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O Brasil e a crise mundial

Postado em 07/05/2009

Alguns problemas já foram resolvidos

YOSHIAKI NAKANO


Yoshiaki Nakano
Foto: Alexandre Almeida

Yoshiaki Nakano estudou administração de empresas na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), onde é professor de economia, dirigiu o Núcleo de Pesquisa e Publicações e chefia o Departamento de Economia. Lecionou também teoria econômica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). De 1978 a 1981, foi professor do Centro de Pós-Graduação e Desenvolvimento Agrícola da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro.
Entre 1979 e 1983, dirigiu o Departamento de Assuntos Econômicos do Grupo Pão de Açúcar, ocupou o cargo de diretor de Crédito Rural do Banco do Estado de São Paulo (Banespa) e, de 1983 a 1985, o de vice-presidente do Banco de Desenvolvimento do Estado de São Paulo (Badesp). Foi secretário adjunto do governo do estado de São Paulo no período de dezembro de 1985 a março de 1987, tendo ocupado o mesmo cargo na Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, no período de março a abril de 1987. Em maio desse ano tornou-se secretário especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda.
Em 1988, trabalhou como consultor do Banco Mundial, até ser nomeado secretário da Fazenda do estado de São Paulo, cargo que ocupou de janeiro de 1995 a janeiro de 2001.
Esta palestra de Yoshiaki Nakano, com o tema "O Brasil e a Crise Econômica Mundial", foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 12 de março de 2009.

Vou começar com um rápido retrospecto da economia brasileira. É importante lembrar que desde o início dos anos 1980 tivemos crescimento muito baixo, uma quase estagnação. Na fase seguinte, a partir do começo dos 1990 e depois da abertura da conta de capitais, tivemos períodos sucessivos de recuperação e de crise. Só mais recentemente, de 2004 para cá, é que conseguimos mudar a trajetória, graças a uma série de eventos externos, e entramos num ciclo de crescimento mais sustentável. Nesse meio-tempo aconteceu um fenômeno muito importante, uma mudança demográfica favorável. Infelizmente, a crise que estamos vivendo, ou a resposta inadequada a ela, particularmente na política monetária, está abortando o processo.

Durante a década de 1990, todas as vezes que tivemos reversão do ciclo de recuperação a causa foi externa, crises financeiras internacionais que se abateram sobre o Brasil, seja por problemas internos, seja por contágio. Houve parada súbita do fluxo de capitais do exterior e o Banco Central (BC) elevou fortemente a taxa de juros para puxar o balanço de pagamentos ou para evitar a inflação. Mas, a partir de 2004, a taxa média de crescimento se deu em torno de 5% e foi criado um círculo virtuoso.

Vejamos o que é esse círculo virtuoso. Se olharmos para os dados demográficos no Brasil, verificaremos que a taxa de natalidade alcançou o pico em torno de 1984, e depois disso teve queda substancial. Nos últimos quatro ou cinco anos, o número de jovens que chegam a seu primeiro emprego caiu substancialmente e isso mudou a dinâmica do mercado de trabalho.Tivemos assim uma inflexão na curva de desemprego e o salário real médio dos trabalhadores começou a subir sistematicamente. Isso é virtuoso porque é acompanhado de aumento de produtividade e a própria margem de lucro continuou crescendo, o que desencadeou não só expansão do consumo como também dos investimentos.

Nesse processo tivemos aceleração da acumulação de capital e elevação da taxa de investimento, que nos últimos anos cresceu muito mais do que o PIB. Neste último período, é inegável que a ampliação do crédito, o aumento do salário mínimo e a elevação dos gastos sociais tiveram um papel importante também, mas o elemento crítico foi a mudança estrutural demográfica. Esse círculo virtuoso pode continuar por muitos e muitos anos, desde que se contornem alguns obstáculos e se façam as mudanças e reformas de que precisamos.

A primeira mudança é no consumo do governo, em seus três níveis, que é excessivamente elevado. Estamos totalmente fora da normalidade. Sem os juros, gastamos em torno de 20% ou mais do PIB, enquanto países similares gastam a metade. É lógico que há justificativas, mas isso é um peso para a economia, porque, quanto maior o consumo do governo, menos sobra para investimento produtivo. E também precisamos continuar ampliando o fluxo de comércio, exportando e importando mais. Se o consumo do governo se expande, não há espaço para ampliação das exportações e isso pode constituir um obstáculo a longo prazo, porque precisamos elevar nossa taxa de investimento para no mínimo 25% do PIB, que é a média dos países emergentes. E o mais importante: se não fosse a crise financeira, se não fosse a barbeiragem do BC, o único do mundo que não reagiu rapidamente à crise, a economia brasileira estaria hoje numa trajetória de crescimento de 7% ao ano, sem inflação ou com inflação declinante.

Ainda temos um déficit público, que não foi eliminado. É uma dívida pública relativamente pequena, abaixo de 40% do PIB, mas tem um perfil inadequado, pois o prazo médio de vencimento é de três anos, o que pressiona fortemente o mercado financeiro. Essa é uma das razões da elevada taxa de juros. Hoje estamos infinitamente melhor do que no passado, mas temos de tomar cuidado.

Política monetária ineficaz

Outra questão importante diz respeito ao sistema de financiamento da dívida pública, totalmente anômalo. Os bancos têm acesso a um dinheiro remunerado à mais alta taxa de juros do mundo. É lógico que isso estabelece um piso muito alto, e a taxa de juros de longo prazo normalmente é mais elevada que a do Banco Central, que em princípio existe para remunerar minimamente ou reduzir o prejuízo, se houver inflação, das sobras de caixa das empresas. Não é uma remuneração por investimento, mas por sobras de caixa. Então o próprio Tesouro, mesmo que haja mercado, excesso de poupança e recursos do exterior, não consegue abaixar a taxa de juros estabelecida pelo BC, uma taxa Selic para aplicação overnight muito alta. O custo da dívida pública, portanto, é muito elevado. Precisamos acabar com coisas como LFT [Letras Financeiras do Tesouro], que não têm mais sentido hoje. Tinham quando estávamos em hiperinflação, senão não haveria como financiar a dívida pública, porque a LFT é um título que o governo remunera a taxa Selic extremamente alta, diariamente. Não tem nenhum risco, os juros podem subir que o valor do título não muda, porque há capitalização diária dos juros.

