Postado em 28/08/2009
No diminuto terreno
Que recebemo de herença,
Cumecei derne pequeno
Na minha penosa infança
Sendo pobre agricurtô,
Topando frio e calô
De suó todo muiado,
Derne os pé inté o rosto
De tudo pagando imposto
Sem ninguém tê me ajudado
Autobiografia, Patativa do Assaré
É assim, com esses versos, que Antônio Gonçalves da Silva canta a infância desventurosa no poema Autobiografia. A pobreza extrema experimentada no sertão do Cariri, no interior do Ceará, onde água era bem rarefeito, fadava o menino, nascido em 5 de março de 1909, a um futuro pouco promissor, para dizer o mínimo. Restava-lhe reproduzir, em ambiente de carestia, as mazelas atávicas que assolaram seus ancestrais. Mas a graça do destino está em desafiá-lo. Pois o brasileiro Antônio, nascido no sítio dos pais na Serra de Santana, fez tanto e fez mais: com sua arte, inverteu a roda da fortuna, para dar fama nacional ao local onde nascera – a então Vila de Assaré, cujo centro distava cerca de 20 quilômetros da gleba em que veio ao mundo.
Ao nome artístico assumido logo em início de carreira, Patativa – uma pequena ave canora comuníssima na região –, Antônio juntou o da cidade em que nasceu. No começo, o topônimo serviu para diferenciá-lo de outros Patativas, batizados no esteio do sucesso original. Mais tarde, foi o poeta que se tornou referência do lugarejo, de onde não saiu até o dia de sua morte, em julho de 2002. Fez-se, então, um dos grandes artistas brasileiros: Patativa do Assaré.
Clássico
E não se diminua o alcance de sua obra, acoplando-lhe o rótulo de popular, como se costuma fazer. Patativa transcende as categorias simplistas. É isso que ensina Gilmar de Carvalho, professor da Universidade Federal do Ceará e estudioso da obra do poeta: “A ideia de poesia popular é elitista e preconceituosa”, sentencia o especialista. “A poesia de Patativa alcançou um nível de excelência que colar nesta obra a etiqueta de popular é empobrecê-la. Ele é clássico no sentido de que esta obra não está ligada a modismos, não é um artefato da chamada indústria cultural. Sua poesia não tem data de validade. Ela está preparada para enfrentar o tempo e permanecer.”
Cláudio Henrique Sales Andrade, autor de Patativa do Assaré – As Razões da Emoção (Editora UFC – Editora Nankin, 2004), corrobora a análise do colega ao afirmar que Patativa do Assaré é um poeta popular, mas no sentido “forte e pleno” do termo. “Primeiro, pelo enorme poder de comunicação que sua poesia demonstra possuir entre o povo”, explica Andrade. “E depois porque se nutre de temas e questões hauridas do universo da vida popular.” O autor afirma ainda que, dada a origem de Patativa, a tradição cultural na qual se formou, o cordel, a cantoria e a poesia cabocla surgem naturalmente como fontes da sua poética. “No entanto, ele conseguiu atualizar e renovar temática e formalmente essas tradições”, emenda.
Hoje, Patativa do Assaré é referência obrigatória da literatura brasileira – cantador, compositor e, acima de tudo, poeta. Sua biografia e talento parecem imbuídos de um encanto sobrenatural, a se imaginar o contexto social em que nasceu e foi criado, somado à brevíssima educação formal de apenas quatro meses que recebeu quando criança. Desde cedo foi empregado na lida do campo, semeando lavoura de subsistência junto à mãe, jovem viúva, e aos quatro irmãos. Agricultor considerou-se sempre, mesmo quando passou a rodar o país exibindo seu dom.
Permanência
A herança musical veio do berço, pode-se dizer. Sua mãe era uma requisitada cantora de cocos das redondezas do Cariri. Nas andanças, levava consigo a tiracolo o menino Antônio, que aprendeu com olhos curiosos as manhas daquela música atávica. E, finalmente, quando, aos 16 anos, ganhou sua primeira viola, comprada com o dinheiro da venda de uma cabra, passou a acompanhar o embalo da mãe nas cantorias pelo sertão. “Foi a partir desse ponto que Patativa passa a levar mais a sério a cantoria, sem, no entanto, vislumbrar futuro profissional no ofício”, afirma Sales Andrade. “Apesar de ser mais e mais requisitado para apresentações e desafios, continua um diletante.”
A despeito da sua relutância em abrir mão da lavoura, aos 20 anos, levado por um primo de sua mãe, empreendeu uma viagem ao Norte do Brasil, que teve início no Pará e terminou no Amapá. No périplo, sua poesia e música se afamaram entre os colonos nordestinos que para lá haviam migrado atrás do eldorado da borracha. Nessa viagem ganhou a alcunha que lhe deu vida. Na volta, após seis meses de jornada, foi apresentado ao grande poeta cearense Juvenal Galeano, que, encantado com sua obra, abriu-lhe as portas da cena literária cearense, quando, pela primeira vez, seus poemas foram publicados nos jornais locais.
