Postado em 07/07/2009
São 170 mil as vítimas de queimaduras hospitalizadas por ano no Brasil
ELISA ALMEIDA FRANÇA
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Quem nunca queimou a mão enquanto preparava uma comida ou roçou a perna no escapamento de uma moto recém-desligada? Quase todo mundo já sofreu queimadura uma vez na vida ou conhece alguém que já passou por isso. São pessoas que nem entram nas estatísticas oficiais, nas quais são computados somente os casos que vão parar nos hospitais e pronto-socorros. No Brasil, o número anual de vítimas é de cerca de 170 mil, de acordo com o Ministério da Saúde. Nesse levantamento estão incluídos acidentes que vão desde uma mão alcançada pelo óleo quente de fritar pastel até o senhor que teve a péssima ideia de tirar uma pipa dos fios de alta tensão.
A menina Pamella L., de 13 anos, se queimou aos 2. Em um momento que tinha tudo para ser banal, desejava ajudar a mãe, Nilma L., que naquele momento cozinhava. Esta, temendo um acidente, tirou a panela com óleo quente de cima do fogão e colocou-a sobre o tanque. Como Pamella queria também molhar um paninho com o qual brincava, acabou virando a panela sobre si e, como consequência, sofreu queimaduras de segundo e terceiro graus em 20% do corpo. Desde então, já passou por 12 cirurgias reparadoras e usou vários expansores – recurso utilizado na área próxima à queimadura, que “cede” pele para a região atingida.
Como na história de Pamella, a maior parte das queimaduras acontece dentro da própria casa da vítima, principalmente quando se trata de crianças. No caso de adultos, os acidentes de trabalho são outra origem comum, segundo Lídia Rossi, professora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP).
Apesar da escassez de estatísticas no país, levantamentos diversos apontam dados mais ou menos semelhantes aos observados, por exemplo, no estudo “Acidentes com Crianças no Brasil e o Comportamento das Mães”, feito pela ONG Criança Segura com base em números de 2005. O documento revela que queimaduras “com líquidos quentes ou outras fontes de calor” constituem a segunda maior causa de hospitalização, por acidente, de crianças de 0 a 4 anos, além de ser o quarto maior motivo de internação daquelas com até 9 anos. Consideradas todas as mortes por causas externas, no Brasil, as queimaduras aparecem em terceiro lugar, perdendo apenas para acidentes de transporte e homicídios.
No mundo, segundo Ana Beatriz Bontorim, coordenadora de projetos da entidade, cerca de 320 mil crianças morrem vítimas de queimaduras a cada ano. Dentre todos esses casos, 95% ocorrem nos países em desenvolvimento, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), devido à falta de conhecimento sobre o problema e à ausência de políticas públicas, entre outros fatores.
Melhor remédio
Segundo Cristina Lopes Afonso, chefe de fisioterapia do Pronto-Socorro para Queimaduras de Goiânia e vítima de um gravíssimo acidente desse tipo na adolescência, as pessoas geralmente ignoram a seriedade do problema, que pode levar até à morte. “A prevenção deve ser feita 24 horas por dia, dentro de nossa casa e no local de trabalho”, alerta o cirurgião plástico Flavio Novaes, presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ). “Quase todos os casos poderiam ser evitados”, afirma o especialista. Por essa razão, tanto a educação como a realização de campanhas permanentes são fundamentais.
Por que, então, elas não são promovidas? Segundo o cirurgião plástico Júlio Soncini, do Instituto Pró-Queimados (IPQ), a causa do desinteresse é bem clara: “Das vítimas, 95% são pobres”. Os motivos que explicam tal índice vão desde a desinformação dos pais e a exiguidade das casas, com ambientes excessivamente ocupados, até a maior presença de crianças na cozinha, além de instalações elétricas inadequadas.
