Postado em 07/07/2009
Oferta de imóveis cresce, mas déficit para os menos favorecidos permanece
CELIA DEMARCHI
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O mercado imobiliário brasileiro finalmente deslanchou, a ponto de ser comparado ao mexicano, que passou por um estrondoso boom nos últimos anos. Porém, ainda que o déficit habitacional se verifique majoritariamente nas famílias da base da pirâmide social, a oferta é maior para a classe média, que está pagando cada vez mais caro pela casa própria, uma vez que o súbito aquecimento do mercado fez disparar os preços para esse público, cuja demanda estava reprimida. Já para o segmento de baixa renda, a expansão, embora tenha o mérito de trazer novos conceitos de moradia, repete uma estratégia que os urbanistas condenam: a ocupação das bordas das cidades, ignorando, por falta de política urbana, a existência de milhares de imóveis desocupados nas regiões centrais.
Um dos grandes responsáveis pelo forte aumento da oferta de imóveis é o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), do governo federal, criado para atender famílias com renda mensal de até dez salários mínimos. Segundo estudo da Fundação João Pinheiro, do governo de Minas Gerais, a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2007 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as famílias com renda de até três salários mínimos respondem por 90,9% do déficit. Ainda de acordo com a mesma fonte, o déficit quantitativo de moradias é de 6,3 milhões, enquanto o qualitativo alcança 15,5 milhões, devido à carência de infraestrutura, inadequação fundiária, adensamento em excesso, domicílios sem banheiro e as mais de 4 mil favelas do país.
Desde o lançamento do PMCMV, em março de 2009, até a primeira quinzena de abril de 2010, foram encaminhadas à Caixa Econômica Federal (CEF) pelas construtoras 813.719 propostas no âmbito do programa, das quais 480.668 (cerca de 59%) destinavam-se a famílias da menor faixa de renda. Porém, de todas as novas unidades habitacionais financiadas em 2009 pelo conjunto das entidades que integram o Sistema Financeiro de Habitação, o PMCMV responde por 45,7% – em outras palavras, a parcela maior da oferta ainda é destinada à classe média.
A grande receptividade ao PMCMV se deve às condições que o programa oferece, já que os imóveis são subsidiados, em diferentes proporções, de acordo com a faixa de renda de cada família. Além disso, no caso do segmento de renda mais baixa, a demanda é garantida, pois os projetos são aprovados com antecedência pela CEF, que compra os imóveis, repassando os recursos às empresas ainda durante as obras, em etapas.
Para a faixa de renda mais baixa, o valor mínimo de casas ou apartamentos tem de ser de R$ 37 mil a R$ 41 mil e o máximo de R$ 41 mil a R$ 52 mil, dependendo da região do país. As famílias pagam 120 prestações, equivalentes a 10% de sua renda, e a diferença é coberta por subsídios do Orçamento Geral da União. No caso da faixa que recebe de três a seis salários mínimos, a CEF financia o imóvel, que deve custar no máximo R$ 130 mil, e concede descontos que podem chegar a R$ 23 mil, de acordo com os rendimentos familiares.
“Esse programa acertou na mosca”, diz Luiz Paulo Pompéia, diretor da Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio (Embraesp). “É um dos principais fatores de crescimento do segmento econômico e do mercado”, diz ele, lembrando ainda que o PMCMV foi bem-sucedido devido a uma conjunção de eventos – a demanda estava reprimida, os prazos de financiamento foram alongados, permitindo a redução do valor das prestações, foram abertas linhas de crédito para as construtoras, a renda do brasileiro se recuperou a partir de meados de 2004 e a economia passou a ser reconhecida como “sólida”, estimulando investidores internos e externos a apostar no setor imobiliário, entre outros.
Inquietação
Nesse contexto, desde o ano passado, apesar dos reflexos da crise internacional, começaram a brotar, em bom ritmo, condomínios de porte variado por todos os cantos do país. O mercado popular atraiu inclusive grandes empresas que jamais haviam atuado nesse segmento – como Odebrecht e Cyrela, que criaram, respectivamente, a empresa Bairro Novo e a marca Living para construir apenas moradias econômicas, além de OAS, Rossi, MRV, Rodobens, Direcional e da mexicana Homex. Especializada no mercado de baixa renda, esta última produz perto de 60 mil moradias por ano em seu país, onde o mercado dá sinais de esgotamento, e desembarcou no Brasil em 2008, onde já lançou um empreendimento, em Marília (SP).