Então nossa política monetária é extremamente ineficaz. Em condições normais, quando se eleva a taxa de juros o valor dos títulos cai e os bancos têm de contrair a oferta de crédito rapidamente. No Brasil pode-se subir a taxa de juros à vontade que o valor dos ativos, como são todos pós-fixados, não é afetado. Ao contrário, a receita cresce porque os juros são mais altos. Mais: 85% dos títulos emitidos pelo Tesouro Nacional são financiados no mercado de moeda e são comprados pelos bancos comerciais, o que só acontece em países com hiperinflação.

Juros altos por sua vez geram a tendência de apreciação e de oscilação da taxa de câmbio. O real está sujeito a ondas de especulação e essa tendência é terrível, é uma espécie de profecia que se autorrealiza. O real se aprecia enormemente, o que provoca estragos muito grandes. Mas pior do que a apreciação é a instabilidade, que não permite a expansão do setor exportador.

Uma pergunta para a qual não tenho resposta é se temos uma classe dirigente – não só a elite empresarial e política, mas também a burocracia – capaz de fazer os diagnósticos corretos e implementar políticas adequadas. Nenhum banco central do mundo faz política olhando para trás como nosso BC. Não podemos reagir a publicações sobre o PIB com meses de atraso. Como qualquer decisão sobre juros tem impacto lá na frente, precisamos de um bom mecanismo de previsão, porque a decisão de hoje tem efeito daqui a seis, oito, dez meses, até dois anos. Não é em função da aceleração da inflação que se eleva taxa de juros, isso já é tardio, já aconteceu. É preciso saber o timing correto para tomar decisões.

E não temos esse mecanismo de informação. Na verdade, o que existe é uma promiscuidade entre o BC e o mercado financeiro. É inaceitável ele agir baseado em sondagem feita no próprio sistema financeiro, como aparentemente foi feito, de acordo com os jornais.

Razões da crise

Vamos procurar entender a natureza da atual crise. Ela foi causada fundamentalmente pela retração dos órgãos de supervisão do mercado financeiro. É preciso lembrar que depois da crise de 1930 foi feita uma forte regulação do sistema financeiro mundial e no Brasil ela persiste até hoje. Mas houve no mundo uma grande onda de liberalização entre 2006 e início de 2008, com crescimento do fluxo de capital externo via mercado de capitais. Nós não entramos na mesma onda. Mas é preciso lembrar que com a regulação praticamente não havia crise, muito menos crise bancária. De 1947 a 1980 pode-se dizer que não havia problemas bancários pelo mundo, o sistema era estritamente regulado, com requisito mínimo de capital e limites de alavancagem.

A partir de 1980, com a onda liberalizante, começamos a ter problemas no sistema financeiro. Desenvolveu-se um sistema bancário paralelo, o shadow banking, com uma série de inovações e novos instrumentos financeiros. Por exemplo, um banco comercial tradicionalmente capta depósito à vista e faz empréstimo. Como o depósito à vista é dinheiro de milhares de pessoas, normalmente o saldo é estável e os bancos não sofrem oscilações. Além disso, a criação do seguro de depósito tinha praticamente eliminado as corridas aos bancos. Entretanto, depois os bancos começaram a fazer, por exemplo, operações fora do balanço. É um mercado de moeda de curto prazo – o banco capta recursos e compra ativos para fazer ganho sem registrar isso nos balanços. As instituições bancárias começam, por exemplo, a utilizar suas operações de empréstimo, empacotam tudo, emitem títulos e os vendem para outros, captando recursos para novos empréstimos. Daí a explosão de crédito que se verificou no mundo a partir da década de 1980.

A crise atual representa o fim desse ciclo de expansão. Diante de seu tamanho, certamente a sociedade em todo o mundo vai reagir e voltar a regular o sistema financeiro de uma forma mais segura. O estrago já feito é monumental. Cálculos registram prejuízos da ordem de US$ 50 trilhões, contabilizados até hoje, incluindo a queda do valor das ações no mundo inteiro. A fase de pânico pode ter passado, mas a de prejuízo, de dor, está começando, e as consequências certamente serão terríveis.

Digo também que a crise representa o fim de uma era e de um modelo de fazer negócios. Grande parte da criação do crédito de liquidez não era canalizada para o setor real da economia, mas para o próprio setor financeiro. O que se gerou ao longo do tempo foram ondas sucessivas de especulação. A que afetou o setor real nos Estados Unidos foi o boom da construção do início dos anos 2000 para cá e a enorme expansão do crédito ao consumidor, que cresceu 3,5%, enquanto a renda aumentava apenas 1,5%.

Excesso de liquidez

Na forma convencional, os bancos podem criar moeda porque têm depósitos à vista, mantêm dinheiro em caixa e fazem empréstimos. Só que, como o sistema é um conjunto, o empréstimo retorna como depósito à vista e uma parte dele volta a ser emprestado. Então há um poder de multiplicação da base monetária, que constitui a liquidez do sistema. Isso permite fazer as transações e o que o BC tem de administrar de forma adequada para não criar expansão excessiva, não gerar inflação e também não permitir que a taxa de juros chegue num nível que inviabilize os negócios.

Com a desregulação financeira, desenvolveu-se nos bancos comerciais um conjunto de instrumentos, atividades e operações fora do balanço. Os bancos de investimento, com enorme criatividade, criaram os mais variados instrumentos, derivativos etc., gerando liquidez. De outro lado, a globalização financeira também ajudou nesse processo. Os países emergentes foram incorporados, e há um grupo deles que cresce muito rapidamente, basicamente os do leste da Ásia, com elevada taxa de poupança. Só que, como emergentes, eles têm um mercado financeiro pouco desenvolvido, comparado ao americano ou europeu. Então a globalização integra nações com níveis desiguais. Os países que crescem muito rapidamente poupam mais do que investem, e têm escassez de ativos financeiros transacionáveis. Mas com credibilidade, geraram um excesso de liquidez. Com a integração, essa liquidez, como havia escassez de ativos, virou global, e a poupança fluiu para o mercado americano. Nesse mercado, os banqueiros foram à caça de ativos, inventando as mais variadas operações para fazer ganho. Nesse processo passaram a emprestar o chamado subprime, financiar imóvel para quem não tem emprego, para quem não tem renda e para quem não tem ativos, com o pressuposto de que o bem é uma garantia. Mas havia problemas. Fazer empréstimo para quem não tem renda nem emprego e ativos é muito arriscado. Basta o preço dos imóveis começar a cair para ocorrer o desastre.

