Postado em 31/03/2009
Marco Antonio Villa
O historiador fala do Brasil Império, analisa a Proclamação da República e faz uma análise de alguns mitos brasileiros, como Tiradentes
Formado em sociologia e doutor em história social, Marco Antonio Villa focou a carreira no estudo da trajetória sociopolítica do Brasil Império e Brasil República. O resultado de anos de pesquisa, que renderam diversos livros, o mais recente deles é 1932 – Imagens de uma Revolução (Imesp, 2008), é um discurso que dissolve antigos nódulos no entendimento comum – e também no especializado, em alguns casos – sobre o que realmente foi e é o país em termos de seu desenvolvimento social e político. “A Biblioteca Mário de Andrade tem um acervo maravilhoso a respeito da Guerra de Canudos [movimento popular no sertão da Bahia que durou de 1896 a 1897]”, exemplificou durante entrevista concedida à Revista E. “Comecei a ver que as teses eram todas furadas. Aí volta a função do historiador em buscar as fontes.” Ferrenho defensor da desmistificação de alguns heróis e seus levantes, Villa tenta desenterrar a verdade por trás de séculos de história. “O que sabemos do Tiradentes? A idade, os bens – que estavam no Auto da Devassa, inclusive os escravos dele – e mais nada! Não tem carta, livro dele escrito, nada!”, desafia. A seguir trechos da conversa na qual o historiador passou a limpo alguns momentos e figuras que influenciaram – para bem e para mal – o Brasil que temos hoje.
Democracia é intocável para a sociedade brasileira?
Sim. Voltamos a um ensaio de 1979 do Carlos Nelson Coutinho – A Democracia Como Valor Universal –, quando a esquerda fez críticas duríssimas a ele [Coutinho], dizendo que a democracia era um domínio da burguesia, mas ele estava certo. Nós temos uma tradição no Brasil em que a esquerda e a direita têm muita dificuldade em conviver com a democracia, sempre apostaram em golpes do Estado, com diferentes sentidos, mas desprezando a democracia. Sempre. A partir dos anos de 1970, com a luta pela anistia, e depois as eleições em 1982, as Diretas Já, e eleição do Tancredo – mesmo com tantos problemas –, isso tudo acabou transformando o país. Hoje nós temos liberdades democráticas. Seria inviável alguém defender a supressão do hábeas corpus e de outras liberdades democráticas.
A população tem feito sua parte, escolhendo bem seus representantes?
O terreno é pantanoso. Lembro que em 1949, no Estadão [jornal O Estado de S.Paulo], o [jornalista] Plínio Barreto disse que somos uma jornada de tolos, de otários. Ele disse que tínhamos tirado o Getúlio [Getúlio Vargas, presidente do país de 1937 a 1945 e novamente de 1951 a 1954] e eleito o seu continuador, o Dutra [Eurico Gaspar Dutra, presidente de 1946 a 1951]. A decisão do eleitor é complicada. Parece-me evidente que há um problema de educação política e que isso é um processo de longa duração. Mas, em 2010, teremos pela primeira vez a continuidade de um quarto de século de democracia no Brasil. Nunca tivemos isso antes. Estou considerando 1985 como início porque ali você já tem os partidos comunistas legalizados, mesmo sob vigência de uma Constituição que ainda privilegia o militar. É um processo contínuo, não é da noite para o dia. Presume-se que sob a democracia passe a existir uma melhor escolha de candidatos e partidos. Queremos queimar etapas e fazer isso mais rápido, mas já melhoramos muito do passado para cá. Basta fazer um estudo detalhado sobre como eram as eleições no passado e hoje.
Faltam ainda etapas fundamentais para uma representação mais eficaz? A Câmara Municipal de São Paulo, por exemplo, reflete a riqueza cultural, política e econômica do município?
Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, dois pólos culturais e as duas maiores cidades do país, as câmaras municipais são horríveis. O problema é o sistema de votos. Mas nunca teremos uma reforma que resolva isso. O voto distrital [eleição de legisladores – deputados federais e estaduais e vereadores – pela maioria dos votos dos eleitores em distritos eleitorais] poderia resolver essa questão. Alguém pode dizer que ficaria muito particularizado em obrinhas regionais, mas você pode politizar as reivindicações como o viaduto, a escola, o posto de saúde. O sistema proporcional, que é o que temos hoje, fortalece o péssimo nível, por exemplo, da inexpressiva assembleia estadual de São Paulo. Quem citar cinco deputados estaduais ganha um prêmio, porque ninguém sabe [quem foram os eleitos]. O voto distrital seria fundamental para criar uma outra relação com o eleitor. Mas não se vai adotar isso no Brasil porque os políticos são beneficiados pelo voto proporcional. E a reforma política, pelo jeito, já foi abandonada – lá para 2011 alguém discute isso. Nenhum governo consegue discutir isso a partir de seu segundo ano, ou seja, se deixar para 2012, como deve acontecer, não vai ter reforma. E nós nunca tivemos um STF [Supremo Tribunal Federal] tão ruim. É pior do que quando o Floriano Peixoto [primeiro vice-presidente e segundo presidente do Brasil] nomeou um médico e um militar para o Supremo porque o nível intelectual era melhor. O STF derruba cláusula de barreira que o Congresso aprova! O sistema é tão petrificado que impede a transformação. Isso impede que um prefeito, governador ou presidente com boas intenções possa ter sucesso. Porque ele se integra a uma estrutura institucional e nada muda. A solução é ter um presidente louco, que toque o terror nos primeiros dias e não se integre rapidamente ao sistema estabelecido. Por isso que no livro do Elio Gaspari [A Ditadura Envergonhada – Companhia das Letras, 2002] havia o Geisel [General Ernesto Geisel, presidente de 1974 a 1979] dizendo que não mandava nada. Claro, com o AI-5 [Ato Institucional Nº 5, de dezembro de 1968, que oficializou a ditadura no Brasil], não!
Por que não ocorrem mais as revoltas populares? Como você interpreta isso?
Foi o federalismo. A república foi criada no Brasil por não republicanos. Deodoro [Marechal Deodoro da Fonseca, proclamador da República, em 1889, e primeiro presidente do país] não era republicano. Quando você transfere o poder central para as oligarquias estaduais, que era o sonho das rebeliões locais – porque isso aqui não é caminho para democracia, é bandeira das elites para reprimir opositores locais –, o poder local fica tão forte que o poder central não tem impacto na vida do cidadão. As elites se perpetuam no poder. O mundo é província. Mas para se ter poder na província é preciso ter presença no poder central. Ou seja, assim é o país. A oligarquia manda nos estados e tem forte presença no Congresso Nacional. Uma solução seria o presidente chegar no dia 1º de janeiro e apresentar seu programa de governo em rede de televisão para o povo, para seus eleitores, e não para o Congresso. Aí você passa a ter uma outra relação.
O que você está dizendo é que a proclamação da República não foi benéfica?
Naquela conjuntura, de 1889, teria sido muito melhor para o país um terceiro reinado com a Princesa Isabel como rainha e chefe de Estado do que a República de Deodoro da Fonseca. O terceiro reinado levaria a bases sociais mais amplas. Bom lembrar a relação da Princesa Isabel com o abolicionismo e o impacto disso na relação de propriedade da terra. Isso com o programa do Partido Liberal, que havia saído vitorioso das eleições de agosto de 1889, fazendo essas reformas. Aquilo levaria ao caminho da construção de um Estado democrático. Mas não havia vontade por parte dos partidos e das classes. Naquele momento, dom Pedro II [pai da Princesa Isabel] fez uma péssima análise de conjunturas, porque já estava muito doente. Mas se ele tivesse renunciado e entregue o poder à filha, talvez – dado ao machismo no país – ela teria problemas. Se ela tivesse assumido como regente e abdicasse em nome do filho mais velho – abrindo caminho para um dom Pedro III, talvez fosse a única saída. Mas se até hoje não temos uma presidente, imagine uma regente em 1889, com todos os poderes que um chefe de Estado tinha desde a Constituição de 1824! Mas a elite escravista que sustentou o segundo reinado evidentemente abandonou os monarcas após o 13 de maio [13 de maio de 1888, dia em que foi assinada, pela Princesa Isabel, a Lei Áurea, que aboliu a escravatura]. Essa elite aderiu à República, que garante o poder local. Ali acabou se construindo um Estado ruim para o futuro do país.
Como era o país na República Velha?
