentindo amparados, se tornariam cidadãos comprometidos com o bem de suas comunidades.
Para impelir ainda mais esse processo de melhoria do tecido social, a Pastoral da Criança espera que mais pessoas comprometidas se juntem aos 136 mil voluntários nas comunidades, paróquias e dioceses; milhares de profissionais, médicos, enfermeiros, psicólogos, professores, empresários, assistentes sociais e outros engajados nesse trabalho ecumênico e supra partidário.
Na experiência da Pastoral da Criança, promover a educação de lideranças nas comunidades carentes e bolsões de miséria, dar-lhes apoio e ânimo na luta contra a fome, a violência familiar e comunitária têm conquistado grande êxito.
A prevenção é o melhor caminho para construir a cultura da paz. Só com a sociedade civil organizada, o terceiro setor, o empresariado e o poder público trabalhando juntos, buscando um mesmo ideal, poderemos alcançar o bem-estar para todos.
Dra. Zilda Arns Neumann é médica pediatra e sanitarista, fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança, representante da CNBB no Conselho Nacional de Saúde e conselheira do Programa Comunidade Solidária
Rita Camata
"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (art. 227 da Constituição).
Esse artigo detonou o processo que culminou na elaboração de uma nova lei, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considerado pela Organização das Nações Unidas a mais perfeita tradução da Convenção Internacional dos Direitos da Criança.
Infelizmente, em contradição com o previsto na lei, vemos dia a dia o distanciamento entre a norma jurídica moderna e a realidade de nossas crianças e adolescentes.
Uma das formas de maior desrespeito à infância em nosso país é a exploração sexual. Aliciamento, abuso e sedução não são os únicos meios adotados para a obtenção do prazer de adultos inescrupulosos e até doentes. Por exploração sexual e comercial compreende-se a utilização do corpo e do sexo de uma criança e/ou adolescente com ou sem o seu consentimento.
São considerados exploradores os clientes, os intermediários e os aliciadores do comércio sexual, envolvidos na atividade conhecida como "prostituição infanto-juvenil". Da mesma forma, é considerado crime de exploração sexual, com punições previstas em lei, a produção, a comercialização e o consumo de pornografia infantil.
A exploração sexual de crianças e adolescentes chega ao ponto de termos redes internacionais organizadas para facilitar o acesso dos turistas aos nossos meninos e meninas. O agenciamento e as falsas promessas de empregos rendosos trazem do interior para as cidades meninas de 12 anos, que são forçadas à prostituição em troca da alimentação. O negócio do sexo prospera multiplicando saunas, empresas de acompanhantes, classificados em jornais, produção audiovisual, sexo-turismo e outras formas que exploram crianças em idades cada vez mais tenras, subtraindo-lhes a infância e fazendo delas adultos precoces, impondo-lhes verdadeira mutilação psicológica e física e tolhendo-lhes o desenvolvimento equilibrado.
É necessário, portanto, uma ampla e permanente campanha, com o envolvimento ativo da família, da sociedade e do Estado, denunciando as práticas de exploração sexual, exigindo o cumprimento da lei e a punição dos abusadores e exploradores. É fundamental proteger nossos pequenos dos riscos que correm, assegurando-lhes integração social e bem-estar. Um dado extremamente preocupante é o fato de 75% dos casos registrados de abuso e exploração sexual ter como agressor/explorador alguém que faz parte do sistema familiar, que convive de alguma maneira com a vítima e exerce sobre ela poder ou influência, mantendo laços de autoridade ou afeto.
Nós, parlamentares, assim como todos os segmentos responsáveis da sociedade, temos o dever de fiscalizar e cobrar das autoridades competentes uma ação pró-ativa em defesa da infância e da adolescência sujeitas à exploração. Precisamos lutar pela formulação de políticas públicas de proteção, promoção e dignificação da infância, pois as existentes não são suficientes.
Não podemos mais tolerar a negligência para com esses segmentos, devendo reivindicar melhor distribuição de renda, assistência à família, saúde e educação. A falta de saúde e de escola também subtrai a infância de nossos meninos e meninas, pois a exclusão social as expõe ainda mais à exploração e aos abusos de toda ordem.
Rita Camata é deputada federal pelo PMDB-ES, é uma das coordenadoras da Frente Parlamentar pela Criança no Congresso
Gisela Wajskop
A criança está experimentando desde muito cedo coisas que talvez não tenha condição de experimentar. Ela, precocemente, toma contato com a violência, o sexo e as drogas, como conseqüências de um processo cultural que envolve vários fatores.