Por trás dessa crise financeira, temos então o fenômeno de integração de mercados financeiros de países subdesenvolvidos com os desenvolvidos. Os Estados Unidos são o centro gerador de liquidez, porque emitem moeda com poder de compra em qualquer parte do mundo e que, mais do que isso, é o papel que os bancos centrais mantêm como reserva. Além disso, o sistema financeiro americano é o mais eficiente e com maior credibilidade, é uma espécie de banqueiro do mundo. Os ativos emitidos por ele pagam uma taxa de juros muito menor do que o retorno dos ativos que detém no exterior, uma diferença de taxa de mais de 3% em termos reais. Os Estados Unidos, portanto, além de emitir a reserva, podem consumir à vontade e fazer déficit de transações correntes, pois emitem dólar e pagam. Na verdade, são o centro gerador de liquidez mundial. O processo de geração de liquidez é o déficit em transações correntes: importam mais do que exportam, emitem moeda e pagam a conta, inundando o mundo de dólares.

Em 2006, os Estados Unidos tiveram um déficit de transações de US$ 857 bilhões e Alemanha e Japão tiveram juntos um superávit de US$ 152 bilhões. Uma parte, US$ 700 bilhões, foi financiada pelos países em desenvolvimento, como Coreia, Taiwan, Cingapura etc. A América Latina teve superávit de transações correntes de US$ 49 bilhões em 2006. Financiou, portanto, o consumo americano, assim como os países produtores de petróleo, que não conseguem consumir toda a sua receita. Esse era o mecanismo global em que se gerava liquidez. O sistema é extremamente eficiente. A China, como tinha um sistema financeiro pouco eficaz, usava conscientemente o americano para financiar investimento de empresas. Poupam, aplicam no sistema financeiro americano e o dinheiro volta com taxas de juros extremamente baixas e de longo prazo para financiar o investimento produtivo chinês. É o processo de globalização financeira.

Outro fenômeno é o carry trade. Vejamos o exemplo de Japão e Brasil, em 2006, 2007 e início de 2008. Com taxas de juros muito baixas em seu país, os investidores japoneses queriam investir no exterior. O Brasil, com as taxas de juros mais altas do mundo, atraiu volumes fantásticos. Em 2006 entraram mais de US$ 80 bilhões líquidos, que ajudaram a gerar a reserva que temos, que salvou o Brasil. As altas taxas de juros atraem esse capital, aumentam o preço dos ativos domésticos, mas não ampliam necessariamente o investimento produtivo e apreciam a taxa de câmbio. Se importamos mais e exportamos menos, temos déficit de transações correntes. Portanto, passamos de superávit de 4% para déficit de 1,5%. E novamente o PIB tem crescimento menor, porque se importa cada vez mais e com juros altos não se cresce. Do outro lado, o Japão começou a se recuperar. Com os juros baixos, o câmbio fica depreciado, a exportação aumenta, cai a importação, surgem os superávits enormes. Quando esse fluxo acaba, os preços caem, a Bolsa desaba, o investimento se reduz, fica a dívida, e esse será um dos problemas para o futuro.

Pirâmide invertida

Um economista americano que trabalhou muitos anos no Federal Reserve System (FED) desenhou uma vez a pirâmide da liquidez. Ele dizia que, entre todos os ativos, o que apresenta mais liquidez é o ouro, porque tem valor intrínseco. Em seguida vem a moeda do Banco Central, depois as letras do Tesouro e assim sucessivamente. Esse gráfico nos diz que, quando surge uma crise, seja de origem financeira que afeta o setor real, ou do setor real que afeta a área financeira, todo mundo persegue o que tem mais liquidez. Então ocorre uma destruição dos ativos ou dos valores que estão na parte de cima da pirâmide invertida. O que o sistema financeiro global fez nos últimos anos foi expandir essa pirâmide de uma forma fantástica.

Vejamos uma estimativa, feita com dados de 2006, abrangendo só a base monetária – moeda do Banco Central, depósitos bancários e todos os tipos de títulos, dívidas em títulos e derivativos. A explosão maior foi nos derivativos, que representam 75% do total da liquidez. Em dezembro de 2007 só os derivativos chegaram a US$ 800 trilhões. Em 2006 a moeda representava 10% do PIB mundial, os títulos de dívida securitizada 142% e os derivativos 802%. Chega-se no total a 1.186% do PIB mundial. Boa parte desses dados vem do BIS [Bank of International Settlements (Banco de Compensações Internacionais)]. O que aconteceu depois disso é que quem detinha algum derivativo correu para depósito bancário. Como depósito bancário também já não tem tanta segurança, procuraram títulos do governo, moeda ou ouro. Em consequência, o valor dos títulos derivativos despencou. É o processo que estamos vendo hoje.

Fazendo um retrospecto da crise, vemos que tudo começou nos Estados Unidos, com o estouro da bolha imobiliária em 2006. Em fevereiro de 2007 o Congresso americano fez uma audiência sobre o problema da subprime. No final de 2006 já tinham ido à falência grandes instituições imobiliárias. Isso se alastrou rapidamente para todo o sistema financeiro nos Estados Unidos e no resto do mundo, através da securitização, aquele processo que consiste em tomar um conjunto de hipotecas, emitir um título baseado nelas e vendê-lo no mercado. Como eram empresas de rating triple A, o investidor considerava o investimento seguro e, como era subprime, teria um retorno maior. Isso inundou todo o sistema financeiro, de ponta a ponta. Quando estourou o problema do subprime, que parecia localizado, todo o sistema financeiro foi rapidamente afetado, não só nos Estados Unidos como em outras partes do mundo. Como o sistema estava desregulado, houve uma alavancagem absurda. No Brasil, pode-se levantar empréstimos em valor equivalente a oito vezes o capital próprio, qualquer coisa assim. Nos Estados Unidos é um pouco mais para os bancos comerciais, que são controlados pelo governo. Mas no Fannie Mae e no Freddie Mac, a alavancagem chegou a mais de 60 vezes. Quando uma instituição tem um problema que se iniciou com o subprime e títulos lastreados em hipotecas, sofre certo prejuízo. Tem de recompor o capital e para isso começa a vender ativos. Quando isso acontece, seu preço cai, e alguém vai ter prejuízo. Então a desalavancagem tem efeitos múltiplos e gera problemas sucessivos cada vez maiores. Os papéis ficam sem mercado e os preços têm um deságio muito grande. Assim, mesmo instituições sadias, à medida que seus compromissos vencem, tentam vender seus ativos e começam a ter prejuízo, porque não há liquidez no mercado. Isso tudo se retroalimenta.