O custo da falta de prevenção é alto. O Sistema Único de Saúde (SUS) gasta cerca de R$ 4 milhões por mês em cirurgias e atendimentos ambulatoriais a queimados. E não arca, segundo Cristina, com o tratamento de reparação, que visa reduzir o impacto das sequelas. Além da dor física, as vítimas sofrem estigmatização por parte da sociedade, que dificilmente olhará para essas pessoas da mesma forma e, muitas vezes, nem emprego lhes concederá. Os prejuízos vão, assim, bem além dos cofres públicos.
De sua parte, o governo federal não fez muito mais que sancionar a lei 12.026/09, que elegeu 6 de junho como o Dia Nacional de Luta contra Queimaduras. Dessa maneira, as campanhas se limitam, por ora, à atuação – importante, embora restrita – de entidades como a SBQ ou o IPQ, ou ainda do Núcleo de Proteção aos Queimados, ligado ao Pronto-Socorro para Queimaduras de Goiânia.
Não são só campanhas que faltam. Há no país poucos hospitais apropriados – existem 41 centros de referência de alta complexidade, ao todo, especializados no atendimento ao paciente queimado, distribuídos irregularmente por 18 estados. “Dezesseis deles estão em São Paulo”, diz Flavio Novaes. Na região norte não há nenhum. Segundo ele, deveria existir pelo menos um por estado.
Os profissionais de saúde que atuam na área também são escassos. Entre os médicos, há somente 900, no Brasil inteiro. “Cuida-se de algo que ninguém quer ver”, diz Júlio Soncini. “A queimadura é uma coisa feia, cheira mal, as internações às vezes são de até três meses e [o SUS] paga muito pouco.” A maioria das instituições de ensino tampouco costuma incluir o assunto em sua grade curricular.
Multiprofissional
O tratamento a queimaduras é definido como “complexo” por requerer a atuação de profissionais de diferentes áreas – terapia intensiva, cirurgia plástica, dermatologia, fisioterapia, nutrição e psicologia, entre outras –, além de demandar recursos materiais e uma estrutura física adequados ao atendimento, devido ao grande impacto que o trauma provoca no organismo da vítima. “O paciente queimado é extremamente sensível”, diz Júlio Soncini. “O centro cirúrgico deve ter regulação térmica própria e o hospital precisa contar com uma unidade de terapia intensiva específica, para não haver contaminação [proveniente de outros doentes]”, afirma.
Nos últimos anos, alguns avanços vêm possibilitando até um índice maior de sobrevivência entre os casos mais graves. Um deles é o uso da pele artificial – embora seja um recurso muito caro e pouco acessível –, empregada no país pela primeira vez em 2006, no Hospital das Clínicas da USP.
Entre os procedimentos da fisioterapia, um dos mais importantes, na opinião de Cristina Afonso, foi a adoção da respiração artificial não invasiva, para queimados que inalaram fumaça. Há cerca de seis anos, a fisioterapeuta concluiu que o entubamento implicava um risco muito maior, pois com ele o paciente, além de sedado, ficava impossibilitado de tossir, algo importante para eliminar a fuligem do pulmão, conforme ela explica.
Outra mudança relativamente recente nesse campo é que os exercícios começam assim que o paciente chega à unidade. Antigamente ele era poupado por causa das dores, mas depois se observou que os benefícios justificam o esforço. Com ele, se garante a amplitude de movimentos, bem como o alongamento e o fortalecimento da musculatura, assim como melhor funcionamento cardiorrespiratório. “Coloco o paciente para andar o mais rápido possível”, conta Cristina.
A dor, no entanto, é o que mais dificulta a reabilitação do queimado, já que tem impacto não só físico como emocional, explica a fisioterapeuta. A sedação, na hora dos curativos cotidianos, muitas vezes não basta para amenizá-la.
Tratamento
A avaliação inicial do queimado é um dos momentos mais importantes do atendimento. Segundo Lídia Rossi, a grande perda de líquido tem de ser revertida nas primeiras horas. Também é essencial estimar a porcentagem do corpo atingida. A criança com mais de 10% da pele queimada e o adulto com mais de 20% devem ser internados. O mesmo vale se forem atingidas áreas como o rosto, as articulações, as mãos, os pés ou a região cervical, ou ainda quando o trauma for muito profundo ou tiver origem química ou elétrica.