Os urbanistas, no entanto, mesmo festejando a ampliação da oferta, ficaram inquietos com tal agitação. De acordo com a arquiteta Erminia Maricato, os empreendimentos do programa federal estão em lugares inadequados, são grandes demais e causam impacto “fortíssimo” nos preços, devido à especulação. Como se não bastasse, estaria se repetindo um erro histórico: “Mais uma vez, estamos mandando os pobres para fora da cidade e fazendo não mais que meia dúzia de projetos para os moradores de áreas de risco”. Com grande experiência em planejamento urbano e habitação popular, Erminia é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), ex-secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da cidade de São Paulo e ex-ministra adjunta do Ministério das Cidades.
Ela ressalta também que os condomínios – muitas vezes gigantescos – que estão sendo construídos contrariam a tendência mais moderna em urbanismo, de adensamento das cidades de forma a otimizar o uso da infraestrutura urbana. Por isso mesmo, defende antes de tudo a requalificação dos imóveis desocupados nas áreas centrais, que virtualmente poderiam acomodar um número de famílias equivalente ao déficit habitacional. Somente em São Paulo, havia cerca de 400 mil imóveis desocupados no ano 2000, segundo dados do IBGE.
De fato, grande parte dos empreendimentos do PMCMV são constituídos de várias centenas ou mesmo milhares de moradias, quase sempre nas áreas que as construtoras chamam de “vetores de desenvolvimento” – ou seja, nas bordas das cidades. Ao menos parte deles, no entanto, tem projetos bem diferentes dos que embasavam os condomínios do antigo BNH ou mesmo das Cohabs e da CDHU. É o caso daqueles erguidos pela empresa Bairro Novo, do grupo Odebrecht (ver texto abaixo).
Mecanismo legal
Essa inversão de prioridade, na opinião de Erminia, é produzida nas câmaras municipais, que dificultam reformas fundiárias, já que seus membros muitas vezes são eleitos pelo capital imobiliário. Além disso, o Estatuto das Cidades (lei 10.257/2001), elogiado em todo o mundo, segundo a arquiteta, é totalmente ignorado por legisladores e prefeituras.
De fato, se fossem aplicados instrumentos dessa lei, que regulamenta o capítulo Política Urbana da Constituição considerando a função social da propriedade, é provável que houvesse bem poucos prédios vazios nas cidades. Um dos mecanismos que constam dela é o IPTU progressivo, que prevê aumento do valor do imposto para imóveis subutilizados ou desocupados que não cumpram uma função social e sua desapropriação em caso de inadimplência.
As prefeituras, porém, não costumam aplicar a lei porque esta não prevê o que é “função social”, conceito que deveria, então, ser definido nos planos diretores de cada município – algo que raramente acontece. Assim, as administrações muitas vezes escolhem fazer o inverso: perdoar dívidas tributárias, estimulando os proprietários a manter os imóveis desocupados enquanto esperam por preços ou projetos atraentes para comercializá-los.
A prefeitura de São Paulo, por exemplo, implementou, desde 2006, o Plano de Parcelamento Incentivado (PPI), por meio do qual parcela dívidas de IPTU, anistiando os devedores de multas e juros. Em um estudo que fez sobre edifícios vazios no centro da capital pelo Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da FAU-USP, a pesquisadora Helena Menna Barreto Silva escreveu que isso “praticamente anulou a possibilidade de aplicação dos instrumentos legais previstos para facilitar a aquisição de edifícios com dívidas”.
No ano passado, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, enviou à Câmara um projeto de lei de revisão do plano diretor da cidade, criado em 2002. Entre as mudanças propostas – que desagradaram imensamente a urbanistas –, estava a de adensar ainda mais áreas já intensamente ocupadas e aplicar os recursos arrecadados com a ampliação do coeficiente de aproveitamento não na mesma região – como dita a versão original do documento –, mas em outros locais da cidade, a critério do Executivo. Essa iniciativa foi recebida por entidades da sociedade civil como um “antiplanejamento”.
