Postado em 15/04/2009
Pronto para o Caos
O compositor e multinstrumentista Heraldo do Monte fala sobre a paixão pela música que, segundo ele, o “escraviza” desde menino
A lembrança musical mais antiga de Heraldo do Monte, nascido em Recife, em 1935, foram as melodias de Asa Branca, de Luiz Gonzaga, e de Oh, Suzana, canção folclórica norte-americana, “tiradas” numa gaita de boca “a ponto de enlouquecer a família”, conforme contou em depoimento à Revista E. O interesse pelas notas, no entanto, se revelaram mais do que uma brincadeira de menino e, pelas mãos do maestro Mário Câncio, do Monte integrou a banda da escola. O instrumento, então passou a ser, a clarineta. “Aos poucos, fui comparando minha facilidade musical com outras pessoas e tive consciência de que eu seria escravo daquela paixão”, diz o músico e compositor. A partir das partituras do instrumento de sopro foi aprendendo a as cordas que o tornariam famoso. A vida profissional começou na noite, primeiro em Recife e em seguida em São Paulo, para onde se mudou aos 21 anos. Tocando ao lado de figuras como Walter Wanderley, Dick Farney e Dolores Duran, além de integrar a Orquestra da TV Tupi, do Monte foi diversificando o interesse musical. “Como não sei tocar sem prazer, meu gosto foi ficando cada vez mais largo e sem preconceito. Mas tem uma restrição: musica mal feita”, alerta. Em 1966 entrou para o Trio Novo, ao lado de Airto Moreira e Theo de Barros, que em seguida, com Hermeto Pascoal, se tornaria o Quarteto Novo – cujo primeiro disco foi também sua estréia no estúdio. A seguir, Heraldo do Monte relembra os tempos da gaita, do Quarteto Novo e conta que o prazer em tocar sempre foi a tônica de seu trabalho. E avisa: “Isso faz com que, aos 74 anos – e sem nenhum remédio – eu tenha uma pressão arterial de 11 por 7”.
Primeiros acordes
Meu primeiro contato com musica foi com pouca idade, ouvindo rádio e as gafieiras do meu bairro em Recife. Não lembro como, me vi com uma gaita de boca, com poucas oitavas e sem escala cromática. Comecei a tocar Asa Branca [de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira] e Oh, Suzana [música do folclore norte-americano] a ponto de enlouquecer a família. Estava começando uma paixão, e a descoberta da musicalidade. Aos poucos, fui comparando minha facilidade musical com outras pessoas e tive consciência de que eu seria escravo daquela paixão. Pulando uns anos, estava eu no Pátio da Escola Industrial de Pernambuco, quando um senhor falou: “Quem quiser entrar para a orquestra da escola, faz fila ali!”. O senhor era Mario Câncio [1927-2008], que foi aluno e depois regente da Orquestra Sinfônica de Recife. Minha escravidão, voluntária e apaixonada, continuava.
Muitos alunos não conseguiram cantar afinado a escala de dó e foram descartados, mas não esse seu amigo. Comecei, então, com o maestro Câncio um prazeroso curso de solfejo [exercício para se aprender a ler notas] cantado. Um tempo depois (essa história é bem conhecida), estava eu tentando tirar som de uma requinta (pequeno clarinete em mi bemol.) e um outro aluno, o Demétrio – justamente apelidado de Satanás – tinha colocado uma bolinha de papel dentro do instrumento. Depois de um mês tentando, sem sucesso, tirar algum som daquilo, pedi a Mario Câncio, quer era um tremendo fagotista. que tocasse uma escala na requinta. Apitos, apitos, parecia que o maestro estava me imitando. Até que descobrimos a “satânica” brincadeira. Demetrio Santos Lima é hoje saxofonista da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo e o apelido continua o mesmo.
Sensações
Desde o começo, desde a gaitinha de boca, senti aquela sensação que escraviza. É por ela que existem tantos músicos que não se preocupam com o tal mercado de trabalho. Senti isso com as aulas de solfejo cantado, escritas na hora, do maestro Mario Câncio. Prazer: isso é música. Por isso, eu falava para os meus alunos uma frase que muitos acham estranha: “Só estudem quando estiverem muito a fim!”. O pior que você faz é manipular sua música para ela chegar até às pessoas. O publico quer saber o que está no seu coração, nada mais!
Quarteto Novo
O músico Heraldo do Monte, que se apresentou, em março, nas unidades Carmo e Pompeia. |
A idéia da viola
Durante o boom da industria fonográfica, eu fui um studio man [em 1956]. Um dia típico meu começava às nove da manhã comigo tocando um trecho flamenco de 10 segundos no violão – que soava absolutamente falso – para um jingle de alguma marca. Às 14h, estava acompanhando uma gravação de Waldik Soriano (que estava sempre bêbado). Às 20h, passava para o cavaco para um grupo de samba. Às vezes, emendava a madrugada com o dia seguinte. Às sextas-feiras estava eu de guitarra na orquestra da TV Tupi, tocando os arranjos maravilhosos de Luiz Arruda Paes. Nessa época também fazia muitos shows com o Zimbo Trio, Grupo Medusa etc. Na época que eu tive que tocar viola [em meados dos anos 1960] o instrumento não era visto com respeito. Havia um jeito “bossa nova-jazz” de ser nas rodas de músicos urbanos e eu era um deles. Um músico urbano, com os mesmos sentimentos dos meus colegas. Na viagem da Rhodia, eu tocava viola porque sabia que logo acabaria o trabalho e voltaria a ser quem eu era, um musico bossa nova-jazz. Quando começou o papo do Quarteto, durante a viagem, tive muitas noites de insônia para aceitar a ideia da viola. Quando eu finalmente aceitei, o trabalho mental e sentimental estava feito: sem deixar de ser bossa nova-jazz, eu era também um violeiro!
E como não sei tocar sem prazer, meu gosto [por música] foi ficando cada vez mais largo. Só que meu gosto largo e sem preconceito, mas tem uma restrição: musica mal feita, fora da métrica, com harmonia que choca com a melodia e vice-versa. Você não precisa ler musica, mas tem que ter um ouvido que acenda luz vermelha em caso de erros, não é?
Personalidade
Minha personalidade é SPCT, (sempre pronto para o caos total.) E ela foi formada na minha infancia, no bairro da Mustardinha, pobre e feliz. A diferença é que não tenho medo de voltar para aquela condição. Isso faz com que, aos 74 anos – e sem nenhum remédio – eu tenha uma pressão arterial de 11 por 7. Isso explica também meu desprezo pelo status, por como vai a musica instrumental, essas coisas. Mas, por outro lado, isso não faz de mim um mal profissional, pelo contrário. Digo muito não, mas quando digo sim, chego antes da hora, para não preocupar ninguém.
“Minha personalidade é SPCT, (sempre pronto para o caos total.) E ela foi formada na minha infância, no bairro da Mustardinha, pobre e feliz. A diferença é que não tenho medo de voltar para aquela condição”