Também é importante extrair o tecido morto o quanto antes, para evitar infecções. “Depois, é preciso retirar pele de uma área doadora para cobrir a região atingida”, explica o cirurgião plástico Alfredo Gragnani Filho, coordenador técnico da Unidade de Tratamento de Queimaduras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A enxertia, como a prática é denominada, pode ser feita de duas maneiras. Uma delas implica a retirada de uma lâmina da pele do próprio paciente, por exemplo, da parte de trás da coxa ou do couro cabeludo. Na outra, é usado o que os médicos chamam de malha – quando a área queimada é extensa, e a doadora, pequena. “Um aparelho aumenta o tamanho da lâmina”, diz Alfredo Gragnani. “Ela fica cheia de orifícios, que cicatrizam depois”. Esse procedimento, no entanto, deixa mais marcas.
Muitas vezes, porém, o paciente foi tão extensamente atingido que não há pele disponível para a “autodoação”, ou então seu organismo está muito debilitado e não permite mais esse procedimento. Mesmo assim, é importantíssimo cobrir suas feridas. Abertas, elas expõem o organismo a todo tipo de infecção e favorecem a perda de líquido, plasma e proteínas.
A maior dificuldade, no entanto, é conseguir material para substituir a pele que foi queimada, já que todos os produtos industrializados próprios para isso, como a “pele artificial”, feita de colágeno bovino ou porcino, só chegam aos pacientes brasileiros por meio de importação e são muito caros. Uma “pele artificial” de aproximadamente 15 por 15 centímetros custa, segundo Júlio Soncini, cerca de R$ 38 mil.
Bancos de tecido
Nos países europeus ou nos Estados Unidos, é comum utilizar pele de cadáver. Segundo Alfredo Gragnani, ela funciona tanto como curativo quanto como base para o enxerto. “Neste último caso, para não haver rejeição, o material passa por um tratamento antes do uso”, explica ele.
Nos EUA, há cerca de 60 bancos de pele. No Brasil, existe apenas um, na Santa Casa de Porto Alegre. No Hospital das Clínicas da USP, na capital paulista, funcionou um banco de tecidos por alguns anos, mas, segundo o médico David Gomez, responsável pela Unidade de Queimados, o local foi fechado para reforma e, devido a trâmites burocráticos, não tem previsão para reabertura.
Pesquisas desenvolvidas em laboratórios da Unifesp e da USP podem um dia melhorar muito a vida de vítimas de queimadura. As duas instituições têm trabalhado no “cultivo” de epiderme, capaz de multiplicar a cobertura retirada da própria pessoa. “Pego 2 centímetros quadrados de pele que não queimou e, em três a quatro semanas, consigo trazer de volta para o paciente cerca de 1 metro quadrado”, diz Alfredo Gragnani.
Antes que seja possível aplicar essa técnica na sala de cirurgia, porém, será necessário muito investimento. “Para cada área de 3 a 4 centímetros quadrados de pele retirada, o custo é de mais ou menos US$ 10 mil.” Nos países desenvolvidos, o uso da pele cultivada já é comum, segundo David Gomez.
Depois que a ferida fecha, é necessário cuidar da cicatriz, para evitar hipertrofia e problemas motores que esta possa ocasionar. Se a região onde se localiza for muito próxima das axilas, por exemplo, ela pode “prender” os braços. Para isso, é fundamental o uso da malha compressiva, a massagem com hidratação e o alongamento, que ajudam a “reorganizar” a cicatriz, já que ela não possui elasticidade para se esticar. O papel da malha e da massagem, que deve ser feita com bastante pressão, também é diminuir a sensibilidade e, assim, amenizar a dor. Por vezes, também é necessário utilizar órteses, dispositivos que auxiliam o paciente a manter determinadas posições. Para a fisioterapeuta Cristina Afonso, o mais importante é garantir “funcionalidade e conforto”.