Não existe uma única causa que poderia ser evitada por meio de trabalhos de prevenção ou com políticas públicas. Existem, sim, várias incidências. Uma delas é que, de fato, a globalização e a virtualização da comunicação permitem que as crianças passem a ser "parceiras" dos adultos na vida social. Ou seja, têm acesso às informações e aos conhecimentos cada vez mais cedo, tornando essas coisas parte de suas próprias experiências emocionais e afetivas. Isso vale tanto para as crianças de classes sociais mais favorecidas quanto para as mais pobres que, na sua grande maioria, já vivenciavam situações complicadas, como mudanças de parceiro da mãe, abandono do pai etc. O contato com esses elementos da sociedade leva as crianças a vivências para as quais nem sempre elas têm recursos suficientes para compreender. Por exemplo: uma criança que assiste a uma cena de sexo, violência ou uma cena com pessoas bebendo, não consegue compreender o contexto no qual aquilo tudo está acontecendo. É quando as relações sexuais passam a ser, para a criança, relações de violência, que, por sua vez, são iguais a uma cena de pessoas bêbadas. As crianças não têm condições de pensar, refletir essas situações, tampouco de se defender delas.
Outro fator a ser relacionado a esse processo é a própria sociedade, que se multiplica e se diversifica, democratizando costumes e relações sociais. As crianças convivem com essa sociedade "democratizada", porém, sem ter a moderação de um adulto. Paralelamente a tudo isso, as famílias, por sua vez, deixaram de cumprir seu papel de dar autoridade e ajudar as crianças a discriminar critérios. Hoje nós vemos, em todas as classes sociais, problemas com drogas ou gravidez precoce entre adolescentes. Isso porque a própria família se vê influenciada por essa democratização dos costumes juntamente com a falta de compreensão dessas novas relações, o que as impede de ajudar seus filhos. Para uma criança crescer de maneira saudável, ela tem de escutar muito mais "não" do que "sim". Desse modo, ela vai poder discriminar aquilo que é bom do que não é.
É claro que neste embate o papel da televisão é fundamental. Seria necessário uma melhor seleção do que a criança assiste.
Hoje qualquer criança tem acesso à tevê o dia todo. Não é preciso fazer censura, mas, ao menos, algumas recomendações quanto aos horários e dias da semana. Sabe-se que aos sábados e domingos, por exemplo, as crianças vêem televisão o dia inteiro, então, nesses dias o material a ser divulgado poderia ser filtrado. Mas cabe também à família impor esse limite. Para isso, seria importante ampliar o leque de opções da criança. Possibilitar que elas tenham mais tempo para brincar. Mas brincar de verdade: subir em árvore, fantasiar-se, experimentar brincadeiras novas. As crianças, sobretudo as de classe média, têm muitos compromissos. Isso acaba sendo estressante para elas e as faz sentir que na família há pouco espaço para conversar sobre suas dúvidas. É essencial expandir mais o debate sobre os riscos da não-colocação dos limites. É fato que as crianças dependem dos adultos e têm neles seu modelo. Assim, se o adulto acha que pode tudo e compartilha esse pensamento com a criança, ela não conseguirá construir uma identidade autônoma, porque vai imitar essa postura sem limites.
Quanto às escolas, tanto públicas quanto particulares, o problema maior é a dificuldade em acompanhar esse processo de mudança cultural que, na realidade, traz à tona uma questão maior: o prazer. Ao mesmo tempo que a droga é nefasta, ela aparentemente resolve os problemas, porque é prazerosa. E é isso que as crianças procuram. As escolas não estão pensando em atividades alternativas. Opções que igualmente lhes dêem prazer, como cursos de arte extracurriculares (teatro, desenho, música). Seria preciso conversar com o jovem sobre suas dificuldades no campo da sexualidade, da expressão e da comunicação. Porém, nem todos os professores e responsáveis pela educação conseguem entender essas questões sob essa perspectiva.
Gisela Wajskop é doutora em Educação - Coordenação de Educação Infantil/Ministério da Educação
Ute Craemer
Depoimentos de jovens da Febem:
"Sinto um buraco no coração."
"Sempre tem um vazio dentro de mim."
