Postado em 02/03/2010
A maior metrópole do país é terreno fértil para o surgimento de grupos sociais que influenciam o padrão estético e a moda, além de quebrar paradigmas de comportamento
Na cidade de São Paulo, emerge uma geração de múltiplas facetas. Como em outras metrópoles, o espaço urbano é heterogêneo e, justamente por isso, abraça as mais diversas tribos sociais, com características e gostos próprios. Alguns grupos parecem ter saído das histórias em quadrinhos para a vida real. Outros fazem questão de manter a sensibilidade à flor da pele. Há também os “introspectivos”, imersos nas novas tecnologias, e os adeptos de uma filosofia de vida de preservação dos direitos dos animais. “O termo tribos urbanas surgiu nos anos de 1980, com o sociólogo francês Michel Maffesoli. E designa todos esses grupos que se expressam e têm maior evidência nas megalópoles, mas que também se encontram em cidades menores”, diz a doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Leila Maria da Silva Blass, coordenadora do livro Tribos Urbanas: Produção Artística e Identidades (Annablume, 2004).
Geeks, emos, cosplayers, vegans são exemplos dessas tribos socioculturais. “Quanto maior a heterogeneidade, maior a liberdade para se expressar. Toda vez que existe homogeneidade ou unanimidade exacerbada, assusta, porque lembra o período nazifascista”, alerta Leila Blass, também professora de sociologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conviver com as diferenças, no entanto, tem um preço. Sem um olhar mais crítico, grupos recebem rótulos que os estigmatizam. “Isto ocorre porque há o olhar de dentro e o olhar de fora. A visão totalmente externa gera etiquetas e preconceitos”, comenta a especialista. “O primeiro a chamar a atenção sobre isso foi Lévi-Strauss – antropólogo e filósofo francês [1908-2009]. Ele viajou pelo interior do Brasil e alterou o olhar estrangeiro sobre aqueles que não eram europeus.”
O doutor em Antropologia Social pela USP e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Luiz Henrique de Toledo, analisa o surgimento dessas tribos em função da vida em sociedade. Assim, na sua opinião, os grupos produzem os seus projetos e as suas intenções de acordo com o período histórico. Todos revestidos de vocabulário, estética e atitudes pouco convencionais das épocas. “Os grupos são instituições não formais que ocupam quadros das elites para se expressarem política ou culturalmente”, explica Luiz Henrique, também membro do Núcleo de Antropologia Urbana-USP (NAU). “Eles se identificam em razão da música, do esporte, da política, porque a identidade é fragmentada em série de experiências.”
Versão descolada do nerd
Sob o olhar externo, os geeks – gíria em inglês sem significado definitivo, que designa os obcecados por tecnologia e jogos eletrônicos – estiveram em baixa por muito tempo. Associados aos nerds – termo semelhante ao geek –, eles são considerados sujeitos introspectivos e antissociais, incapazes de se relacionar com as garotas e sem jeito para o esporte. O trunfo desses garotos “pouco populares” são as boas notas obtidas nas salas de aula. Algo que não ajuda a minorar outros aspectos. “Nunca aprendi a chutar uma bola em linha reta”, lembra o designer gráfico Leandro Damasio Rafaini, de 34 anos. “Eu era o excluído da sala e, se perguntar a todos que estudaram comigo, ninguém vai se lembrar de mim.”
Visto como um geek pelos amigos, o designer acredita que, com o aumento da importância das tecnologias na vida das pessoas, esse grupo ganhou status. Embora preencha os requisitos, não se considera membro da tribo. A classificação caberia aos que dominam técnicas avançadas de programação. “Sou parecido com um geek porque fuço, desmonto e tento desenvolver alguma tecnologia. Já um nerd está mais para um acadêmico”, teoriza.
Ex-viciado em games, Rafaini jogava Space Invaders oito horas seguidas no Atari (videogame). Os jogos eletrônicos, aos poucos, ficaram de lado. E deram lugar à informática e tudo que envolve a área. Leitor assíduo de revistas sobre o assunto, atualmente passa a maior parte do tempo ao PC. “O computador fica ao lado da minha cama, assim quando acordo ou vou dormir posso utilizá-lo”, afirma.