No entanto, em seguida, no começo de 2010, a prefeitura desapropriou 53 prédios desocupados na região central da cidade, anunciando a construção de 2,5 mil moradias populares pelo Programa de Habitação e Requalificação do Centro – Renova Centro. Segundo a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), mais da metade dos edifícios são devedores de IPTU – com débito médio de R$ 150 mil. Serão investidos R$ 400 milhões no projeto, incluindo o valor das desapropriações e das reformas. A ideia, de todo modo, é repovoar o centro, que, além de infraestrutura (400% menos utilizada à noite, quando fica praticamente ociosa) e transportes de sobra, concentra grande volume de empregos.
Essa situação implica outra: todos os dias se realizam cerca de 300 mil viagens de outras partes da capital paulista para a Praça da Sé. E, se o centro ganhasse 150 mil novos moradores – o número de pessoas que deixou a região entre 1991 e 2009, de acordo com dados divulgados pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab-SP) –, haveria 7 mil viagens de ônibus, metrô e trem a menos por dia. Ou seja, o sistema de transporte urbano seria aliviado.
Nem todos, entretanto, acreditam que o centro possa abrigar volume muito grande das chamadas habitações populares. Apesar de defender o adensamento, com moradias pequenas, adequadas ao novo modelo familiar, e a proliferação de equipamentos públicos, coletivos, Marco Antonio Ramos de Almeida, superintendente da Associação Viva o Centro, diz que a população de baixa renda talvez não seja a mais indicada para ocupar as áreas centrais. Isso porque os imóveis poderiam alcançar preços de mercado relativamente altos e as pessoas tenderiam a vendê-los e comprar outros, em locais mais distantes. “Se forem famílias de baixíssima renda, o prédio poderá cair em degradação novamente”, acrescenta ele.
Almeida calcula, ainda, que não haveria volume tão grande de prédios para requalificação. Embora acredite que a reforma – ou retrofit, no jargão do mercado – possa ser interessante para imóveis comerciais, que constituem a maior parte dos edifícios vazios do centro de São Paulo, ele alerta que seria bem mais complexo e caro transformar tais prédios em residenciais.
Novos conceitos
O forte crescimento do mercado imobiliário brasileiro está criando uma inusitada concorrência no segmento de moradia popular, fazendo despontar novos conceitos de habitação.
Um exemplo são os projetos da empresa Bairro Novo, da Odebrecht Realizações Imobiliárias. Criada especialmente para atuar nesse novo nicho, a companhia constrói bairros inteiros, planejados, com mil a 10 mil casas ou apartamentos de 41 a 62 metros quadrados, divididos em condomínios pequenos e sempre destinados a famílias com renda de até 10 salários mínimos, público do PMCMV.
A inspiração do modelo veio do México, segundo Roberto Senna, diretor superintendente da Bairro Novo, que visitou empreendimentos naquele e em vários outros países: “Avaliamos tanto as experiências positivas quanto as que não deveriam se repetir”.
Um dos espelhos da companhia foi a Homex, líder do segmento econômico naquele país. Como ela, a Bairro Novo trabalha com extensas glebas e grande número de moradias, o que permite negociar melhor o preço da terra e dos materiais. Além disso, utiliza tecnologias construtivas que possibilitam ganho de escala e economia de tempo e dinheiro. As paredes de concreto, por exemplo, são moldadas em formas de alumínio, técnica que possibilita a construção de seis habitações em cerca de cinco dias.
De acordo com Senna, sempre é feito o mapeamento do entorno do empreendimento para verificar a oferta de serviços públicos – na falta de algum item, a empresa doa uma área aos poderes públicos para que possam implantá-lo. Dessa forma, o bairro planejado é sempre dotado de toda a infraestrutura urbana (ruas pavimentadas, sinalizadas e iluminadas, redes de água e esgoto) e ainda de equipamentos de lazer, comércio, serviços, segurança e transporte público.
Com o objetivo de assegurar a sustentabilidade dos bairros, a empresa também se envolve na administração dos condomínios (cuja taxa por unidade é de R$ 70 a R$ 100) e pode se responsabilizar por esse trabalho por até cinco anos. Durante esse período, promove oficinas para capacitar a comunidade em reaproveitamento de água e coleta seletiva de lixo. Ao mesmo tempo, apoia a formação de associações de moradores e prepara seus integrantes para assumir a própria administração.