Infância subtraída... eis o tema deste artigo. Infância na sua essência é desenvolvimento, criatividade, é achar seu caminho, caminhando, brincando, experimentando. Infância é procurar sua luz interna e encontrar seu destino como ser humano, ter dignidade humana e cidadania. Portanto, infância subtraída seria o quê? Seria a infância sem dignidade, cidadania, origem espiritual...
Quando vemos crianças no farol e quando escutamos depoimentos de jovens da Febem, percebemos que - além de alimentação, moradia, educação e saúde - a alma da criança e o espírito que nela vive procuram outro alimento: arte, cultura e um sentido na vida. O vazio ao qual os meninos da Febem se referem não se criaria se tivessem tido esse alimento.
"Educar", disse Hesiod, "não é encher um balde, mas acender um fogo". Acender esse fogo é a meta sagrada da educação, não apenas capacitar o ser humano a sobreviver. Sobreviver qualquer animal também quer, mas o ser humano almeja muito mais do que isso, pois ele é um ser essencialmente espiritual. Por isso, as recomendações da Unesco, no chamado Delors Report (que teve sua repercussão na LDB - Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Fundamental), enfatizam quatro pontos na educação e na formação do ser humano, os quatro pilares da vida global do século 21. Quais são eles? Aprender a aprender, a fazer e a atuar na sociedade, a conviver com as diferenças e aprender a ser.
Num mundo em constante e rápida transformação, aprender a ser criativo, atuante, consciente e cooperativo é principalmente aprender a ser um ser pleno, "elevar a sua mente para o plano universal e, na medida do possível, transcender a si mesmo" (Delors Report).
Um menino da Favela Peinha (9 anos) me perguntou no meio da aula de leitura: "Tia, conta como era antes, quando eu morava no céu!" Contei como ele, antes de vir ao mundo, olhava para a Terra e via que tinha muitas tarefas para cumprir, pois o mundo estava em chamas. E, embora ele tivesse um pouco de medo, decidiu procurar seus pais na favela em São Paulo (um dos lugares mais difíceis para viver) para cumprir sua missão: construir um mundo mais digno para viver. Apesar de o ponto de partida na sua vida ser tão árduo e a sua educação escolar tão materialista, teve a chance de achar educadores no Centro de Juventude da favela que mantêm vivas nele a chama e a luz para transformar este mundo impregnado de violência e de esterilidade espiritual.
Ute Craemer é pedagoga Waldorf e fundadora da Associação Comunitária Monte Azul
Denise LacroixRosenkjar
"Vaca amarela...
Peguei...
Ciranda, cirandinha...
Corre cotia..."
Fecha-se os olhos e parece que a imagem da infância vai desaparecendo ou não passa de uma tela velha que ficou esquecida em um canto qualquer da casa.
Diante das palavras infância e subtraída, deparei-me com um grande susto interno: as minhas lembranças de infância não guardam semelhanças significativas com a infância de meus filhos.
O que aconteceu? Onde buscar explicações para o distanciamento?
Outra constatação é que o tempo histórico foi bastante curto face à tecnologia, aos valores e à memória. As necessidades econômicas continuaram prevalecendo, apesar de todas as lutas travadas nas décadas anteriores por diferentes grupos sociais.
Não se trata de estabelecer comparações saudosistas ou de correr atrás do tempo perdido, mas posicionar-me diante do meu susto interno e começar a desembaraçar a linha e desatar os nós.
Deixei que o senso comum guiasse o meu pensamento e, nessa fase inicial, os meios de comunicação foram os primeiros a se apresentar. A violência explícita: chicotes, máscaras, véus, cacetetes... aberrações de toda a sorte. A violência oculta: poucos dados e poucas informações sobre a desigualdade social. É como se ela não existisse; assim como não há evidências do diálogo, da reflexão e da busca de outras possibilidades.
Cheguei à conclusão parcial de que a televisão, o computador, o video game e outros tantos subtraem a infância pelo tempo que aprisionam as crianças e pelo pouco de imaginação e inventividade que delas esperam. Na maioria das vezes, tudo é oferecido pronto e acabado. Não resta possibilidade de interação, salvo mudar de canal ou de página na Internet e ver mais um pouco do mesmo, transmutado em outras roupas e cores diferentes.
Conversei com quem estava mais próximo do assunto. A conversa girou em torno do apelo sexual, das novas artimanhas da propaganda que envolvem o público infantil, tendo em vista as exigências do mercado consumidor. Nada incorreto, mas nada de novo ou nada sobre o que ainda não se falou.