É tudo verdade
Quem pensa que alguns personagens de ficção só podiam ser vistos no cinema, nas revistas em quadrinhos ou nos jogos eletrônicos que “fizeram a cabeça” do geek Rafaini está enganado. De alguns anos para cá, ídolos, heróis e vilões apresentam-se em carne e osso. Isso foi possível graças à imaginação e à criatividade dos cosplays – abreviação de costume play ou costume roleplay, que significa “jogo de disfarces”, “jogo de fantasias” ou “jogo de trajes”. Os participantes desse grupo, denominados cosplayers, encontraram na arte do disfarce e da transformação mais que um passatempo. Para eles, quaisquer personagens podem ganhar vida, forma e características fiéis. “Cosplayer é a mistura de um artesão com um ator”, esclarece Jeffrey Haiduk, 33, ilustrador e administrador do fórum Cosplay Brasil, com oito anos de existência e 2 mil membros ativos.
São fontes profícuas para o cosplay as séries de TV e o cinema. Foi com a popularidade de Star Trek (Jornada nas Estrelas) e Star Wars (Guerra nas Estrelas), por exemplo, que a arte surgiu nos anos de 1960 e 70 nos Estados Unidos, e depois se fortaleceu no Japão. Já no Brasil, a prática foi impulsionada pelos animes, como Saillor Moon, Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball, e o mais recente Naruto. “O boom do momento é o Avatar (2009), mas cada época tem uma série favorita”, destaca Haiduk.
Qualquer pessoa pode ser cosplayer: crianças, adultos, adolescentes e até pessoas da terceira idade. “Vai muito da paixão da pessoa”, lembra Jeffrey. Há cosplayer, por exemplo, que só quer “copiar” a roupa do personagem. Outros se comportam como tais e os interpretam.
Engana-se, porém, quem acha que a tribo sai travestida a qualquer hora e para ir a qualquer lugar. Para isso, existem os concursos e eventos específicos. “É igual ao carnaval. Acabou a folia no sambódromo, ninguém vai ficar por aí com a fantasia no corpo”, afirma Haiduk.
Uma das maiores feiras de cosplay do país é o Anime Friends, que ocorre em julho. Segundo os organizadores, são seis a oito dias de evento, com cerca de 100 mil participantes. Jeffrey conta que, num dos encontros, dois cosplayers surpreenderam o público com uma dose de humor. Vestidos de Homens-Aranha, eles dançaram no palco ao som clássico Rock das Aranhas, de Raul Seixas. “Para quem estava presente e entendeu a brincadeira, foi muito divertido”, diz.
Emo, eu?
A franja cai à testa, o tênis é cano alto colorido, a calça e a camiseta são apertadas. Esse é o visual do estudante Danilo Vieira, de 20 anos. A “estampa” lembra um adepto da tribo emo – palavra derivada de emotion (emoção) e core, do gênero musical hardcore. Danilo, porém, “jura” não ser emo. Para ele, enquadra-se neste perfil quem pinta as unhas de preto, é extremamente emotivo e frequenta shows para expor as suas emoções, como “chorar” e “cortar os pulsos”. Ações e atitudes com as quais ele logo esclarece não compactuar. “Faço tudo diferente disso. Mas quando a pessoa tem um cabelo diferente, ela é emo ou homossexual”, lembra Vieira, que se considera eclético. “Sou alternativo porque escuto qualquer estilo musical e frequento todos os lugares para dançar.”
Ao lado e atenta à conversa, encontra-se a estudante Dafna Anat. A amiga de Danilo foi emo dos 12 aos 14 anos. Mas agora, aos 17, ela acredita que passou da idade. “Eu achava legal ser emo, mas depois encontrei estilos diferentes quando fiquei mais velha”, avalia. “Mas tem gente que continua depois de velho. Tenho um colega que chamo de vovô emo”, referindo-se ao conhecido de 24 anos. Na escola onde estuda, Dafna enumera vários outros grupos: “patricinhas”, “maloqueiros”, “rappers”, “nerds”. Mas, segundo ela, o destaque atual não pertence a nenhum deles. “A moda do momento é ser colorido”, diz, colocando à luz mais um grupo que não dispensa cores bem fortes na vestimenta.
