Fechar X

Capa
Qual é a nossa cara?

Postado em 01/01/2000

São Paulo chega ao ano 2000 com a marca de 10 milhões de habitantes. É gente de todo o tipo, origem e procedência que faz da cidade um grande mosaico humano. Após 446 anos, a conclusão que se chega é que o paulistano não possui uma identidade própria. São muitas as caras diferentes que desautorizam estereótipos e preconceitos

Não consta em nenhum arquivo os registros de um povo paulista. Será que é possível desvendar um ponto em comum que caracterize o paulistano? Ou mesmo um grupo de atributos peculiares que o forjasse como um grupo bem definido? Existiria, enfim, uma "paulistanidade"?

Difícil responder. Mas caso nos permitam, sugere-se aqui que a identidade do paulistano está, justamente, na falta de uma identidade única, pois ele detém várias, emaranhadas, mescladas e latentes sob a pele dos 10 milhões de pessoas que atualmente habitam o município, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Sempre de acordo com a presunção de que a cara do paulistano são muitas, esta reportagem buscou derrubar mitos, confirmar suposições, atinar com a história e com as "estórias". Para tanto, confrontou-se a visão corrente, freqüentemente municiada de casos e exemplos cotidianos que tendem a confirmar as generalizações mais notórias do tipo: paulista é sisudo, só trabalha, não tem senso de humor, é tradicional, tem sotaque italianado, vive em ritmo alucinante, é a locomotiva da nação, não pára e, ainda por cima, toca mal samba.

Dessas assertivas decorre uma questão fundamental: onde está a verdade. A resposta encontra-se num passado mal explorado e num presente falível, que sedimentam inverdades, preconceitos e estereótipos, pois resgata e enfrenta uma realidade que, às vezes, pode ser incômoda para alguns.

A única certeza é que no caso de São Paulo, o indivíduo que anda anônimo pela rua, enfrentando os percalços, as fantasias, os temores e as esperanças de uma metrópole gigante estampa no rosto um olhar múltiplo, herança de raízes indefiníveis.

Mistura complexa

Quem é o paulistano? O natural de São Paulo ou aquele que adotou a cidade? Desde tempos pré-cabralinos, na área onde se estende a urbe atual, confluíam dois grupos indígenas: os tapuias (jês) e os tupis. "Temos uma origem já miscigenada desde o século 16. Quando os portugueses chegaram, defrontaram-se com tupis e os chamados tapuias. Estes últimos eram tidos como bárbaros, enquanto os tupis, considerados dóceis", explica o historiador paulistano, Paulo Garcez Martins, que estudou a genealogia paulista durante o período colonial para elaborar sua tese de doutorado. "Depois, o mito da formação da cidade conta o encontro da índia Bartira com o português João Ramalho, ou seja, desde o início o paulistano é miscigenado."

Estabelecidos na nova terra, no século 16, os portugueses trataram de conquistá-la a partir da multiplicação desenfreada com as nativas. O sangue mesclado era a marca do Brasil, em geral, e de São Paulo, em particular, porque a capitania paupérrima não recebia recursos da coroa e quedou-se em semi-isolamento. Sem engenho e sem fortuna, os portugueses que aqui se firmaram tomaram dos índios as lições essenciais para dominar a terra inóspita, além de privar-lhes a liberdade, forçando-os a trabalhar no eito.

Os descendentes caboclos, de pai branco e mãe indígena, foram o germe do habitante local. Mas ainda naquele século, como ensina o historiador, a capitania começou a recepcionar gentes de outras nacionalidades. "Aportaram, além dos portugueses típicos, representados por famílias como os Afonso, os Pires e os Dias, portugueses de origem belga como os Taques e os Leme. Vieram também italianos (os Doria e Adorno) e, após a unificação das coroas ibéricas, sob a égide de Filipe II, chegaram os espanhóis (Camargo, Lara, Bueno e Toledo Piza). Mesmo em se tratando dos escravos negros, que passaram a chegar em maiores quantidades no século 18, havia diferenças marcantes entre os egressos do sul e do norte da África. Os primeiros bantos, chamados de cabindas, congos ou angolas, praticavam religiões que culminaram na umbanda/macumba, já os africanos do norte, genericamente denominados sudaneses, praticavam o candomblé."