Diferentemente dos anos 1930, esta crise global começou dentro do próprio sistema financeiro. Em 1929, havia um boom de expansão da economia, começou a desaceleração e isso afetou o mercado de capitais. A crise atual surgiu porque houve desregulação do setor e retração dos órgãos de supervisão. Já afetou fortemente o setor real da economia e, quando isso ocorre, gera novos problemas financeiros, os trabalhadores perdem o emprego e não conseguem pagar suas contas. O consumidor americano deve o equivalente a uma vez e meia o PIB. Surge a inadimplência, que terá efeito sobre o sistema financeiro e assim sucessivamente, retroalimentando a crise. Por isso o que vai acontecer é imprevisível.

Consequências duradouras

A crise é geral, no sentido de ser sistêmica; pegou todo o sistema financeiro no seu conjunto e o setor real da economia. As crises passadas não foram assim. A do México decorreu da expansão muito grande de fluxo de capital para países emergentes. Houve crises na Ásia, na Rússia, Brasil, Turquia, Argentina. Nos Estados Unidos, houve ainda no início da década de 1980 a crise do sistema de poupança e empréstimo. Em 1987 ocorreu o problema na Bolsa de Nova York. Em 1990 a bolha da Nasdaq e a quebra do fundo de derivativos LTCM [Long Term Capital Management]. Tudo isso era um aviso de que alguma coisa estava acontecendo. Desta vez a crise é global, com uma dimensão sem precedentes. E a opinião geral dos economistas é que não estamos conseguindo encaminhar uma solução. Ela tem consequências destrutivas duradouras e não se sabe se vai acabar daqui a dois anos, se vai durar quatro, cinco ou dez, porque o tipo de remédio que precisa ser aplicado não é politicamente assimilável pela sociedade. Fora do Brasil, praticamente todos os bancos centrais já reduziram fortemente a taxa de juros, não há muito mais espaço para tentar aliviar a crise com isso. O que é preciso agora é recapitalizar os bancos para que voltem a emprestar, só que ninguém quer comprar ações de banco. O Citibank valia US$ 275 bilhões antes da crise, passou a valer US$ 21 bilhões. Esse é o efeito destrutivo da crise.

Resolver uma situação desse tipo leva anos e anos. No Japão foram 15 anos, e não se conseguiu solucionar totalmente o problema. Segundo uma publicação, se se consolidar todo o sistema bancário japonês, o patrimônio líquido ainda será negativo. Esse processo de saneamento vai gerar um estado depressivo na economia. Uma opção é buscar resolver isso rapidamente, como fizeram os países nórdicos, mas essa solução é muito difícil também. O que o governo teria de fazer? Primeiro, estatizar todos os bancos. Assim, passa a ser decisão do governo voltar a emprestar ou não e restabelecer a confiança, porque o Estado por definição é uma entidade líquida, uma vez que emite moeda. Quando alguém for sacar seu dinheiro, não haverá possibilidade de ele não estar lá, porque o banco em última instância tem poder de emissão. Se o Estado é o dono, acaba a corrida bancária, restabelece-se a confiança dos depositantes e o banco pode voltar a funcionar.

O que se faz normalmente em seguida é reprivatizar. O problema é que aparentemente nossa crise avançou de tal forma que, se o Citibank perdeu valor, não se confia em mais nenhuma instituição. Isso significa que só vai funcionar se o governo americano resolver estatizar todo o sistema bancário. Além disso, para restabelecer a confiança definitiva será preciso tirar todos os ativos ruins do sistema. É um processo demorado e que envolve altas somas de recursos, cujo montante aliás nem os bancos centrais sabem, porque o valor dos ativos está caindo. De qualquer forma, há exemplos históricos de países que conseguiram sair rapidamente de uma crise bancária, como a Suécia, em que houve estatização, a confiança se restabeleceu, o sistema voltou ao mínimo de funcionamento normal e daí ocorreu novamente a privatização. Provavelmente esse será o caminho, só que para chegar lá deverão ser quebradas muitas resistências de natureza política. E quanto mais se demora, maior o prejuízo.

Lógica capitalista destruída

Nesse quadro, em que política monetária não funciona, o FED não tem mais como reduzir os juros, porque abaixo de zero não é possível. Então só a política fiscal funciona, porque injetar crédito de volta não resolve. Isso já foi feito. Entramos naquela fase em que o consumidor ou está quebrado ou vai pagar dívidas. Neste último caso, vai poupar mais e consumir menos. Sua base para obter crédito, que eram os imóveis, desvalorizou-se brutalmente, as ações também despencaram. Então ele não tem condições de obter crédito e, para pagar dívidas, poupa mais. O mesmo ocorre com as empresas. Todas têm ativos financeiros em seu balanço, tiveram perdas muito grandes, e a prioridade passa a ser pagar dívidas. Com isso, mesmo que elas tenham lucro, não vão reinvesti-lo, mas pagar dívidas, recompondo seu patrimônio líquido. Assim, a economia passa a ser regida por uma outra lógica.

Nesse quadro, se o consumidor consome menos e poupa mais, se as empresas podem ter lucro mas não o investem, a única forma de reativar a economia é o governo utilizar essa poupança e os lucros das empresas e reinjetá-los de volta no mercado sob alguma forma de demanda. Não há outro jeito. Por isso é que todos os governos estão expandindo seus gastos e é lógico que isso pode criar mais para a frente problemas de endividamento.

Essa lógica depressiva é muito séria, porque na verdade o que a crise acaba fazendo é destruir praticamente a lógica capitalista. A lógica do empresário, que John Maynard Keynes chamava de "espírito animal", é perseguir o lucro. Ele investe, reinveste e quer crescer continuamente. É o que move o sistema capitalista. Diante desta crise, essa lógica desaparece e a que domina será a lógica de pagar dívidas, recompor o patrimônio líquido negativo, fugir da falência. Passa a prevalecer praticamente a lógica do encolhimento, não a da expansão.

