Postado em 28/08/2009
A mulher hoje
A convite da Revista E, a cientista social Petilda Serva Vazquez, pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e a antropóloga Cynthia Andersen Sarti, estudiosa das relações familiares e de gênero, abordam quais os desafios enfrentados pela mulher do século 21. Em artigos exclusivos, as especialistas tratam de questões como discriminação no mercado de trabalho, as consequências da emancipação e as maneiras encontradas para conciliar os diversos papéis sociais, como o de mãe, de profissional, de esposa e de cidadã.
Desafios de realização e emancipação humana
por Petilda Serva Vazquez
(Adão) – Esta nova criatura de cabelos longos vive me atrapalhando. Está sempre ao meu redor e me segue por todos os lados. Não gosto disto; não estou acostumado a ter companhia. Gostaria que ficasse com os outros animais... Hoje está nublado, o vento sopra do leste; acho que nós teremos chuva... Nós? De onde tirei esta palavra? – Agora me lembro – é a nova criatura que a usa.
(Eva) – Tenho quase um dia inteiro de vida, agora. Cheguei ontem. É o que me parece. E deve ter sido isto mesmo, pois se houve um dia antes de ontem eu não estava presente quando aconteceu. Pode ser, é claro, que tenha acontecido, e que eu não tenha percebido. Muito bem; prestarei bastante atenção de agora em diante, e se alguns dias antes acontecerem, vou anotá-los. Será melhor começar direito e não deixar o registro confuso, pois algum instinto me diz que tais detalhes serão importantes para um(a) historiador(a) num dia vindouro. Pois me sinto como uma experiência, me sinto exatamente como uma experiência; seria impossível uma pessoa se sentir mais uma experiência do que eu, portanto começo a ficar convencida de que é isso que sou – uma experiência. (...) (Mark Twain em O Diário de Adão e Eva).
Muitos são os desafios da mulher no mundo do trabalho, na era da qualidade total, na qual ela se constitui em uma espécie de cobaia da organização e da gestão flexíveis e que marcam as novas relações de trabalho.
As transformações que vêm ocorrendo no meio ambiente de trabalho, com sérias consequências à saúde física e psíquica de trabalhadores e trabalhadoras, exigem que se escutem e se observem as respostas que esses sujeitos dão, quando não temem expressar suas queixas e demandas, pois são aqueles e aquelas que se reconhecem nas suas atividades.
Tais transformações atingem tanto direitos conquistados em histórias de lutas sindicais e populares, mas também representam o estabelecimento de novos/velhos ?valores nas relações de poder e dominação, fundamentado numa cultura da competência, na qual não há lugar para os bons, somente para os excelentes. Assim, a excelência passa a ser pilar de uma cultura de qualidade de base produtivista e que compromete física e psiquicamente o(a) trabalhador(a), cuja motivação e capacidade laboral correm o risco de durar apenas o mesmo tempo que duravam os escravos nas lavouras de cana no século 18, ou seja, entre oito a dez anos.
Essa discussão traz ainda o assédio moral como um fator de risco físico e psíquico à saúde no trabalho, como mais um desafio a ser enfrentado por sindicatos, órgãos públicos preocupados e ocupados com a saúde do trabalhador, e a necessidade do estabelecimento de controle social e intersetorialidade na produção de conhecimento e de ações preventivas, fiscalizadoras e punitivas das múltiplas violências presentes na organização do trabalho e que se dá, muitas vezes, de forma invisível. Nesse contexto, é importante refletir sobre a questão da transversalização de gênero no mundo do trabalho, já que a mulher trabalhadora se constitui em uma espécie de “cobaia” dessa organização flexível.
Partindo do princípio que é no trabalho onde ocorrem experiências capazes de estabelecer o potencial dialético – tanto de estranhamento do sujeito (a pessoa estranha o que lhe é familiar, dado o caráter de alienação no âmbito do trabalho no capitalismo), quanto à possibilidade de realização da sua humanidade, isto é, revelar a satisfação do que se faz, significar e/ou resignificar sentidos, razões e sentimentos quando se tece uma vida – escutar falas, queixas e demandas nos diz muito sobre danos, riscos à saúde, violência, medo, tristeza, sonhos perdidos, mas também autonomia, maturidade, amizade, prazer e luta, entre outros sentidos e sentimentos. Ouvindo uma trabalhadora do setor de calçados falar sobre os prazeres do trabalho, ela nos diz: “Amizades diferentes, vontade de lutar pelos direitos meus e dos outros, coragem de fazer valer meus direitos e deveres no trabalho”.