A esse contingente diverso, multiétnico, somou-se a presença de israelitas, que acorriam a São Paulo fugindo do Tribunal do Santo Ofício. Divisa do Império, apartado de tudo e de todos, os judeus, apóstatas e praticantes, elegeram a capitania porto seguro contra os agentes da Inquisição. "Caso contrário, prossegue Paulo, como explicar a presença (revelada pelo historiador José Gonçalves Salvador), em São Paulo do século 17, dos irmãos José e Teotônio da Costa, filhos do banqueiro português Gaspar da Costa de Mesquita, judeu perseguido pela Inquisição européia?"

Mesmo quando se analisa os primórdios da colonização, percebe-se que São Paulo exerceu vocação de reunir povos. Da miscigenação, estratégia conquistadora portuguesa, e do encontro variado de nacionalidades e credos, a convivência tornou-se praticamente uma obrigação. Porém, se tais sangues se mesclavam nas veias dos descendentes, essa confluência não foi harmônica. Mistura, sim, mas tremendamente conflituosa.

Uma cidade de constrastes

Do início vira-lata, o paulistano guarda os resquícios. Não há como renegar a origem pobre e repleta de incrustações genéticas. Daí, a postura de superioridade ora assumida, ora imposta aos paulistanos não tem razão de ser. Famílias quatrocentonas não são autênticas quando postulam pureza. No passado escamoteado, transitam cromossomos de toda sorte. Muitas vezes, a verdade nua dos fatos é motivo de temor.

Ademais, a construção do mito sobre o bandeirante, desbravador intrépido, leal e valente, responsável pelos contornos continentais do país, antepassado glorioso da linhagem tradicional paulistana, recriado na retórica do início deste século, oculta uma verdade muito menos nobre, como já evidenciou na Revista E, edição de agosto do último ano, o historiador John Monteiro. Retomemos o que foi dito: "Praticamente todas as investidas para o interior tinham o único interesse de cativar índios para trabalhar".

O ideário que cinge o bandeirante com aura heróica serviu de base para o discurso político sustentado pela elite paulistana até os dias de hoje nos símbolos que guarnecem a cidade: o Palácio do Governo, o Museu Paulista no Ipiranga e os monumentos à beira do Parque do Ibirapuera.

A pretensa empáfia paulistana, "atestada" por experiências pessoais em conversas de botequim, é datada de um momento definido da história quando o dinheiro gerado pela cafeicultura nas últimas décadas do século passado repercute na transição absoluta da cidade, outrora provinciana, pacata e vazia, que se transmuda em uma metrópole avassaladora, imersa em ritmos e dinâmicas inéditos para os moradores inadvertidos.

A lavoura cafeeira, que colocava o estado em posição conspícua na produção de riquezas, e a abolição da escravatura importaram para São Paulo, a partir de 1870, um contingente extraordinário de imigrantes. Pessoas que deixaram a miséria absoluta da terra natal para mourejar essencialmente nos campos e, às vezes, na cidade. Em 1920, a proporção era de um estrangeiro entre quatro moradores da cidade. Era gente da mais variada: portugueses, espanhóis, franceses, japoneses, alemães, eslavos, árabes, mas principalmente italianos, que perfizeram 40% dos 2,5 milhões de estrangeiros que aportaram no Brasil entre 1870 e 1920, sendo que 70% deles desembarcaram em São Paulo

De todas as culturas, a cidade emprestou traços. Afinal, ainda hoje, é impossível deixar de reparar na herança de árabes, japoneses e judeus nos sabores, cheiros e arquitetura. O lastro estrangeiro ganhou força principalmente quando o contingente imigrante ainda não tinha sido totalmente absorvido pela cidade. Nesse período, os recém-chegados identificavam os quistos onde já residiam seus pares. Eram formadas, nas palavras do historiador Boris Fausto, microssociedades que reforçavam os laços de grupo em contraposição ao etnocentrismo do nacional. Assim descreveu o historiador no capítulo "Imigação: cortes e comunidades", em História da Vida Privada no Brasil, volume 4o: "Na constituição das microssociedades, os bairros étnicos desempenharam um papel importante. A tendência à concentração nesses espaços foi tanto mais freqüente quanto maior era a diferença entre uma determinada etnia e a população nacional. Assim, no caso de São Paulo, muitos judeus e japoneses localizaram-se respectivamente no Bom Retiro e na Liberdade, onde era possível, sem ser molestado ou sem provocar estranheza, alimentar-se de uma comida tida como exótica, abrir açougues onde fregueses encontravam carne casher, realizar festas religiosas, com a possibilidade de ocupar as ruas […] O "judeu de prestação", ao voltar a seu ninho no Bom Retiro, retorna a seu mundo, depois de percorrer as ruas de São Paulo, com o pesado pacote de mercadoria às costas; o japonês feirante, depois de enfrentar com seu mutismo as freguesas que regateiam insistentemente, retorna também a seu bairro, com idêntica sensação."