Diante disso, juro zero não resolve, crédito abundante também não, só a política fiscal é que vai ajudar. Porque enquanto não for reduzida a dívida e recomposto o patrimônio líquido, a economia não voltará à normalidade. Isso poderá levar muito tempo, e vai afetar certamente muito mais os países emergentes. O governo americano vai ter lá um déficit de 10% do PIB, terá de financiar isso, então vão sobrar muito poucos recursos para os países emergentes. Os que mais vão sofrer no futuro são os emergentes que têm dívidas, porque o fluxo de capital desapareceu. E haverá uma mudança muito grande. Depois que sairmos da crise, vai desaparecer o predomínio do financeiro, do fluxo de capital, com suas sucessivas bolhas.

No Brasil

Vou falar rapidamente sobre nosso país. Não tivemos um contágio direto através de títulos subprime etc., mas qualquer sistema bancário está sujeito a fragilidade. Quando há uma situação de insegurança e incerteza, o crédito se contrai. O que aconteceu aqui foi que em agosto ou setembro de 2008 houve uma paralisia total de entrada de recursos do exterior – e o capital começou a sair. Não sei exatamente quanto representava o crédito externo, mas as estimativas revelam um valor de 8% a 10%. Esses recursos desaparecem de repente e os bancos, assustados, contraem o crédito. Mesmo empresas grandes tiveram o crédito cortado em certos momentos do ano passado. Isso provocou brusca redução no nível de atividade, uma parada violenta.

E, para os bancos, numa situação dessas, em vez de emprestar, é melhor aplicar no overnight. Algumas empresas, com dificuldade de crédito, correram o mundo para captar tudo o que podiam e internamente começaram a procurar todos os bancos para criar um colchão de segurança. As pequenas e médias empresas é que sofreram. Num quadro desses, elas entram em quase pânico e freiam de vez os investimentos. Tanto é que a queda de 9,8% no investimento no último trimestre do ano, em relação ao trimestre anterior, anualizada chega a mais que 40%. Uma coisa brutal, sem paralelo.

JULIAN CHACEL – A política fiscal consegue neutralizar essa queda?

NAKANO – Penso que não. Foi uma barbeiragem brutal do Banco Central, porque a crise veio de fora, todos os países foram afetados com a súbita contração do crédito externo, em dólar. Como o sistema internacional de pagamentos está baseado em dólar, todo mundo correu para o dólar para cobrir seus passivos. Todos reagiram imediatamente, ampliando o crédito doméstico para compensar a contração de fora, baixando a taxa de juros. Nós tínhamos todos os instrumentos para fazer isso, porque somos o único país do mundo com um compulsório maluco de mais de 50%. Poderíamos abaixar esse índice e a taxa de juros e evitar o problema. Depois que ele surgiu, sabemos que há um atoleiro lá na frente.
A contração da economia brasileira não foi um ajuste da produção à queda na demanda, mas à contração de crédito.

JOSUÉ MUSSALÉM – Mas o crédito também servia à própria demanda.

NAKANO – Sim, a demanda se reduziu em alguns setores, como automóveis, bens duráveis etc. Mas conheço empresas grandes, como o Pão de Açúcar, de Abílio Diniz, que em dezembro dizia: "Não estamos sentindo nada". É como se estivéssemos numa ilha, porque não dependíamos de crédito e as vendas continuavam normais. Isso em dezembro. Mas nesse mês as empresas fizeram ajustes ao crédito e despediram em massa. Isso começa a afetar o mercado, há uma série de bens de consumo duráveis cuja compra pode ser postergada, mesmo que haja crédito.
Neste ano certamente não vamos crescer. A inflação acelerou muito pouco, ao contrário, já está caindo. A pressão que vinha do aumento de preço de commodities desapareceu. A inflação não cai mais rapidamente porque inexplicavelmente ainda temos um volume muito grande de preços indexados.
É evidente que o financiamento externo será um problema e certamente vamos ter de consumir as reservas. Mas acredito que a crise também já resolveu alguns problemas, como o câmbio apreciado. Ele está muito mais competitivo e provavelmente vai voltar a depender muito mais da exportação e importação do que do fluxo financeiro, porque não vamos ter aqueles booms de entrada de capital, apreciação rápida e parada súbita – inclusive porque nosso déficit em transações correntes voltou a ser relativamente grande. O excesso de liquidez, que estava gerando um boom de entrada de capitais e acúmulo em algumas áreas, também desapareceu. Em 2007 principalmente, e ainda em boa parte de 2008, entrou muito dinheiro no país. Muitas empresas captaram recursos, compraram outras, se endividaram. Ao parar isso, a crise fez um favor ao Brasil.
E já estava começando também uma expansão excessiva na demanda doméstica, que, com déficit de transações correntes crescente, ia gerar problemas. Então obviamente precisávamos desacelerar a economia, o que a crise fez rapidamente. Outra coisa importante é que a pressão sobre o Banco Central será cada vez maior para reduzir a taxa de juros e os depósitos compulsórios. Temos uma margem muito grande para reduzir a taxa. Não vejo nenhuma razão para que não tenhamos uma taxa real de 3% ou até 2% de juro real. Se tivéssemos feito uma política monetária mais agressiva, não precisaríamos recorrer à política fiscal. Infelizmente, o desemprego está aí, e com ele haverá uma pressão enorme para o governo fazer política fiscal, o que pode ser um problema no futuro.

Debate

Nota do Editor: As colocações dirigidas ao palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para ser respondidas de forma concentrada.

OZIRES SILVA – Acredito que não vamos sair desta crise pensando convencionalmente. O senhor está amarrado às coisas que existem, e gostaria de sugerir que tivéssemos a coragem de mudar. Os jornais informaram recentemente que o presidente Barack Obama disse que vai trabalhar à imagem de Roosevelt. Por quê? Porque Franklin Roosevelt enfrentou uma crise com coragem e mudou muitas coisas. Criou, por exemplo, o Buy American Act, obrigando o governo americano a comprar produtos no mercado interno. Além disso, fez reformas profundas e facilitou concessões públicas para o setor privado, coisa que no Brasil é extremamente difícil. Enxugou custos governamentais e desenvolveu o mercado interno. Tomou uma série de iniciativas dessa natureza, corajosas. Nosso mercado está garroteado há anos. Se pensarmos convencionalmente, não vamos avançar.