O Brasil mudou muito na República Velha. Nos anos de 1920, a imigração mudou o Brasil, o país era outro. Não só pelo aumento populacional, mas pela presença da classe operária, com poder de radicalidade poucas vezes visto na nossa história. A República passou seu primeiro grande teste ali. Na prática, as instituições republicanas não conseguem dar conta. Não há uma legislação social que conviva com a luta de classes, por exemplo. Ela mostra sua faceta nos anos de 1880, antipopular, antidemocrática etc. A República expulsa todos os negros do serviço diplomático! E ela é testada especialmente em São Paulo, em 1919, por influência até mesmo da Revolução Russa [série de eventos políticos ocorridos em 1917 e que eliminaram a autocracia e instituíram o socialismo]. Por isso, os reformadores da República não buscam o caminho democrático, já que ele está fechado. Eles tentam derrubá-la à força, mesmo com boas ideias. Os desiludidos da República vão dar no Alberto Torres [político e pensador republicano] e no Oliveira Viana [jurista, historiador e sociólogo] – um conservador avançado e que falava até em reforma agrária! Ambos eram autoritários, mas tinham críticas pertinentes. O liberalismo não era pleno, impedia o cidadão de participar do jogo político. No Brasil, você tem sempre um intelectual falando em nome dele, e não do povo. O povo nunca fala. A saída é sempre autoritária. E essas experiências fracassam. Mesmo a ditadura militar brasileira – que não tem nada a ver com Pinochet [Augusto Pinochet, ex-presidente militar e ditador chileno] nem com Fidel [Fidel Castro, ex-presidente e ditador cubano], nem com o Cone Sul. Todos os generais brasileiros falaram em democracia. Sempre relativa, mas falavam em democracia. Nossa transição não tem nada a ver com o Paraguai, o Uruguai ou o Chile. Tivemos a renovação dos presidentes e o Congresso ficou fechando e abrindo. Onde já se ouviu falar em eleições com partido de oposição com Pinochet?
Como você descreve a ditadura brasileira?
Nossa ditadura não tem nada a ver com Guerra Fria, com o Cone Sul, esse não é o centro. O João Cruz Costa, já falecido, escreveu um livro chamado Contribuição à História das Ideias no Brasil, em 1958, e ele tinha razão no que escreveu ali. Ele diz, nesse livro, que a história do positivismo não está encerrada no Brasil. Em 1964, está se fechando a ideia do Estado autoritário, ele quer ser reformista. O nosso autoritarismo não é reacionário. O Castelo Branco [presidente de 1964 a 1967], em junho de 1964, apresenta um projeto de voto do analfabeto. Faltou um voto para ser aprovado. O Castelo vem com estatuto do trabalhador da terra em dezembro de 1964! E cria o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. Veja como a coisa é embaralhada aqui. É que o pessoal é preguiçoso e quer misturar [a ditadura brasileira] com Fidel e Pinochet. Ditadura mesmo nós tivemos durante o AI-5. No Chile, por exemplo, no auge do Pinochet, não tinham coisas como a Revista Opinião e a Revista Argumento [publicações brasileiras de cunho político criadas na década de 1970]. Não tinha Embrafilme [Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima, criada em 1969], não tinha CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, fundado em 1951] e Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, criada em 1951 como Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] mandando gente para Europa. Eles [no Chile] fecharam as ?universidades! Tivemos uma ditadura que violou direitos humanos e foi sanguinária, mas ela foi plural. Enquanto a gente não entender o nosso movimento próprio, não entenderá o país.
Nessa linha histórica da política brasileira que você está traçando, voltando um pouco, onde fica a Inconfidência Mineira do Tiradentes?
Eu tinha dado uma entrevista para a Folha [jornal Folha de S.Paulo] e uma questão que eu achava banal, na verdade, não é. Trata-se de algo que já tinha sido dito por outros historiadores: os limites sociais e políticos da Inconfidência Mineira. O Itamar [Franco] era governador de Minas e queria proibir a circulação da Folha lá com essa entrevista. A polícia me deu rótulo de persona non grata em Minas! Foi um horror. Mas o fato é: o que nós sabemos do Tiradentes [cujo nome real era Joaquim José da Silva Xavier]? A idade, os bens – que estavam no Auto da Devassa, inclusive os escravos dele – e mais nada! Não tem carta, livro dele escrito, nada! É uma construção republicana. Se eu fosse escolher um movimento antes de 1922, ficaria com Conjuração dos Alfaiates na Bahia [de 1798], que coloca a questão do negro. A Inconfidência Mineira [de 1789] não colocou isso. O Tiradentes é alguém injustiçado e tal, que mostra a tirania da Coroa Portuguesa, o tipo de repressão, mas é a construção do herói que não conhecemos. A nossa República é muito frágil. Não tem discurso público, não tem insurreição. Não houve embate, coisa nenhuma. O movimento não tem presença social. Nós não conhecemos a imagem física de Tiradentes. A Independência do México [oficialmente reconhecida pela Espanha em 1836], quando estudei, era uma maravilha, porque era uma guerra de classes, houve uma participação que nós não tivemos, aqui é sem graça.
Por que você acha que existe aqui essa tendência de criar heróis?
É um problema de direita e de esquerda. A esquerda vem com heróis que ninguém sabe quem são. Se o Tiradentes é construção da República, o Zumbi [último líder do Quilombo dos Palmares, o mais conhecido dos quilombos formados no período colonial] é construção do movimento negro, porque nós não sabemos quem era Zumbi – nem quantos Zumbis existiam. E ainda transformou Palmares numa república, até socialista! A nossa história é uma pergunta. Os heróis não se sustentam. Palmares é na verdade um quilombo que acaba estabelecendo relações com outros quilombos e até com fazendeiros. Tem um problema de anacronismo, um problema dos historiadores, em querer imputar a esses movimentos o que eles nunca foram. A esquerda e a direita se fundiram e criaram uma visão conservadora do Brasil.
