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Uma proposta contra a pobreza

Postado em 01/11/1999

Em debate, o projeto de renda mínima do senador Eduardo Suplicy

Eduardo Matarazzo Suplicy é natural de São Paulo, capital, e é, além de senador, professor da Fundação Getúlio Vargas (GV). Em 68, Suplicy completou o mestrado em economia na Michigan State University e na mesma universidade, dois anos depois, tornou-se Ph.D. em economia. Fez também pós-doutorado na Stanford University.

Escreveu no jornal "Última Hora", foi redator-chefe da "Revista de Administração de Empresas", da GV, editor de economia da revista "Visão" e redator e analista de assuntos econômicos da "Folha de S. Paulo".

Um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e membro da Executiva e do Diretório Nacional do partido, Suplicy está na vida pública desde 1979, quando se elegeu deputado estadual pelo extinto MDB. Em 83, foi eleito deputado federal pelo PT e em 88 tornou-se o vereador mais votado da cidade de São Paulo, o que lhe valeu a presidência da Câmara Municipal. Em 91, elegeu-se senador. Em 98, candidato à reeleição, recebeu a maior votação do país para o Senado Federal.

A palestra do senador Eduardo Suplicy foi realizada no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, no dia 10 de setembro de 1999.

EDUARDO SUPLICY - Cada vez mais, felizmente, a questão dos meios mais eficazes para construirmos uma sociedade justa e civilizada tem sido objeto da preocupação de todas as pessoas no Brasil. Até porque não podemos continuar com a posição – que absolutamente não nos honra – de campeões mundiais da desigualdade socioeconômica. Ainda na semana passada, o presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Roberto Martins, e o economista Ricardo Paes de Barros, também do Ipea, trouxeram à Comissão Mista de Combate à Pobreza e à Desigualdade, no Congresso, os dados sobre a distribuição da renda, e informaram que o Brasil tem tido uma característica permanente nas últimas décadas. Seja nos períodos de expansão da economia, seja nos de declínio da atividade econômica, nos anos de alta inflação ou nos de estabilidade, há uma característica que sempre perdura, que é a da intensa desigualdade.

Claro que há fatores que advêm de nossa história, de tudo aquilo que aconteceu desde o tempo em que não estava instituída a propriedade privada, quando o patrimônio dos brasileiros era comum ou daqueles que aqui viviam há 500 anos. Mas a maneira como depois foi se distribuindo o patrimônio, com o descobrimento e a colonização feita por Portugal, a maneira como se distribuíram as terras entre os responsáveis pelas capitanias hereditárias, e depois aos seus amigos, tudo isso fez com que a desigualdade perdurasse. Por mais que as autoridades responsáveis nas últimas décadas tenham se preocupado com essa questão como tem expresso inúmeras vezes em seus pronunciamentos o presidente Fernando Henrique Cardoso, inclusive dedicando seu discurso de despedida no Senado ao objetivo que tinha de construir uma nação justa, ainda assim, nesses quase cinco anos de seu governo, a situação é a mesma, apesar da estabilidade de preços. Todos reconhecemos, inclusive o Partido dos Trabalhadores, que a inflação constitui o mecanismo que mais transfere renda, em prejuízo dos mais pobres, que não têm tanto conhecimento e acesso aos modos de tirar proveito das oportunidades advindas da inflação. Ainda assim, em que pese o fato de ter baixado a inflação, houve outros mecanismos de política econômica que continuam contribuindo para que a desigualdade não diminua ou às vezes até se agrave.

Entre os instrumentos importantes para ajustar a distribuição da renda, temos que pensar em melhoria do ponto de vista do fluxo de renda, do patrimônio, da riqueza acumulada pelas pessoas, do conhecimento, e da própria maneira de as pessoas terem poder e influenciar as decisões na sociedade. Entre os que mais colaboraram para que viéssemos a pensar em conceitos de justiça social está o filósofo John Rawls, professor da Universidade de Harvard, que escreveu uma obra muito importante em 1971 (Uma teoria da justiça). A Editora da Universidade de Brasília já o havia editado nos anos 70, mas há pouco mais de um ano a Martins Fontes o reeditou. John Rawls elabora princípios para que se possa alcançar justiça numa sociedade. O primeiro princípio é que todas as pessoas tenham um conjunto de liberdades básicas. É o princípio de igual liberdade. Se houver diferenças nessa sociedade, elas devem ser em benefício das pessoas que menos têm e de modo a assegurar a igualdade de oportunidades para todos.