A hidratação da cicatriz precisará ser feita cuidadosamente para o resto da vida do queimado, pois aquela pele não tem mais glândulas sebáceas ou sudoríparas e, por essa razão, não é mais capaz de se hidratar por conta própria. “Se não, vão surgir rachaduras e microlesões que, ao longo dos anos, podem se tornar câncer”, explica Cristina.
Inflamável
O uso do álcool para acender a churrasqueira, muito comum nas residências brasileiras, demonstra claramente a falta de preocupação com os riscos de queimaduras. Para pôr fogo no carvão de forma mais segura, o recomendável é utilizar pedaços de jornal, colocados na base da churrasqueira, acendedores próprios para isso, encontrados em supermercados, ou ainda um pedaço de pão embebido em óleo.
Ter em casa o álcool líquido, bastante usado na limpeza doméstica, é ainda mais comum. No entanto, o hábito também propicia a ocorrência de acidentes, segundo todos os especialistas em queimaduras consultados.
Em fevereiro de 2002, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) baixou uma resolução (RDC 46/02) determinando que fosse retirado dos supermercados o álcool líquido com graduação maior que 46,3 INPM (ou 54º GL) – abaixo desse nível o produto é menos inflamável, embora não sirva para desinfecção, já que somente o álcool de INPM entre 68 e 70 é próprio para essa finalidade. Acima do estabelecido na RDC o produto só poderia ser vendido ao público na forma em gel, considerada mais segura pelo simples fato de não se espalhar tão facilmente.
Contudo, os fabricantes alegam que o álcool líquido não é perigoso e, antes de a norma entrar em vigor, a Associação Brasileira dos Produtores e Envasadores de Álcool (Abraspea), que reúne nove empresas, responsáveis pela produção de 200 milhões de litros por ano, obteve uma liminar contrária à medida. Em 2006, o julgamento da ação também lhe foi favorável. Desde 2007, por outro lado, tramitam alguns projetos de lei no Congresso, com objetivos similares ao da RDC 46/02.
Segundo Ary Alcantara, representante da Abraspea, em vez de proibições, é preciso haver educação e prevenção. “Queremos que o álcool seja bem utilizado.” A entidade, porém, nunca se preocupou em fazer campanhas. “Vamos produzir um material sobre isso para nosso site”, diz Alcantara.
Já a presidente da Associação dos Portadores de Sequelas de Queimaduras (Aposeq), Ana França, afirma que até o estímulo ao uso do álcool gel para higienização das mãos deveria vir acompanhado de alertas. Ela conta que uma vizinha deixa seu potinho com o produto na cozinha, a dois metros do fogão, e acredita que nada pode lhe acontecer.
Precauções essenciais
Crianças
• Manter os pequenos afastados de fornos aquecidos;População em geral
• Evitar o uso de produtos inflamáveis (como o álcool) em casa. Se isso não for possível, guardá-los em local seguro;Cuidados imediatos
Entre as principais recomendações do Instituto Pró-Queimados às vítimas de
queimadura está, em primeiro lugar, “não colocar nada sobre o local afetado”.
Além de oferecer risco de contaminação, produtos como pasta dental ou café
poderão dificultar a limpeza da ferida pelos médicos.
Outras orientações do IPQ são lavar a área atingida somente com água em
temperatura ambiente e protegê-la com um pano limpo. Também é importante retirar
anéis e cintos, antes de o corpo inchar.
Para apagar o fogo, o melhor é rolar no chão ou se embrulhar em um cobertor.
No caso de pequenas queimaduras, é importante manter a área limpa e
protegida, a fim de garantir a recuperação do tecido.
Gravidade das queimaduras
Primeiro grau: Lesão da camada mais superficial da pele, a epiderme. Cura
espontaneamente.
Segundo grau: Lesão de cerca de metade da espessura da pele. Há formação de
bolhas – que nunca devem ser furadas.
Terceiro grau: Lesão de toda a espessura da pele, levando à formação de
feridas. O tratamento é feito com enxertia de pele.
Fontes: HC-USP e IPQ