Embora logo cedo os versos de Patativa ganhassem forma impressa, é a oralidade a marca principal de seu trabalho; assim como as cantorias e desafios são o meio difusor que mais casa com sua obra, conforme análise de Cláudio Henrique: “A poesia de Patativa está ligada ao regime da oralidade, em sua origem é uma poesia voltada preferencialmente para um público de ouvintes. No entanto, desde muito cedo, para os padrões do ambiente cultural sertanejo, sua obra conheceu divulgação em livro e, de forma menos expressiva, em folhetos de cordel”.
Nordestino, sim
Patativa foi publicado em livro pela primeira vez em 1956 – A Inspiração Nordestina. O registro escrito só contribuiu para perpetuar e amplificar o alcance dessa obra. Essa medida, segundo Cláudio Henrique, salvou a poesia do desaparecimento e levou-a ao conhecimento de um público maior. “Durante o tempo em que o poeta viveu, fez do próprio corpo, memória e voz os meios de divulgação direta da sua arte”, diz o biógrafo. “Restaram registros em filmes, vídeos e sobretudo ?CDs de algumas dessas performances.” Segundo o professor Gilmar de Carvalho, Patativa fazia questão do livro. “Talvez pela legitimidade que ganharia, talvez pela ideia de permanência que o livro traz”, analisa. “Ele queria ficar. Tinha consciência de que, apesar de importante, a oralidade é fugaz.” E, de fato, o livro foi benéfico à sua carreira. “Ele chegou às camadas médias, aos profissionais liberais, estudantes universitários, à chamada intelectualidade”, diz Carvalho.
A poesia de Patativa ganha vulto quando incorpora a temática social, ao divulgar em versos as mazelas do povo pobre brasileiro, em geral, e do nordestino, em particular. Fez isso nas cantorias pelo país e, depois, eternizada na obra impressa e gravada. Em Nordestino, sim, nordestino, não, por exemplo, Patativa narra a triste saga dos nordestinos expulsos pela seca e pelo latifúndio:
Nós vamo a São Paulo, que a coisa tá feia;
Por terras aleia
Nós vamo vagá.
Se o nosso destino não fô tão mesquinho,
Pro mêrmo cantinho
Nós torna a vortá.
E vende o seu burro, o jumento e o cavalo,
Inté mermo o galo
Vendero também,
Pois logo aparece feliz fazendero
Por poco dinhero
Lhe compra o que tem
Apesar de a temática social compor grande parcela de sua obra, ela de modo algum é monotemática, conforme ressalta Cláudio Henrique: “O repúdio à exploração e ao atraso, que move o poeta, determina de certa forma um compromisso com a representação desses conflitos de classe com sentido de dar expressão a um clamor por justiça social. Além dessas questões tratadas geralmente por meio de poemas narrativos, sua obra tem uma rica vertente lírica, na qual o poeta dá voz aos sentimentos nascidos no encontro com o belo, a natureza e os temas propriamente filosóficos da condição humana. Há também uma vertente de poemas humorísticos, carregados de ironia e de elementos cômicos”.
Ao repercutir as muitas vozes ancestrais (e muitas vezes sufocadas) de um Brasil que se fez de miséria e luta, Patativa construiu sua importância, verso a verso. A imagem de sua figura se eterniza – os indefectíveis chapéus e, principalmente, os óculos escuros a ocultarem um olho cego desde os quatro anos. Em 2009, lembrar e celebrar o centenário de Patativa do Assaré é um bom exercício para sedimentar seu lugar pontificado no panteão dos grandes poetas brasileiros.
A Unidade Provisória Sesc Avenida Paulista apresenta, até o dia 20 de setembro, o espetáculo Concerto de Ispinho e Fulô, com a Companhia do Tijolo. A peça lança mão da essência da obra do poeta e busca alento na pedagogia do educador Paulo Freire para trazer à tona a luta dos direitos igualitários, a exaltação da natureza e a força da terra. Durante o espetáculo, os espectadores ficam dispostos como se estivessem no quintal da casa do poeta, para tomar um café e jogar conversa fora. A participação do público é peça-chave na apresentação, pois os causos narrados no palco, relacionados à lírica de Patativa, ganham companhia de uma seleção musical de primeira, que inclui Luiz Gonzaga, Nelson Cavaquinho e Adoniran Barbosa, entre outros, além de composições inéditas de Jonathan Silva. Assim, sua poesia é ornada com a presença do acordeom, violão, viola e percussão, valorizando o timbre musical que caracteriza a obra de Patativa. Concerto de Ispinho e Fulô é uma boa oportunidade para apresentar esse grande poeta brasileiro a um público pouco familiarizado com as pretensões humanistas de sua poesia de cepa sertaneja, mas também de projeção universal.
A unidade de Piracicaba trará o espetáculo Argumas de Patativa, com a companhia Teatro do Pé, no dia 16 de setembro. São três histórias – A Morte de Nanã, O Cego Zé Luiz e Cruzes pela Estrada – que apresentam as várias facetas do povo nordestino, sob a ótica do poeta e cantador cearense.
Já no Sesc Santo André, no dia 22 de agosto, a peça Patativa do Assaré – O Poeta e o Seu Chão uniu poemas, canções, causos e importantes passagens da vida de Patativa.