Da mesma forma os sírios-libaneses, que vieram à São Paulo com fama de mercadores congênitos. As crônicas da época, como nos informa Ellis Jr., comprovam o tino comercial do árabe, que "desde os tempos de seus antepassados de Sydon e de Tyro, é capaz de mercadejar a própria vida, jurando não ganhar nada" (citado por Oswaldo Truzzi em Patrícios – Sírios e Libaneses em São Paulo). Aqui estabelecido, ele cravejava as portas de suas lojas de tecido, na maioria das vezes situadas à rua 25 de Março com cartazes em sua língua natal.

Hoje em dia, a cidade incorporou os estrangeiros e os bairros étnicos perderam o significado antigo, mas a réstia de cada cultura ainda paira pela cidade.

Nova cidade

Como visto, não foram só italianos que aportaram em São Paulo, mas por ser o grupo mais expressivo, o impacto de sua presença deixou marcas profundas. Zuleika Alvim, autora de Brava Gente! A História dos Italianos em São Paulo, destaca algumas delas: "Houve influência na língua, na arquitetura e na construção de grandes obras como, por exemplo, o Museu Paulista, projetado por Tommaso Gaudenzio Bezzi e Luiggi Pucci, arquitetos italianos". Porém, a simbiose atual da cultura italiana, motivo de orgulho do paulista hodierno, e estereotipada no sotaque cantado da Moóca, na pizza e no macarrão, no início sofreu discriminação brutal. As levas de camponeses paupérrimos eram arregimentadas nos vilarejos peninsulares, confinadas em navios e, ao deitar âncora, transferidas para a Hospedaria do Imigrante e, depois, conduzidas até as fazendas, apertadas em vagões estreitos.

O contato pioneiro entre o local e o imigrante não suscitou previsões alvissareiras. "Eram desprezados pela classe dominante. Devido a diferenças culturais, eram tidos como sujos e, muitas vezes, desonestos. Nas cidades, eram chamados de ‘carcamanos’, corruptela para a expressão italiana ‘Calca la mano’, frase que segundo a tradição era proferida ao acusar os pequenos comerciantes de pesar, fraudulentamente, os produtos nas balanças", explica Zuleika.

Do contingente de italianos que desembarcou no porto de Santos, 70% deles seguiram para as fazendas na tentativa de esconjurar a ameaça de proletarização que os rondava na Itália. Queriam manter na América a lida agrícola tão cara a eles. "Os imigrantes ligados ao campo tinham origem vêneta, ou seja, da Itália setentrional. Já os italianos meridionais tinham aspirações à vida urbana." Essa diferença fundamental foi praticamente dissolvida nas generalizações. Afinal, vênetos (do norte) e napolitanos (do sul) cultivavam hábitos e dialetos diversos. "Associa-se a presença italiana apenas ao macarrão, à pizza e à tarantela, tradições tipicamente meridionais. No norte, por exemplo, a alimentação básica era polenta", pondera Zuleika.

Diante de um cenário cultural heterogêneo, a cidade recebeu um choque irreversível. Em todos os setores sociais a presença do Outro somado à proeminência financeira alterava a cadência lenta da cidade antiga.

A literatura e a crônica social se incumbiram de retratar a nova dinâmica que aturdia os pacatos paulistanos. Na brusca interferência estrangeira, o tempo escondeu as tensões da época e o presente atual descortina apenas o resultado positivo da miscigenação, emolindo o orgulho dos descendentes em carregar traços antepassados.