ROBERT APPY – Penso que o professor Nakano foi muito duro em relação ao Banco Central. Há uma contradição em sua exposição, pois o BC primeiro impediu que o sistema bancário brasileiro caísse na crise, o que outros países também fizeram.
Segundo, acho que o BC sentia certo desconforto em atacar o governo. Em todos os comunicados do Copom [Comitê de Política Monetária] havia uma alusão muito discreta a transferências governamentais excessivas, não ia além disso porque existia um acordo entre Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente do BC. Também verificamos que em outros países a taxa de juros mais baixa, inclusive nos Estados Unidos, não deu resultado. Apesar disso, acho que ela deveria ter baixado, pois a Selic foi fixada em função da hiperinflação e não tiveram coragem de reduzi-la quando voltamos a uma taxa normal de inflação. Cada vez que baixavam, era só um pouquinho. Tenho esperança de que agora sejam mais realistas, e vamos ter uma grande oportunidade com a saída de Henrique Meirelles da presidência do Banco Central. Isso dará oportunidade para o Copom mudar totalmente sua atitude. Quanto a sua visão do futuro da economia, considero-a muito dramática.

JOSUÉ MUSSALÉM – A questão da carga tributária tem como contraponto a política fiscal expansionista. Temos uma carga tributária já de 37% do PIB e receio que, para manter uma ação expansionista dos gastos públicos, tenhamos de suportar o furor da Receita Federal, preocupada em ampliar essa carga. Appy defendeu o Banco Central, mas este é quase um parceiro de seus fiscalizados, que são os bancos de modo geral. Isso é, entretanto, tradição brasileira, pois aqui os fiscais são nomeados pelos fiscalizados, como acontece no Tribunal de Contas da União, no Supremo Tribunal Federal, na Procuradoria Geral da República e em outros mais.

NAKANO – Concordo com Ozires Silva em que pensar convencionalmente não vai permitir sair da crise. Se ao longo dos próximos meses tivermos uma percepção clara e conseguirmos recompor aquela dinâmica virtuosa, teremos a chance de começar uma recuperação lenta, apesar da forte desaceleração.
O Brasil é dos poucos países que têm condições de se expandir voltados para o mercado interno. Todos os processos de crescimento no período pós-guerra tiveram como foco a exportação, o mercado internacional. Não que isso fosse fundamental para os países grandes, mas era um motor de partida que permitia alavancar o mercado. A reconstrução do Japão e da Europa ocorreu exatamente assim. A economia americana, mais desenvolvida, abriu-se para importar produtos dos países destruídos pela guerra. Mais tarde os Tigres Asiáticos copiaram o modelo japonês, mais a China e a Índia.
Esse modelo de certa forma entrou em colapso, porque o superávit de transações correntes já está sendo reduzido. O comércio externo, neste primeiro momento, representa uma difícil saída. Nesse quadro, o Brasil tem uma posição quase privilegiada. Se formos capazes de manter o círculo virtuoso vamos reconstruir internamente o polo de expansão econômica. O elemento-chave desse círculo virtuoso é o aumento de produtividade.

ISAAC JARDANOVSKI – Ou gastar as reservas.

NAKANO – Sim, mas nesse caso vamos enfrentar problemas em seguida, porque ainda temos déficit de transações correntes. Precisamos de câmbio depreciado e mais estável e juros mais baixos. E de uma política fiscal controlada para não desestabilizar o processo. Temos saída, só que precisamos mudar a política monetária, a política cambial e necessitamos de uma classe dirigente capaz de fazer disso um projeto nacional. Tanto a reconstrução da Alemanha como a do Japão, o desenvolvimento dos Tigres Asiáticos e da China, foram projetos nacionais e existia uma bandeira comum a todos eles: alcançar os países desenvolvidos. Não era consumir mais, importar mais ou ter os benefícios do mundo desenvolvido, mas chegar ao mesmo patamar deles. Isso gera convergência interna.
Não vamos ter mais capitais do exterior, temos de recorrer à poupança interna. Por isso é fundamental expandir o consumo e depreciar o câmbio para ter mais importações e exportações lucrativas. Então o não convencional no Brasil é olhar um pouco o que os outros países fizeram com sucesso. E é uma grande oportunidade, porque chegou o momento em que não dá para ficar esperando que o progresso venha de fora.
Em relação ao Banco Central, certamente sou duro, porque não consigo entender como podemos ter a taxa de juros mais alta do mundo. Não há nenhuma razão para isso e não consigo explicações. Se o quadro não é de normalidade, precisamos de uma reação mais forte. Não quero dizer que teríamos evitado totalmente a crise, mas não teríamos uma contração no PIB da ordem de 15% anualizado como aconteceu no final do ano. É uma barbaridade. E o investimento despencou pela taxa anualizada de quase 50%. Poderia ter sido mais suave. Não estou dizendo que o Brasil estaria uma maravilha, mas o tipo de contração que houve aqui é diferente do que se verificou em outros países.
Em relação à carga tributária, à qualidade dos gastos e ao tipo de relação que a burocracia brasileira tem com os diferentes setores, concordo plenamente. E quanto ao futuro não sou tão pessimista, ao contrário, penso que a crise resolve alguns problemas nossos.

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – O custo do governo é muito alto, são 300 mil funcionários, com o Bolsa Família destruindo a capacidade de acreditar nele. A inflação flutua em torno de 5,8% e 5,9% há muito tempo, não cai por causa do custo do governo.

MUSSALÉM – Temos também indexação de preços.

FARIA LIMA – Mas as empresas que administram os preços são as estatais.

NAKANO – De qualquer forma, como afirmei, a primeira providência é reduzir a despesa corrente do governo e aumentar os investimentos.

MUSSALÉM – Foi a crise americana de 1929 que jogou o mundo na depressão e a Alemanha no nazismo. Então qual era a importância da economia americana, do ponto de vista financeiro, naquele período?

NAKANO – Era um período de transição da hegemonia inglesa para a americana. Antes da 2ª Guerra Mundial os americanos não eram hegemônicos, mas o dólar já tinha um papel crescente na economia internacional. Bretton Woods é que estabelece e sela o domínio americano. Durante o conflito os americanos mantiveram tropas em diversos países do mundo, com a exceção da França, Suíça e alguns outros. Segundo alguns historiadores, havia uma cláusula de guerra: os países tinham obrigatoriamente que fazer reserva em dólar, o máximo que se permitia era que investissem em títulos públicos americanos. Era uma cláusula secreta, garantida pela ocupação com tropas americanas. Graças a isso conseguem ser o país que emite moeda reserva, o que De Gaulle chamava de privilégio exorbitante.
Por causa de uma desvalorização de 10% do dólar hoje, a China, que tem quase US$ 2 trilhões de reservas, perde US$ 200 bilhões. É riqueza que se transfere. Tanto é verdade que o passivo externo líquido dos Estados Unidos quase não cresce, por duas razões: porque emitem dólar e porque têm privilégios também financeiros, pagando juros menores do que recebem. Essa diferença faz com que os americanos tenham déficit de US$ 800 bilhões, enquanto o passivo fica praticamente constante, porque o ganho anual paga o déficit.