As múltiplas lógicas, sentidos e sentimentos fazem da experiência do trabalho, ao menos no âmbito da experiência, um universo de ativAÇÃO do sujeito como guardador, reprodutor, resignador e possibilitador de ser feliz ou não. As transformações, para se realizarem, precisam bem mais que razões, consciências, vontades e competências. Precisam de demandas. Esse é o ato essencial! As queixas, as reclamações, as denúncias são enunciadas num contexto de indignação de quem não suporta mais um determinado sofrimento, lugar ou papel. Enfim, é um enunciado que revela a tensão dialética de quem quer mudar de grau, ou seja, a vítima de condições precárias e degradadas atinge um potencial de rebeldia necessária a mudanças de toda ordem.
É nesse sentido que se processa a constituição de identidade de sujeito. A demanda é do sujeito em fazer-se. Constituição de identidade como metamorfose, como experiência contraditória, sem substancialidade, mas na predicação do que se faz, na motivação da atividade.
Contudo, o fazer-se não pode prescindir da memória portadora de questões primordiais, que se conservam no presente e são pertinentes ao processo de constituição de identidade. Não existe, então, um marco zero, cuja razão instaura novas regulagens, ações, métodos ou estratégias. Mas, podemos considerar um ponto ótimo. Quando se explicita, se expressa à demanda. Uma vivência de reflexão sobre o trabalho – em um contexto metodológico e político que vise instigar, no ato formativo (atividades de formação), o enfrentamento sentido e refletido desse fazer-se – contribui significativamente para a alimentação e instauração de demanda, que recria o sujeito. Penso que assim, “o conhecimento do passado, mediando experiências presentes, coloca referências essenciais às perspectivas atuais, para que as transformações pretendidas ou desejadas (conhecidas ou não) se realizem” (Vazquez, 2001: 37).
Mas as experiências do sujeito no trabalho têm sido ?cruéis na história do Brasil. É a história de corpos sacrificados. As mulheres hoje se constituem nas “cobaias” das novas relações flexíveis de trabalho.
As análises nos levam ao entendimento que a re-estruturação produtiva, que faz da mulher cobaia nas relações flexíveis do trabalho, re-escreve a cultura de dominação de gênero. O fato de a mulher estar inserida no trabalho produtivo, ou mesmo dispor de uma renda que lhe permitiria maior autonomia, não tem resultado em transformações, ou numa mudança significativa de grau, no sentido edificante de sujeito. No sentido do estabelecimento de novas representações e de um novo lugar social. Ao contrário, reeditam-se subordinações, aprofundam-se discriminações e desigualdades. Restaura-se, na ideologia da competência, a mulher virtuosa, altruísta e sem falhas, agora na produção. Esse cenário desafia não só os movimentos feministas, mas também áreas do conhecimento que não consideram as desigualdades de gênero como valor explicativo e analítico na construção do saber.
Entretanto, é na perspectiva da crítica ao capitalismo que não se pode descuidar das novas-velhas práticas-danos (perversão) da dominação de classe. O estranhamento no trabalho flexível verga tanto mulheres e homens que faz da loucura do trabalho um universo de tensões que precisam ser perscrutadas na sua dialética. O mundo do trabalho vem recrutando mulheres de modo a capturar valores socialmente constituídos, para assim re-editar lugares e papéis historicamente conhecidos e consolidados, a exemplo da mulher altruísta, agora sujeitada à qualidade e à cultura da competência. A trabalhadora é levada a provar o tempo todo que não erra, não falha e que é mais capaz do que os homens – para alegria e glória da produção.
Os projetos, programas e políticas para as mulheres no âmbito do movimento feminista, mesmo as políticas públicas transversalizadas com a questão de gênero, não devem descuidar de questões culturais e de dimensões de valores e subjetividade que dão significação à diversidade de experiências dos múltiplos sujeitos (individual e coletivo).