Qual a sua visão então sobre a Guerra de Canudos?
A Biblioteca Mário de Andrade [em São Paulo, localizada na região central] tem um acervo maravilhoso a respeito [da Guerra de Canudos, movimento popular no sertão da Bahia que durou de 1896 a 1897]. Comecei a ver que as teses eram todas furadas. Aí volta a função do historiador em buscar as fontes. Como falar sobre socialismo em Canudos? A leitura da esquerda sobre Canudos era no fundo reacionária. A de que só é possível construir uma alternativa no sertão brasileiro se você tem como modelo a Europa Ocidental. A nossa história não se move dessa forma, não somos movimento retardado da Revolução Francesa [conjunto de acontecimentos ocorridos entre 1789 e 1799 e que derrubaram a nobreza]. Achar que o Antonio Conselheiro foi criar Canudos porque leu Thomas More, um autor inglês, é absurdo! Ele construiu aquilo baseado em sua própria vivência. Tento mostrar como Canudos se formou como comunidade sertaneja com valores do cristianismo. Não era socialismo, não havia luta pela terra em momento algum – porque não há invasão de terras –, e a figura do Conselheiro não era sebastianista. Mostro como aquela comunidade funcionava.
E o que sabemos então sobre dom Pedro II?
A melhor biografia dele é do Heitor Lira [A História de Dom Pedro II – 3 volumes –Itatiaia Editora, 1977]. Aprendi muito com ela. É um grande personagem. Eu tinha uma visão negativa dele. A tese sobre Canudos melhorou muito a imagem que tenho dele. Dom Pedro tem muitas qualidades e muitos defeitos. Lia muito, mas não podia fazer grandes julgamentos intelectuais. E muita gente não gostava dele também. Mas ele foi chefe de Estado por mais de 50 anos e nunca foi acusado de corrupção. Teve um grande trato da coisa pública. Ele só não soube a melhor hora de sair da cena pública. Ele saiu quando já estava muito doente. O parlamentarismo era meio postiço, houve uma crise durante a Guerra do Paraguai, pela qual ele passou, mas depois houve um esgotamento da liderança dele.
Gostaria que você falasse um pouco sobre a imprensa brasileira.
A imprensa brasileira, apesar dos pesares, é muito boa. O fotojornalismo é muito bom. Até hoje sou viciado em jornal. Sempre li [a revista] Realidade, JT [Jornal da Tarde], outras publicações. Trabalhei muito com material de jornal sobre Canudos, por exemplo. Acho que a imprensa tem um papel muito maior no Brasil, como ouvidora e espaço de crítica e polêmica, mas obviamente existe uma imprensa que constrói uma versão da história. Em 1932, de 9 de julho a 30 de setembro, de acordo com os jornais paulistas só havia vitórias. Aí, no dia 1º de outubro, acontece a rendição. Se uma pessoa tivesse só aquilo como fonte, imagine o que ela iria entender! Mas a imprensa brasileira tem um papel político muito importante, e em vários momentos da história, como em 1964, no Última Hora, um jornal popular muito bom, que tinha Paulo Francis. Os textos do Jornal da Tarde nos anos de 1970 eram muito bons. Faz uns 20 anos que temos um enxugamento do número de jornais – e se lê jornal muito rápido. A imprensa é uma tremenda fonte para o pesquisador e o historiador. Mas nosso papel é sempre desconfiar das fontes. E, apesar dos pesares, grande parte da imprensa brasileira luta pela democracia.
Para finalizar, você não acha que, de certa forma, falta polêmica no Brasil? Um posicionamento mais firme nas discussões?
A ditadura fez muito mal ao país. Em qualquer crítica as pessoas cobram um lado positivo. As pessoas não gostam de oposição. No campo cultural, isso virou uma enorme pobreza. É sempre bom falar bem de alguns críticos literários.Foi criada a política do “sim senhor”, e quem diz o contrário é malvisto, está “querendo aparecer”. No teatro é assim, na literatura é assim, no cinema é assim. As pessoas acham várias coisas uma maravilha antes de sair, e, quando eu leio, acho péssimo. Então acho que o problema sou eu. Não temos debates historiográficos há dez anos. Não faltam bolsas [de estudo] por aí, mas há a cultura do ensaio, do texto, do avião, da alegria para ir a França, Portugal. A intelectualidade é preguiçosa.