Ideologia de vida
Encostada no corrimão do terceiro andar da Galeria do Rock, em São Paulo, a vegan Bianca Santos Matinata, 20, conta sobre o modo de vida “veganista” – baseado na convicção de não usar nenhum produto que fira os direitos dos animais. Com os cabelos em forma de rolos, conhecidos como dreadlocks, ela não difere visualmente dos grupos que circulam pelo local – a não ser por motivos ideológicos. Em seu vestuário não há nada que contenha couro, seda e lã, por exemplo. “Opto por produtos sintéticos”, explica. Como todo vegan, ela também não consome nada de origem animal: carnes, laticínios, ovos, mel, etc.
Os vegans são considerados vegetarianos estritos, já que seguem uma dieta diferente de outras três: lactovegetarianismo (dieta tradicional na Indía, pela qual os que a aderem se abstêm de ovos e de qualquer tipo de carne); ovolactovegetarianismo (dieta composta por alimentos de origem vegetal, ovos, leite e derivados deles, exceto qualquer tipo de carne); e ovovegetarianismo (composta apenas por alimentos de origem vegetal e ovos, com a ausência de produtos lácteos e seus derivados e de carne). “O vegan é 100% vegetariano, por isso estrito”, enfatiza Bianca.
Tais contrapontos ideológicos são os mesmos mantidos pela tribo straight edge [dissidência do punk, cujo movimento prega o inconformismo, o direito à vida de homens e animais e a adoção de uma dieta vegetariana]. Apesar de nem todo vegan ser streied e vice-versa, eles defendem questões parecidas: respeito ao meio ambiente, à vida dos animais e à das plantas, além do combate ao uso de drogas. “As duas tribos têm mais em comum do que diferenças”, arremata Bianca.
Outros grupos sociais
Torcer pelo time do coração, ser apaixonado pelo futebol e amar o samba – sobretudo em períodos de carnaval – são também formas de identificação que mantêm “vivas” as torcidas organizadas de futebol. Essa relação vivenciada pelo torcedor foi tema do bate-papo Conversa de Várzea, realizado em fevereiro, no Sesc Ipiranga. O antropólogo Luiz Henrique de Toledo, estudioso do fenômeno das torcidas organizadas de futebol, sobretudo as paulistas, participou do evento. “O torcedor tem uma identidade relacionada com o clube, tem ainda uma relação de amizade e cumplicidade com os projetos que ali são desenvolvidos”, afirma. “Por isso, a relação dos torcedores vai além da mera fruição, do desejo de estar próximo do ídolo e do apreço pelo futebol.”
O pesquisador afirma ainda que o nascimento de um grupo também representa uma resposta ao período e ao contexto que o constitui. “No caso da torcida organizada, ela surge como reação à falta de oportunidade de educação formal, entre outros fatores”, destaca Toledo. “O hip-hop é outro que vem oxigenar a participação política, porém por intermédio de um movimento da arte e de uma cultura elaborada pelas pessoas da periferia. Ele preenche uma lacuna deixada pela sociedade.”
Para além da justificativa social está mesmo a paixão pelo time. É o que garante Ângelo da Silva, integrante da Gaviões da Fiel – torcida organizada do Corinthians. O torcedor de 31 anos, 17 deles dentro da Gaviões, considera a associação como uma família na qual expõe os sentimentos pelo clube e pelos companheiros. “A paixão que a Gaviões tem pelo Corinthians não dá para descrever. Não tem como pôr no papel porque é massa, é população, é povão”, comenta o torcedor.
Olhar do Junkie
Se o olhar é importante para identificar as tribos, Rodrigo Carneiro é munido de duas lentes especiais. Além do olhar acadêmico de sociólogo, Carneiro é vocalista da banda Mickey Junkies – quarteto formado em 1991, que transitava pelo cenário do rock alternativo no Brasil, apresentando-se inclusive no Sesc Pompeia.
Testemunha da efervescência cultural dos grupos, o músico aponta a juventude como fator de as tribos estarem em constante invenção e reinvenção. “As manifestações das tribos remetem à cultura jovem, que aparece desde os anos de 1950, com a inclusão do rock’n’roll e com a questão da literatura, principalmente a beatnik (movimento sociocultural de juventude anticonformista)”, diz.