Nesse sentido, quer seja na personagem Eva, de Mark Twain – cujo enunciado revela o valor da experiência – ou mesmo no paradoxo da vida real de Pagu – que, sem nunca “atingir o máximo do êxtase-aniquilamento”, faz da sua vivência uma experiência solidária (compartilhada, sim, porém, algo que frustra o papel e o lugar de submissão que dela se espera) – sem dúvida nos remete para a dialogicidade desse sujeito que desafia a humanidade para o gozo da realização – diferentemente do prazer da conquista, significante do poder do mundo masculino – o tempo todo.
“O fato de a mulher estar inserida no trabalho produtivo, ou mesmo dispor de uma renda que lhe permitiria maior autonomia, não tem resultado em transformações, ou numa mudança significativa de grau, no sentido edificante de sujeito”
Emancipação e solidariedade
por Cynthia A. Sarti
A segunda metade do século 20 foi, sem dúvida, o momento privilegiado da emancipação feminina. A difusão da pílula anticoncepcional, a partir dos anos 1960, e a entrada da mulher no mercado de trabalho, no mesmo período, foram dois processos emblemáticos das novas possibilidades que se abriram para a mulher: o controle e determinação sobre seu próprio corpo e a independência econômica. Foram tempos de euforia, expectativas, transgressão. Poucas experiências históricas, no espaço de menos de meio século, conseguiram mudanças sociais tão radicais, cujo alvo principal foi o sistema familiar patriarcal.
O trabalho remunerado implicou uma mudança significativa no modo de vida das mulheres com qualificação profissional, por lhes dar condições de romper com o padrão tradicional de divisão sexual da geração de suas mães e avós, que “não trabalhavam” (leia-se remuneradamente), alterando, assim, a organização de sua vida familiar.
Essas mudanças incidiram, em particular, sobre a autoridade na família, redefinindo-a, tanto na relação entre homem e mulher como entre pais e filhos, diante da renda dupla do casal e das mudanças no cuidado infantil, transferido também para a esfera pública, com a incorporação das creches ao cotidiano das crianças, desde pequenas. Essas possibilidades surgem com o crescimento econômico e a expansão do sistema educacional brasileiro nos anos 1960 e 1970, permitindo também às mulheres, movidas pela disseminação do ideário feminista de ampliar as fronteiras do mundo feminino para além dos limites domésticos, o acesso à educação superior e ao mercado de trabalho.
A abertura de espaços para as mulheres, no sentido de sua independência em relação aos papéis sexuais tradicionais, no entanto, tem limites no que se refere às relações entre homem e mulher, que não acompanham as mudanças em toda sua extensão, causando inúmeros desencontros e dificuldades na vida afetiva a dois. Além disso, esse processo tem marcas de classe e de cor e as oportunidades não se apresentam da mesma maneira para todas as mulheres brasileiras. Apesar de significativas mudanças sociais e culturais, o Brasil continua um país marcado por hierarquias de classe e de raça.
Houve perdas? Talvez. Situações de subordinação social tendem a gerar mecanismos de compensação, e as mulheres, nos sistemas patriarcais, desenvolvem, ?com maestria, formas diversas de manipulação e poder informal que lhes garantem uma boa quota de benefícios. Perder esses espaços de mando dissimulado, para quem deles se beneficia, tem um preço.
O lugar feminino tradicional, que identifica a mulher com a mãe, esposa e dona-de-casa, enquanto o homem, trabalhador, se responsabiliza pelo sustento familiar, é, em muitos sentidos, um lugar infantilizado, porque tutelado. Espera-se, nesse registro, que o homem, “chefe da família”, responsabilize-se pela família e faça a mediação entre a família e o mundo externo. Simone de Beauvoir disse, em seu livro O Segundo Sexo, que a mulher não tinha uma existência própria, por ser referenciada pelo homem. Ela era o seu “outro”, imagem refletida. A Constituição Brasileira de 1988 mudou esse quadro. Eliminou a “chefia conjugal”, atribuída até então ao homem, e transformou a sociedade conjugal em uma instância de direitos e deveres iguais.
A mulher, hoje, dispõe igualmente dos direitos civis, políticos e sociais garantidos ao homem na legislação brasileira. Ela vota, tem acesso à educação formal e ao trabalho, tem direito de propriedade, de ir e vir, como qualquer cidadão. No Brasil, ela é cidadã, com os mesmos direitos e deveres atribuídos ao homem.