Hoje é uma satisfação ostentar ascendência européia. Em contrapartida, é de se pensar que a assimilação do imigrante estrangeiro foi determinada por conflitos e ressentimentos. A vocação agregadora paulistana demorou a incorporar os europeus, principalmente os mais pobres, no permeio social, ainda que, já na década de 1930, as próprias elites realizassem casamentos com jovens e prósperos rapazes italianos. Porém, o entrechoque conflituoso quedou-se silente na superfície dos recortes sociais. "A identidade é uma invenção cultural, uma construção histórica erigida por aqueles que têm o poder de inventá-la, produzi-la, difundi-la e veiculá-la. Em última análise, a elite dominante", ensina Elias Thomé Saliba, historiador. "Nos anos de 1920, forjou-se para São Paulo uma identidade baseada na estética modernista, que elimina as diferenças preexistentes, elegendo aspectos mais interessantes e criando tradições como as ditas famílias quatrocentonas. Nesse período, e mesmo um pouco antes, à época do pleito de 1910, quando Rui Barbosa, candidato paulista, foi derrotado por Hermes da Fonseca, havia a pretensão, refletida no ideário de Washington Luís, então presidente do estado, de alçar São Paulo ao posto de condutor cultural do país, uma vez que se vivia o apogeu econômico devido ao capital cafeeiro. Havia uma evidente contraposição ao Rio de Janeiro, que na época era capital da República e cidade referência do país no exterior."

O reconhecimento da identidade paulistana foi lapidado em oposição ao modelo de vida carioca, mais despojado e jovial. Face aos antigos malandros do Rio, os caraduras, o paulistano assumiu conduta adversa, ou seja, comedida, formal, circunspecta e, talvez, daí tenham surgido os estigmas que o perseguem até hoje e tornaram-se causa de infindas contendas contra os vizinhos fluminenses.

São dessa época as célebres assertivas "São Paulo não pode parar" ou "São Paulo, a locomotiva da nação", que denotavam a pujança pecuniária paulista e a ambição de liderança no plenário nacional. Assim, firmar uma imagem harmônica e pacífica, obliterando os graves conflitos sociais cujo palco era a incipiente metrópole, tornou-se imperioso no discurso oficial. "O ressentimento não serve para construir estereótipos", prossegue Elias.

Baseado em um discurso nacionalista renitente e na estética própria do estilo, a literatura modernista de alta qualidade da época, representada por Alcântara Machado, Guilherme de Almeida, Luiz Aranha, Mário e Oswald de Andrade, entre outros, omitia as rusgas entre os imigrantes, desenraizados, e os paulistas tradicionais decadentes, que lutavam para guardar sua hegemonia social e excluir as contribuições culturais que não julgavam ser genuinamente brasileiras. Essa política de ocultamento foi recrudescida com o advento da mídia de massa – primeiro o rádio e depois a televisão. Ambos desempenharam um papel fundamental em esconder os desencontros que marcaram a assimilação estrangeira.

Ritmo fremente

Contra a visão predominante e até certo ponto reacionária, insurgem-se dos meandros sociais cronistas que retratam o panorama conflituoso que fervilhava pela cidade. Dentre eles, destacou-se Juó Bananére, corruptela de João Bananeiro, patronímico do vendedor de bananas, personagem típico da cena urbana no começo do século. Debutando na revista O Pirralho, editada pelo jovem Oswald de Andrade, Juó, pseudônimo de Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, escrevia numa língua própria, uma mescla de português e italiano, que o professor Elias chama de "português macarrônico". Em seus textos, o escritor semeava ironias, não poupando nem mesmo as mais cintilantes figuras de proa do país.

A escrita turbulenta de Bananére não fazia mais que desvelar as coxias de uma sociedade em ebulição, que em pouco mais de duas décadas cresceu de forma assustadora e desordenada. Os registros são impressionantes. Relatos do fim do século 18 revelam uma São Paulo calma e morosa, cadenciada pela marcha lenta dos bovinos e eqüinos, motrizes das carroças e charretes. A população embalava-se no compasso modorrento de uma província interiorana. É o que atesta o cronista Everardo Vallim Pereira de Souza em suas Reminiscências Acadêmicas – Metamorfose da Paulicéia Provinciana em Grande Metrópole: "Até 1890, São Paulo mantinha ainda seu aspecto triste e pacato de cidade provinciana […] Muito limitada era sua área propriamente urbanística, e diminuta sua população, quando muito, de umas 60 mil almas. Poucas eram as ruas calçadas e menos ainda as com paralelepípedos: devido a isso, a poeira e a lama imperavam. Iluminação a gás em reduzidos combustores. Trânsito reduzido; bondes pequenos, tirados por muares; vitórias velhas e avelhantados tílburis serviam o público. Todo mundo se conhecia; os comerciantes estavam a par da economia das famílias; os barbeiros faziam concorrência ao noticiário dos quatro ou cinco jornais existentes." Passados pouco mais de vinte anos, após estímulo do dinheiro do café, do triunfo dos republicanos e da própria imigração, o velho vilarejo adormecido despertou ao sonido da mixórdia de ruídos advindos da modernidade.