Então deixei que as lembranças viessem à memória. Vieram os amigos e, inevitavelmente, as brincadeiras. Ficávamos em casa quando chovia. Caso contrário, estávamos na rua: esconde-esconde, amarelinha, boca-de-forno, peteca, bola e tantas outras possibilidades que se apresentavam a meninos e meninas. Já existia a televisão, mas não existiam tantos carros velozes cruzando as ruas e nos empurrando para dentro de casa. O medo de seqüestro, a proximidade com armas de fogo e os tóxicos também não nos encurralavam no pátio da escola e, em outras situações, em condomínios fechados e shoppings centers.
As gerações futuras perderam os companheiros de brincadeira. A melhor amiga!
Não basta resgatar brincadeiras antigas. É preciso vencer o medo e reinventar o espaço, brincar junto. A lógica cruel do mundo do trabalho subtraiu a infância e o tempo da brincadeira. Essa lógica é mais antiga que meus pais e meus avós e nela reside o embrutecimento das relações e do total descaso com a infância e com a adolescência.
Ainda pude brincar porque nunca fui irremediavelmente pobre e também porque os perigos da violência urbana nunca estiveram tão próximos como agora.
"O Brasil tem uma longa história de exploração da mão-de-obra infantil. As crianças pobres sempre trabalharam. Para quem? Para seus donos no caso das crianças escravas da Colônia e do Império; para os 'capitalistas' do início da industrialização, como ocorreu com as crianças órfãs, abandonadas ou desvalidas a partir do final do século XIX; para os grandes proprietários de terras como bóia-frias; nas unidades domésticas de produção artesanal ou agrícola; nas casas de família; e, finalmente, nas ruas para manterem a si e a suas famílias" (Irma Rizzini, em História das Crianças no Brasil).
Diante da tecnologia, o tempo histórico foi curto, mas a mortificação do trabalho, como se vê, é um fenômeno de longa duração.
Além de ensinar e brincar junto é necessário criar uma nova ética que norteie a distribuição das riquezas materiais. Sem que isso aconteça, continuaremos todos subtraídos de dignidade e impossibilitados de vivenciar prazeres que se assemelham aos doces da infância e aos períodos de férias escolares.
A escola também precisa ser repensada em seus princípios e crenças.
A História já demonstrou e continua demonstrando que não é verdade que a ascensão virá só através da escolarização. Então, por que não viver o presente com nossas crianças? Valorizar o que elas já sabem e carregam consigo? Abrir um grande espaço de discussão que possibilite a busca do passado no sentido de nos fazer entender quais as razões que levaram nossa sociedade a fazer as escolhas que fez. Entidades como o Sesc, que desenvolvem projetos ligados ao universo infantil, são um espaço privilegiado onde prevalece a cooperação, a construção de um repertório cultural e social, negado pela massificação e pela despolitização, sendo essa a grande tarefa educacional neste final de século. Não podemos fechar as portas para o que ainda restou da infância, dos seus cheiros e de seus barulhos. As crianças ainda estão lá, pois provam, a cada dia, um amor ilimitado a quem as escuta.
"A tela da tevê e o monitor do computador passam a fazer parte do mundo infantil. Mas, na memória de quem foi criança e viveu de brincar estão bem arquivados os momentos de uma infância feliz e as brincadeiras e os brinquedos tradicionais renascem a cada dia, dando novas oportunidades àqueles que começam a descobrir o mundo" (Raquel Zumbano Altman, em História das Crianças no Brasil).
Percebo que o desafio é maior: mais que aproximar a minha infância da infância de meus filhos, faz-se necessário trabalhar pela não-subtração da infância já vivida e de todas aquelas que ainda devem ter assegurado esse direito. O combate ao trabalho infantil, o repúdio à prostituição e ao abjeto tráfico de entorpecentes, que inclui crianças em suas rotas, devem ser as bandeiras de todos nós. Firmar parcerias com todos os segmentos da sociedade civil dispostos a incrementar e a instalar políticas culturais e de resgate de identidade é a primeira estratégia a nos unir frente à não-subtração da infância. Pobres ou ricas, negras ou brancas, meninos ou meninas... indistintamente as crianças precisam ser vistas como nossas, amadas e compreendidas.
Denise Lacroix Rosenkjar é educadora e responsável pelo Centro de Desenvolvimento Infantil do Sesc