JULIAN CHACEL – Da exposição do professor Nakano surgem-me algumas reflexões. A primeira delas é que todos os períodos de expansão econômica de certa duração trazem inexoravelmente a ideia de que o ciclo econômico morreu. Desaparecem as alternâncias de prosperidade e redução de crescimento e, subitamente, a depressão surge. Convém esclarecer que o formato do ciclo assume a configuração de uma senoide e que na linguagem técnica a crise é o ponto de inflexão em que se passa da expansão para a contração. Na linguagem do cotidiano, estamos falando de uma recessão que já está instalada.
A exposição do professor Nakano sugeriu-me que temos a proposta de um novo paradigma, abandonando a ideia de que existe uma relação estável entre o crescimento da economia mundial e o da economia brasileira. É uma noção interessante, mas ainda há de ser verificada pelos acontecimentos. Quando o professor Nakano se refere à crise, tenho a impressão de que em todos os momentos de interrupção da fase de expansão econômica o fator que a provoca tem sido historicamente uma crise financeira.
Quanto aos efeitos da subprime, que depois atingiram todos os mercados financeiros, diria que em tese não há nada de errado com uma operação de hedge. O que aconteceu é que se criaram instrumentos financeiros de tal ordem que o sistema de regulação não conseguiu acompanhá-los. O que me parece que houve não foi falta de regulação, mas ausência de percepção de que tais instrumentos exigiam uma nova modalidade de regulamentação.
Voltando à ideia de paradigma de crescimento, parece-me que há um elemento importante no discurso de campanha e nas afirmações do presidente Barack Obama. O último paradigma que estamos vivendo até agora é o da tecnologia da informação, mas é possível que os avanços nessa área sejam daqui por diante marginalmente pequenos. Então poderia haver um outro paradigma fundado na agenda climática, ou seja, um novo surto de inovações vinculadas ao clima, ao aquecimento global.

NEY FIGUEIREDO – Pouca gente conhece, mesmo no meio empresarial, a ação dos fundos chamados de private equity. No fim da década passada e início desta, eles dominaram parte da economia mundial e chegaram ao Brasil com muita força, a ponto de controlar grande parte de nossa economia – a ALL [América Latina Logística], as Lojas Americanas, a AmBev, a Pride, a Farmasa, a Duty Free Shop. Um dos maiores fundos seria o Garantia, fundado por Jorge Paulo Lemann. A característica desses fundos era pegar o dinheiro aqui e no exterior, dar um choque de gestão na empresa e fazer o IPO [Initial Public Offering], o lançamento de ações que caracteriza a abertura de capital. Com isso criaram um império. Têm em carteira 16 empresas das maiores do Brasil, em diversas áreas, dominam desde a churrascaria Fogo de Chão até a Pride, a única empresa brasileira que atua na área de prospecção de petróleo em toda a América Latina. O fluxo de dinheiro para o Brasil acabou, essas empresas não podem mais fazer IPO e pergunto: o que vai acontecer com esses fundos? Terão condições de mantê-las em sua carteira, com o intuito de vendê-las, como fizeram no passado, por exemplo, com a Telemar, a Brasil Telecom, a Telemig? Lembro-me de que a Duty Free Shop foi para a Bolsa dois anos atrás pelo valor de US$ 500 milhões, chegou a US$ 1 bilhão e agora caiu para US$ 150 milhões. O que vai acontecer com os private equity? Outra questão: o senhor não falou nada sobre o euro. Qual o futuro da moeda europeia?

EDUARDO SILVA – Em relação àquela pirâmide inversa, sabemos que é instável, não consegue ficar em pé. Será que aqueles derivativos não estão fora da realidade? Imagino que a crise atual servirá de lição para muitos países. Será que não está na hora de pensar no real, no físico, o que podemos fazer para melhorar, por exemplo, o transporte? Será que precisamos de mais fábricas de automóveis?

NAKANO – Concordo com os comentários de Julian Chacel, um economista que respeito muito. De fato, até o economista Hyman Minsky diz que a estabilidade é que cria instabilidade e também que sempre há um componente financeiro. Minha dúvida é se em certas situações o que detona uma crise pode vir do setor real e atingir o financeiro. Não sei se as crises sempre começam no financeiro, mas não tenho nenhuma dúvida de que ele é muito mais instável do que a parte real da economia. A euforia, as modas e manias se criam na área financeira.
Em relação ao crescimento brasileiro e mundial, quando olhamos para a história, a impressão é que foi nos momentos de crise da economia mundial que o Brasil cresceu. As crises dos anos 1870 e 1880 tiveram papel importante na industrialização e urbanização que se sucedeu. A Grande Depressão também, assim como a 2a Guerra Mundial.

CHACEL – Mas sempre com elementos exógenos. Em 1870, com a unificação da Itália, veio um grande fluxo de italianos para o Brasil. E a 1a Guerra Mundial fez com que se começasse a pensar em substituição de importações.

NAKANO – Mas é nesses momentos que o Brasil, que infelizmente carrega uma forte mentalidade colonial, deixa de olhar para o exterior e de acreditar que é ele que traz riqueza ou que será nossa salvação. E passamos a olhar para nosso potencial, para dentro, e aí conseguimos nos expandir. Foi logo depois da 1a Guerra Mundial que começou o debate se o Brasil deveria ser essencialmente agrícola ou se industrializar. A crise de 1930 fortaleceu os que defendiam a industrialização. Depois da 2a Guerra Mundial veio a mentalidade de que era preciso um mínimo de planejamento, participação do Estado etc. Podemos depois ter exagerado, mas isso foi fundamental, foi o momento em que foram criadas diversas instituições, começamos a fazer estatísticas econômicas, balanço de pagamentos, criou-se o BNDES [Banco de Desenvolvimento Econômico e Social]. Aliás, foi uma missão americana, a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, que fez o diagnóstico logo em seguida.
A grande oportunidade desta crise é olharmos mais para dentro, ver objetivamente nossos problemas, pontos de estrangulamento, e fazer uma agenda para eliminar os impedimentos e planejar uma nova transformação. Não significa que o Estado tenha de participar mais ativamente disso, mas mobilizar os segmentos da sociedade para convergir numa mesma direção: a de que a prioridade é o crescimento, ou alcançar os países desenvolvidos, como pensam os asiáticos.