Em um piscar de olhos, os paulistanos se vêem envoltos na bruma tecnológica que anuvia as grandes cidades. Inopinadamente, São Paulo, nos umbrais da década de 1920, transformou-se em uma grande metrópole cujo ritmo alucinante marcou irremediavelmente o espectro de seus habitantes até o dia de hoje.

Desse fenômeno, vale a pena ressaltar a velocidade com que ele atingiu a cidade e como os paulistanos responderam a ele, criando uma nova rede de relações e um novo código moral que não se adequava à realidade ultrapassada fazia tão pouco tempo. Em seu livro Orfeu Extático na Metrópole, o historiador Nicolau Sevcenko reconstrói o palco citadino dos anos de 1920, contrapondo dois modelos ambivalentes. Por meio da leitura de crônicas de época, ficam notórios o desconforto, o descompasso, o anacronismo, a insegurança, a estupefação, o deslocamento e a euforia do habitante desacorçoado com as mudanças revolucionárias. Acompanhemos: "O cosmopolitismo da população adventícia, assinalando um nítido recorte de discriminação social, […] vinha reforçar a disposição de estranhamento intrínseca ao processo de metropolização […] De tal modo o estranhamento se impunha e era difuso, que envolvia a própria identidade da cidade. Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem européia, nem nativa; nem era industrial, apesar do volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era tropical, nem subtropical; não era ainda moderna, mas já não tinha mais passado. Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê-la como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados."

Na expectativa de um tempo novo, entreaberto pelo fim da I Guerra Mundial, São Paulo submetia-se aos seus humores. Ela acompanhava boquiaberta o rompimento da cadeia solidária, que igualava a indiferença perante uma enchente na Vila Maria ou diante de um cataclismo no Japão; a popularização dos esportes, notadamente o futebol e as corridas de automóvel, sinal inconteste da modernidade; o surgimento de uma nova linguagem sensorial representada pelo predomínio do corpo e da ação ritualizada e coletiva; o cinema; o coletivo sobrepujando o indivíduo; o bonde elétrico; a tecnologia produzindo e despendendo lanços de energia; a juventude excitada, ostentando o desenho muscular na silhueta de trajes justos, reduzidos e ousadamente sedutores. "No ímpeto da emergência da megalópole, os articuladores das suas mil vozes olham para seus grandes espaços de sombra em busca das raízes que não existem. Nas sombras igualmente não há nada, mas é delas que se retiram os mitos", escreve Nicolau.

Mais uma marca

Da cidade que nasceu de um esboço bem aparado pelos padres jesuítas, fundadores da aldeola, e perdeu o prumo nesses 446 anos a se completarem dia 25, restam os imbricamentos espetaculares das diversas culturas que aqui se entrechocaram.

Uma cidade com muitas caras, assim como Macunaíma, que possuía bem mais que um caráter solitário. Esse monstro sem oportunidade de envelhecer, recolheu (e ainda recolhe) outras frentes. Mesmo um olhar voluntariamente desatento não deixa de admitir a presença fundamental do nordestino, das últimas divisões de forasteiros que ajudou a plasmar a (des)identidade paulistana. "Não se pode pensar em São Paulo sem os nordestinos", afirma o gaúcho Dirceu Cutti, editor de Travessia – Revista do Migrante, do Centro de Estudos Migratórios. "Eles começaram a vir para São Paulo em meados dos anos de 1930, quando havia agenciadores de mão-de-obra em cidades do Nordeste, mas o grande contingente migratório data das décadas de 1960 e 1970, período em que 28,5 milhões de pessoas deixaram para trás sua cidade natal."