Carneiro se envolveu com alguns movimentos no final dos anos de 1980, quando a informação sobre o assunto ainda era muito restrita. “Havia um componente forte de gangues nas ruas e questões ligadas ao visual, por exemplo, resultavam em bobagens e violência.”
Para Carneiro, na época, a relação com a sociedade era conflituosa em São Paulo. Arriscar-se nas ruas com um visual punk, gótico ou rapper suscitava ofensas. “Hoje quero acreditar que existe mais liberdade de expressão”, lembra-se ele, considerando que as tribos surgem por meio da identificação visual, da estética e dos modelos de comportamento. “No caso especifico dos geeks, emos e cosplayers não há um contraponto ideológico que os classifiquem. Mas não quer dizer que não haja uma visão crítica”, conclui.
Diversidade na Tela
Programa HiperReal leva à telinha detalhes da vida de jovens de diferentes grupos urbanos
Com objetivo de flagrar manifestações culturais e comportamentais de grupos urbanos, o SescTV apresenta, desde dezembro, o programa HiperReal. Dirigida pelo antropólogo e cineasta Kiko Goifman, a iniciativa, que tem perfil documental, retrata grupos como bikers, stickers, cosplayers, grafiteiros e skatistas. “Tratamos as questões mais diversas que envolvem os grupos urbanos”, afirma o diretor. O modo como as “tribos” vivenciam a cidade, interagem e se expressam é apresentado pelas lentes do programa sob diferentes ângulos. “Não é um documentário. Mas tem toda uma atmosfera de documentário, já que as personagens e as questões que as cercam são extremamente profundas”, lembra Kiko.
A atração leva aos telespectadores as diferentes percepções da cidade oferecidas por esses grupos. “Existe uma visão muito preconceituosa em cima dos jovens. E, por isso, a gente procura abordar o potencial dessa geração, que tem uma necessidade muito forte de expressão”, explica o diretor. “Não precisa chegar aos 40 anos para ter o que contar. Ouvir os diferentes casos é um objetivo do programa e algo que sempre me interessou, pela minha própria formação em antropologia.”
Para o gerente do SescTV Valter Vicente Sales, o HiperReal preenche uma lacuna dentro da programação ao discutir as questões sobre o público jovem. O primeiro paradigma, no entanto, foi evitar as abordagens estereotipadas sobre juventude. “Para isso, Kiko Goifman foi convidado, por sua formação e reconhecida capacidade como cineasta”, afirma o gerente.
Como as demais produções do canal, o programa espelha as propostas culturais do Sesc São Paulo. E, da mesma forma, também aqui com total liberdade para a experimentação de linguagem. Valter Sales acredita que essa liberdade é a grande vantagem da produção independente – não sendo apenas “uma questão econômica ou de mera administração de recursos de produção, mas de proposta de ação”. E acrescenta: “A difusão cultural exige protagonismo e diversidade e, nesse contexto, a produção independente responde melhor, desde que ela se identifique com propostas culturais e não seja simplesmente a terceirização de serviços de produção audiovisual.”
A maneira inteligente e ousada de tratar os temas permitiu tocar em assuntos delicados, como o dos homossexuais evangélicos em contraponto ao preconceito. Também foi possível mostrar como os stickers (adesivos em inglês) transmitem mensagens – colando adesivos na cidade –, ou como os grafiteiros produzem arte diante da escassez de verba.
A discussão gira sempre em torno de algo que identifique cada grupamento: religião, esporte, música, sexualidade e arte, por exemplo. “Colocamos em debate questões fundamentais da sociedade”, informa Kiko. “Assim, abordagens sobre o medo, a violência, o amor, o ódio, a cidade e o tempo são discutidas e veiculadas a partir da vivência das relações dos grupos.”
O HiperReal é uma iniciativa do SescTV que surgiu após um trabalho desenvolvido em 2008 entre o cineasta Kiko Goifman e o Sesc Ipiranga: Murografia: Fome de Viver. O projeto reunia a produção de oficinas de grafites, street dance, músicas e palestras sobre questões sociais. “O programa tem alterado o perfil do telespectador do canal, até então composto, em sua maioria, por adultos. Atrair públicos diferentes é importante para o SescTV”, finaliza Sales. Acompanhe a programação do Sesc TV em www.sesctv.org.br