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Inéditos

Postado em 05/08/2010

 

 

 

 

Esboços para a (de)composição do naufrágio

por Ronaldo Cagiano

No dia em que saiu de Cataguases, para nunca mais voltar, riscou os dedos na poeira que cobria as pedras portuguesas da Praça Rui Barbosa e cravou a sentença-desabafo: “saio desta cidade para não ficar menor que ela”.
No caminho, fui dar num outro deserto, onde o vento chicoteava a areia e empanava o horizonte.
A solidão e a escuridão vão ser minha nova pátria, pensei. Mas o caminho me reservava um encontro, tão inesperado como as cheias do rio Pomba, Tejo diminuto que invadiu muitas vezes os porões da minha infância.
Foi, a caminho de uma Pasargada em ruínas, que Dom Quixote, num encontro casual nesse trajeto de surpresas, confidenciou-me:
“Rocinante me obedeceu e fui em cavalgada na busca dos mil caminhos.”
Onde estaria o Brasil, que segredos, que tumultos eu teria que enfrentar até encontrar na loucura anunciada de Simão Bacamarte o abrigo para minha falsa insanidade?
O velho Machado ainda não tinha chegado por aqui. No bruxo do Cosme Velho fui buscar entender a loucura humana, afinal nada mais quixotesco e chapliniano que a lucidez daqueles que ousaram desafiar as convenções e, não se condicionando aos figurinos formatados da sociedade, se desarticularam intimamente cumprindo seu dever pessoal com o deslocamento e a impossibilidade de composição com o mundo que os cerca.
A insularidade, companheira fiel. Esse jegue das arábias é prova de minha busca desesperada e utópica por um mundo ainda em gestação, mas que existia apenas nas frestas de minhas remotas concepções.
Absurdo ou não, jamais soube ao certo onde termina a lucidez e começa o delírio, de que barro é feito o sonho, de que matéria se nutre a utopia, que nos movem a saltos impossíveis por sobre os escombros de nossas mesmas convicções.
Fênix em desatino, renasço a cada moinho de vento que combato, como a ave generosa da mitologia grega.
Antes jogar-me na empreitada de varar estradas em busca de um País que não sei se existe, o definitivo silêncio da noite é minha cama. Aquelas chagas abertas no tempo são menores do que eu tenho encontrado no coração dos homens. Estranhos contornos na epiderme de sua alma. Simão Bacamarte estaria certo, condenando todos à pátria escura do delírio e do confinamento?
A alma é este terreno que me desafia, por isso estou no caminho, solene mas indefeso como um náufrago. Vou buscar respostas ou voltarei mais pesado e cheio de dúvidas?
Sim, todo dia sou obrigado a matar um leão com as unhas, a comer um quilo de sal e ainda continuo não sabendo quem sou. Prometeu ou Macunaíma. Em algum lugar do mundo existe gente completamente feliz, eu vou em busca dessa esperança, mas ela ainda é tão fria, como os dias nas encostas de Barbacena, com sua geografia miliardária escondendo os suicidados da psiquiatria, os que foram tragados pela anormalidade decretada, triste sentença num tribunal kafkiano que é a sociedade alarmada com a diferença e sempre em busca de uma assepsia social, tributária do isolamento e da intolerância.
Cedo ou tarde seremos vomitados também. Bacamarte não me aguarda, porque me desconhece. Mas a minha fúria imóvel, tal como Jonas no ventre da Baleia, está me impondo essa Nínive à distância, nos contrafortes da Mantiqueira e não posso agora pagar o preço por desobedecer os meus instintos.
Explícita a minha intenção, como claro e inequívoco é o caminho do rio. Bebo o sêmen das serpentes enquanto a realidade se despe e eu me arrepio diante dos cochilos de Deus e da ousadia de Satanás. Um peixe fora d’água ou um Vesúvio prestes ao desatino?
Rocinante não me ouve. Sou náufrago num mar de areia, nessa viagem entre silêncios e invernadas, nesse caminho – museu de ossos – em que a submersão de minhas esperanças infecciona meus sonhos.
Galerias, cavidades sombrias, por onde vermes, bactérias, vírus alucinados fazem a festa em um turismo alucinado por minhas vísceras: profanação da organização celular.
Dulcinéia não se aproxima desse meu momento. Fusco e Kafka me aguardam no peitoral da Ponte Velha, sobre a qual um Pomba calcinado pela vertigem dos dias renuncia à sua vocação de Tejo e confirma a lógica de Heráclito. A estrofe da Eneida, de Virgílio, agora em transgênica saudação na ferrugem do metal, me socorre nesse esforço de compreender em que galáxia me ilhei.
[Pacifisucne est ingressus tuus? Revertere ad me suscipiam te.] enquanto areeiros indomáveis tentam retirar o barro hierático de doida esperança.
Parei e contemplei a força da natureza na primeira curva da estrada nessa longa caminhada em busca do porto que me levará ao Rio de Janeiro: as formigas continuam seu trajeto imutável e nada as remove de seu intento, provendo suas dispensas para garantir a vida no inverno, enquanto as cigarras cantam. As formigas me ensinam mais que todas as filosofias e religiões em seus detidos procedimentos, em sua racionalidade e organização social. Tais como as abelhas em seu rigor geométrico.
Aqui sou Sísifo, imutável em seu destino. Ali, o desobediente hóspede nas vísceras do mamífero dos mares, cuspido em qualquer porto do mundo, onde canibais me esperam. Entre um trajeto e outro, encontro-me com Cantinflas, Gandhi, Luther King e Charles Chaplin. As Parcas me vigiam. Não tenho escolhas.
Como o profeta Gentileza, eu purgarei nas praças minha pregação – no mesmo escuro em que Plínio Marcos execrou a mediocridade humana – com minha voz dissidente: vim, vi perdi.”
Quando acordei, ele não estava mais lá.

Ronaldo Cagiano é autor de Palavra engajada (poesia, 1989), Concerto para arranha-céus (contos, LGE, 2004),  Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral,  Rio, 2007), entre outros livros

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