Em alguns aspectos – mesmo a grosso modo – pode-se comparar certas características da migração nordestina com a européia do começo do século. A pobreza em ambos os casos é evidente "e o sonho que habitava o imaginário do nordestino, na expectativa de chegar a São Paulo e encontrar o Eldorado". Mas, ao contrário do europeu, que foi duramente incorporado ao imaginário paulistano, o nordestino sofre na carne um discurso discriminatório ainda mais contundente. Em sessenta anos de migração ininterrupta, não é incomum flagrar o preconceito. "Enquanto a economia florescia, o migrante nordestino era absorvido pela indústria e pelo comércio. Quantos prédios não foram construídos com braços nortistas?", questiona Dirceu. "Mas quando o crescimento estagnou, o bode expiatório recaiu sobre o migrante."

Mesmo na contracorrente, a cultura nordestina se embrenhou nos gostos paulistanos, extravasando os quistos originais. Hoje, quando o ruído perene da "modernidade" se abranda, os sons do forró, do baião, do maxixe, do frevo e do axé entretêm os paulistanos mais exigentes. Apesar da labuta árdua, pouco reconhecida, vitimados pela pobreza e vencidos pela especulação imobiliária, aos nordestinos coube a tarefa de espraiar a cidade na direção de periferias cada vez mais longínquas e, portanto, viram-se alijados dos beneplácitos públicos, como saneamento básico, pavimentação e moradia adequada. "Mesmo assim, a migração para São Paulo representava uma perspectiva de ascensão social. Mas a partir da década de 1980, a retração econômica tem causado um saldo migratório negativo, ou seja, mais pessoas que deixam a cidade do que chegam. Apesar desse dado, os discursos discriminatórios insistem em associar a presença do migrante, sobretudo nordestino, à condição caótica da cidade. Hoje, as maiores vítimas da migração são a segunda geração, filhos dos que aqui chegaram, pois vêem definharem as perspectivas de inserção no mercado de trabalho e, por tabela, a possibilidade de mobilidade social."

O vínculo entre a chegada do nordestino e o estado urbano calamitoso é mais uma mentira criada no seio desta cidade incoerente. Dos mitos que cresceram junto com a metrópole, esmiuçados na medida do possível nesta reportagem, todos sucumbem diante da realidade urbana caótica. Parece que a pluralidade copiada pelo ambiente culminou na confusão, ora vista como negativa, ora vista como fascinante. O passado nebuloso se espelha na carência aguda de referências do presente: a cada minuto São Paulo se modifica e com isso bagunça os valores. Há muito tempo o bairro da Liberdade deixou de ser um nicho japonês, o Brás, uma mini-Itália ou os ritos de candomblé freqüentados apenas por negros e pobres. Hoje, tais caracterizações não passam de folclore, materializados em festas e manifestações circunstanciais, como na Festa da Achiropita ou na feirinha japonesa. "A cidade parece composta de ilhas, que, no entanto, são apenas pontos emersos de um todo, como nos mares vemos as porções de terra. Parecem isolados, mas não são. Existe a cidade e existem diferentes olhares para a cidade. Existe uma cidade experimentada por cada grupo e, no limite, por cada habitante e sua biografia particular, e existe a cidade categoria, difusa, que nos absorve quando pretendemos estudá-la ou simplesmente defini-la", explica a antropóloga Rita de Cássia Amaral, autora do capítulo "Cidade e Festa – O Povo-de-Santo (e Outros Povos) Comemora em São Paulo", do livro Na Metrópole, coletânea de artigos escritos pelos pesquisadores do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo. "O paulistano é tudo e, portanto, é nada. Ele não tem grupos de referência bem delineados; muitos deles podem parecer afins, mas nenhum especificamente. E é por isso que ele se vê, de certo modo, obrigado a buscar grupos em que encontre afinidades pessoais, fortes, de acordo com as próprias necessidades. Quase sempre aqueles que compartilham seu gosto, sua revolta ou sua fé. A pluralidade cultural da cidade desenvolve em seus habitantes pulsões antropofágicas, como já haviam notado os modernistas, fazendo com que símbolos, signos e hábitos dos mais diferentes grupos sejam digeridos e reelaborados, passando a fazer parte da paulistanidade, no caso. O paulistano ama e odeia São Paulo por isso mesmo."