CHACEL – Há quase 30 anos não temos conseguido essa convergência. Não se consegue formar o mínimo de consenso para promover uma mudança de paradigma. Aí é que está o nó da questão.

NAKANO – Sim, e minha esperança é que a crise crie condições para olharmos mais seriamente para nossas questões. Com menos ideologia, menos doutrina e mais realidade, podemos resolver os problemas reais e sair do estado em que temos vivido. Concordo também que o paradigma da tecnologia de informação foi um dos grandes motores da expansão econômica dos últimos 20 ou 30 anos. Para alguns países, como os Estados Unidos, a contribuição desse paradigma para o crescimento deve ser marginal. Em outros ainda tem muito efeito. Julian Chacel está apontando na direção correta quando afirma que o novo paradigma estará voltado para a questão do meio ambiente. Isso certamente vai gerar um conjunto de investimentos e de oportunidades.
Quanto aos fundos, questão levantada por Ney Figueiredo, não tenho resposta para isso, mas penso que esse paradigma vai mudar, porque a lógica de todos esses fundos veio da hegemonia do financeiro, da valorização dos ativos. Depois de uma crise como a que estamos vivendo, quando se cria crédito por um fluxo de produção, portanto de renda e de emprego, é um crédito com garantia, o verdadeiro, que não tem problema. Mas quando se gera crédito em função da valorização dos próprios ativos, estamos descolando o crédito do fluxo real de produção. Esse descolamento pode até existir desde que os ativos da economia continuem a crescer de forma controlada.
Quanto ao euro, a primeira coisa a dizer é que a crise também é uma crise do dólar. O grande problema era o desequilíbrio de transações correntes americanas e certamente vamos ver alguma coisa desse tipo. Na medida em que o governo faz déficit e a dívida aumenta, torna-se inevitável uma desvalorização do dólar. Como o dólar é a moeda internacional e o sistema de pagamento internacional está baseado nele, quando veio a crise o dólar se valorizou, porque todo mundo precisava dessa moeda para liquidar seus passivos. Mas, como os Estados Unidos têm de fazer um déficit cada vez maior – e tudo indica que esses pacotes, de centenas de bilhões de dólares, não vão conseguir resolver a questão –, a dívida cresce e certamente em algum momento virá a desconfiança no dólar. Penso que ainda não existe outra moeda alternativa para ocupar o lugar do dólar. O euro não, porque pertence a um conjunto de governos. Alguns analistas até já levantam a hipótese de que a Europa possa se desagregar por força das divergências resultantes da crise. Não acredito que isso vá acontecer.
Outra coisa fundamental é que, em última instância, o país que emite moeda reserva é o centro do império, que de alguma forma tem de garantir a paz, fazer com que os contratos sejam cumpridos e que todo mundo aja de acordo com suas regras. A força americana caiu muito, não é mais a mesma de alguns anos atrás, enfraqueceu fortemente com a ajuda de George W. Bush, mas não existe nenhum império alternativo para dominar o mundo. Não será a China. Então ainda vai ser o dólar. Mas é bem provável que o mundo seja muito menos tranquilo que no passado.

LUIZ GORNSTEIN – Professor, alguns economistas dizem que o governo, para baixar mais os juros, terá de mexer na caderneta de poupança, que não tem imposto de renda. Seria uma medida impopular. O que pensa disso?

MALCOLM FOREST – Qual será a trajetória das moedas nesse contexto todo? Na medida em que uma moeda é desvalorizada, favorece-se a exportação. Então é de interesse americano ter um dólar relativamente baixo. Pela mesma razão, não pode haver um euro forte, para não prejudicar o comércio exterior europeu. Então como fica o equilíbrio entre iene, euro e real em relação ao dólar? Seria possível voltar ao padrão-ouro? Há notícias de que a China tem estimulado a compra de ouro. E como fica o mundo árabe? Sou otimista, temos como crescer internamente, como foi dito, o que não acontece em países da Europa. Temos aqui recursos naturais, somos campeões mundiais na exportação de alimentos e o mundo vai ter de continuar se alimentando. E temos uma natureza mais humanista, o que permitirá uma liderança mundial, se bem governada, com humanismo e não com capitalismo selvagem nem com radicalismo.

FÉLIX SAVÉRIO MAJORANA – Professor Nakano, quando disse de sua preocupação com o consumo excessivo do governo, o senhor afirmou: "É lógico que há justificativas". Com a palavra "justificativa", parece que é justo o gasto do governo. Não seria melhor dizer "uma explicação" em vez de "justificativa"?

NAKANO – Em relação à caderneta de poupança, a taxa já está mais flexibilizada que no passado, no sentido de que antigamente você tinha 6% mais a correção. Penso que realmente a taxa de juros real tem de cair abaixo dos 6% e não vejo nenhuma razão para que o Brasil não possa ter uma taxa real de juros de 3% em condições normais. A taxa real de juros de longo prazo nos últimos 15 anos nos Estados Unidos foi de 1,5%, não chegou a 2%. Numa situação de crise poderia até ser menor, então vamos ter de ajustar também a poupança para baixo. É impopular e problemático, mas precisaremos fazer isso e é quase que um problema imediato.
Em relação à questão da moeda, não tenho condições de responder, é muito complicado. Mas ainda penso que a hegemonia americana vai continuar. Também não há dúvida de que a China tem uma tradição histórica imperial, vai ser uma potência importante, principalmente porque houve grandes transformações na Ásia e a economia da região está cada vez mais integrada. Eles certamente vão sair dessa crise com muito mais facilidade que qualquer outra parte do mundo. A China é a grande fábrica e o grande mercado. Nesse contexto é que se discute o papel do Brasil no futuro, estrategicamente traçado, se não cairmos na doença holandesa, na ilusão de que recursos naturais e exportação de produtos agrícolas vão resolver nosso problema. Não podemos nos levar pela ilusão de que o pré-sal e nossos recursos naturais são nossa salvação. Precisamos industrializar o país, construir uma indústria competitiva com base tecnológica e tirar proveito disso.

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