Passou o tempo em que as mulheres, como a escritora George Sand, se disfarçavam de homem para exercer seu ofício e ter lugar num mundo dominado por homens. As mulheres estão presentes em praticamente todas as profissões, ainda que as diferenças de gênero determinem formas diferenciadas de acesso ao mercado de trabalho. Profissões associadas ao cuidado, como a de professora de crianças ou de enfermeira, continuam sendo redutos femininos. Em carreiras prestigiadas socialmente, como medicina e direito, as conquistas femininas ainda requerem habilidades técnicas excepcionais que as destaque, porque sua presença não é facilmente assimilada. O mesmo acontece com mulheres em cargos de direção. Os caminhos da mudança cultural são lentos, não seguem uma linearidade, há ambiguidades, avanços e retrocessos. Mudanças são aceitas em certas esferas sociais, em outras há resistências, quando não um combate explícito. A violência pode configurar uma forma de reação a conjunturas em que as coisas saem do lugar habitual e não encontram outro lugar onde se situar.
No entanto, mesmo provocando reações contrárias, como sempre acontece em períodos de mudanças culturais, a emancipação feminina foi instaurada, com êxito, pelo menos, no mundo que chamamos de ocidental. Neste século 21, a mulher emancipada enfrenta as implicações e consequências de sua própria emancipação. Desfruta de sua autonomia, sua sexualidade, suas escolhas e tem a responsabilidade, ela própria, perante seus atos e decisões. Ela não está mais “protegida” pela redoma do mundo familiar tradicional. A autonomia conquistada implica o enfrentamento com o mundo tal como ele é, sem mediações.
A presença feminina trouxe questões inesperadas para o mundo público, que ainda não estão adequadamente codificadas, particularmente na esfera do trabalho. Homens e mulheres convivem e frequentam os mesmos espaços. É raro, hoje em dia, um espaço público em que essa convivência não exista. Não há mais lugares reservados a um e outro sexo, tampouco espaços delimitados de encontro entre os sexos. Assim, há que se lidar com as questões que envolvem a convivência permanente entre homens e mulheres. O espaço das relações profissionais e o das relações amorosas misturam-se e o mundo do trabalho torna-se também o cenário privilegiado de trocas afetivas e sexuais. Encontros e desencontros acontecem. Assédio sexual e assédio moral, modalidades perversas de relações entre o homem e a mulher no mundo do trabalho ganham espaço nessa convivência inevitável e mal assimilada, agravadas pelo contexto de fronteiras imprecisas e muita competitividade, em que os limites entre um e o outro não são claros, propiciando o abuso. Novas situações, novos problemas.
Ainda que o movimento feminista tenha sido inquestionavelmente benéfico para todas as mulheres, ao garantir seus direitos básicos e, assim, mudar o estatuto da mulher na sociedade, a emancipação feminina perdeu os ares de rebeldia, o tom de euforia de décadas atrás. Perdeu-se o encanto das lutas libertárias. Vivemos, em certo sentido, sob o signo do desencanto. Não pelo insucesso, foram muitas as conquistas e mudamos, para melhor, o patamar de nossas vidas, mas porque nos resta, hoje, lidar com o que somos, com o que nos tornamos, depois de tudo. E desejos, anseios, expectativas e esperanças de mudar o mundo são sempre maiores do que os resultados efetivos.
As novas gerações de mulheres não parecem interessadas nas lutas feministas. A condição feminina não se constitui em problema existencial para as mulheres jovens, hoje. Os grupos sociais que pensamos como discriminados, que são objetos de preconceitos e outras formas de violência, não estão prioritariamente associados à condição feminina, ainda que a atravessem. As mulheres continuam a ser perversamente violentadas, em casa e nas ruas, mas não apenas elas. Tivemos recentemente notícia de estupros masculinos, em situações de conflito, forma de humilhação contra os homens que também começa a ter visibilidade. Vivemos sob o signo da violência generalizada, contra homens, mulheres, velhos, crianças, homossexuais, pobres, negros, etnias diversas.
A maior conquista parece ser a de que a mulher saiu do lugar de vítima, ela é dona do destino que traçou para si. Não precisa olhar tanto para si própria, mas, num patamar de igualdade, pode unir-se a homens e mulheres e, nesse novo lugar, ser verdadeiramente solidária, porque é capaz de ir além e olhar o outro.