Amor por um lugar e modo de vida que, mais do que qualquer outro lugar, desautoriza qualquer discurso racista, já que todos (ou ninguém) estampam na cara a variedade atávica. E ódio por um local que pleiteia o monopólio do progresso, mas se curva a índices alarmantes de desemprego e caminha com velocidade média similar a das charretes do fim do século 19. Cidade que se reinventa a cada dia, como a Fênix, surgindo das próprias cinzas.

Alguém já disse, e foi Vinícius de Moraes, que São Paulo é o túmulo do samba. Será? O historiador José Geraldo Vinci de Moraes reconstitui a trajetória do samba em São Paulo: "As origens do samba paulistano remontam à Festa de Bom Jesus de Pirapora. Nessas ocasiões, após o culto religioso, aos negros era permitido realizar manifestações culturais próprias, proibidas em outras situações. Assim, eles trouxeram o ritmo ensaiado em Pirapora para a capital e tocavam suas músicas em cordões carnavalescos. Os grupos musicais que animavam os cordões, chamados de choros, que, para situar o leitor, se assemelham aos regionais atuais, originaram, com o passar do tempo, o samba típico paulistano, sintetizado por Adoniran Barbosa. Na verdade, seu trabalho mescla a pluralidade típica da cidade. Outros bons exemplos são Vadico, filho de imigrantes italianos, e Garôto, que, na década de 1920, mudaram-se para o Rio de Janeiro, e compuseram em parceria com vários músicos. Vadico, inclusive, compôs para Noel Rosa".

 

O paulistano e sua cidade

A relação entre o habitante de São Paulo e a cidade pode ser empiricamente sentida por qualquer um. Cada cidadão tem suas opiniões singulares sobre aspectos de São Paulo e a cidade, por seu lado, exerce determinada influência de acordo com a pessoa. O fato é que não há consenso: é muito difícil traçar um meridiano entre 10 milhões de considerações. O jornal Folha de S. Paulo, dia 21 de novembro último, publicou uma pesquisa realizada pelo Datafolha que mensurou o índice de qualidade de vida (IQV) dos paulistanos. Os resultados são aferidos bimestralmente, desde março. Os números estão aí. Quem quiser pode arriscar-se a interpretá-los.

A nota média atribuída pelos paulistanos à qualidade de vida em São Paulo, em setembro, foi 5,3 (em um máximo de 10), índice considerado insatisfatório pelos critérios da pesquisa. A amostra de 1.080 pessoas reuniu os dados de oito aspectos pesquisados para chegar no quociente total. Em setembro, enquanto o lazer (satisfação com o período de tempo livre) obteve a avaliação mais baixa, recebendo nota 2,8 (insatisfatório), o saneamento e a infra-estrutura da cidade obtiveram a mais alta: 6,90 (satisfatório). Os outros fatores abordados foram: educação, 5,60 (insatisfatório); trânsito, 6,40 (insatisfatório); poder aquisitivo (avaliação do poder aquisitivo da família e grau de comprometimento da renda individual), 5,40; trabalho (característica da ocupação e grau de satisfação com a função), 6,30; habitação e moradia, 6,50; saúde, 5,50; segurança, 3,8, e qualidade do ar. Na avaliação, a renda dos entrevistados influiu na resultante. Para quem ganha acima de 20 salários mínimos, o IQV foi 6,00. Na outra ponta, para aqueles que recebem até 10 salários mínimos, o índice chegou a 5,20.

Confirmando os dados da pesquisa realizada pelo Sesc e Escola de Sociologia Paulista, em 199, a qualidade do lazer é disparado o pior defeito da cidade. Ainda segundo a análise do Datafolha, o tempo livre do paulistano é dominado pela tevê ou pelo vídeo, com 50% das respostas. Apenas 37% das pessoas estão satisfeitas com a quantidade de diversão e entretenimento; 61% gostariam de divertir-se mais. Dentre os obstáculos de acesso ao lazer, destaca-se a falta de dinheiro, somando 46% das respostas.

As carências sentidas nessa área põem em evidência a importância da ação do Sesc, voltada à democratização das oportunidades de lazer e cultura.



Escolha uma rede social

  • E-mail
  • Facebook
  • Twitter

adicionar Separe os e-mails com vírgula (,).

    Você tem 400 caracteres. (Limite: 400)