Como vislumbrar isso de maneira mais prática? Suponhamos que formássemos um bom time de futebol ou de basquete e que nesse time tivéssemos alguns jogadores excepcionais como Pelé, Romário, Ronaldinho ou Paula e Hortência, e que todos jogássemos razoavelmente bem, mas não tão bem como esses craques. Poderíamos então chegar a um consenso sobre qual seria o grau de remuneração de cada um de nós, reconhecendo que, como eles jogam excepcionalmente bem, devem receber remuneração maior. Porém, mesmo sem jogar tão bem, vamos ter uma remuneração razoável, e assim nosso time terá os melhores resultados possíveis. A diferença que eventualmente houver será em benefício daqueles que não jogam tão bem. John Rawls afirma que, se quisermos colocar isso em prática, um dos instrumentos a ser utilizado seria uma forma de imposto de renda negativo ou um meio de garantir um rendimento mínimo a todas as pessoas.

Vejamos o histórico do projeto de garantia de renda mínima. Ao lado de outros instrumentos, como a realização mais rápida da reforma agrária, para melhorar a distribuição da terra no país, o microcrédito e o apoio à micro, pequena e média empresa, a expansão das cooperativas de produção e uma maior interação entre trabalhadores e empresários, para que se tenha mais acesso às informações e às decisões sobre como é realizado o processo de aumento da produção e como distribuí-la; ao lado de instrumentos como o orçamento participativo, que tem democratizado as decisões, sobretudo nos municípios, considero que seria muito importante que instituíssemos no Brasil um programa de garantia de renda mínima para que todas as pessoas tivessem o direito inalienável de partilhar do usufruto da riqueza da nação.

Em 1976, foi formada na Europa a Rede Européia da Renda Básica, que propugna pela instituição, em cada nação, de uma pequena, porém incondicional, renda a toda pessoa. Não importa origem, raça, sexo, condição civil e socioeconômica, todas as pessoas teriam garantido um mínimo de renda como direito de cidadania. Entre os economistas e filósofos que têm argumentado em favor disso está, por exemplo, Philippe van Parijs, da Universidade Católica de Leuven. Em seus livros – O que é uma sociedade justa?, Real freedom for all, What (if anything) can justify capitalism, Arguing for basic income, Ethical foundations for a radical reform – ele argumenta que essa é a maneira de assegurar a todos o direito de partilhar da riqueza e, mais do que isso, de assegurar a todos maior liberdade e justiça, de acordo com os princípios que acabo de citar de John Rawls.

É importante que a Federação do Comércio, que a Federação das Indústrias, que os órgãos empresariais tenham consciência de que, caso o Brasil não pense nisso da forma mais racional possível, estaremos em desvantagem, inclusive do ponto de vista competitivo. Raras vezes ouvi dos responsáveis por entidades empresariais que estivessem tendo consciência disso.

Nos Estados Unidos, em 1975 se instituiu uma forma de imposto de renda negativo, o Earned Income Tax Credit (EITC), o Crédito Fiscal por Remuneração Recebida. Esse projeto tem crescido, ao contrário dos outros, que vêm sendo cortados, e se transformou no principal programa destinado a promover maior justiça social no país.

Para saber como funciona o Earned Income Tax Credit, convém recordar um pouco as formas de garantia de complemento de renda nos Estados Unidos. No século passado, os Estados Unidos tinham diversos mecanismos de solidariedade, nem sempre criados pelo governo. Nos anos 30, foi instituído pelo governo Roosevelt o que ficou conhecido como Aid to Families with Dependent Children, o AFDC, que existe até hoje, mas vem sendo gradualmente cortado. Destinava-se às famílias com crianças dependentes porque os pais deixaram as mães, ou estas ficaram viúvas. Resolveu-se prover um complemento de renda até certo valor. Esse foi um programa muito importante desde 1935. Nos anos 60, instituiu-se o Food Stamp Program, uma espécie de imposto de renda negativo, mas na forma de cupons de alimentação. A família ou pessoa cuja renda não alcance determinado patamar tem direito a um complemento da ordem de 30% da diferença entre aquele patamar e a renda da pessoa ou da família, mas recebido em cupons de alimentação. Isso acabou interessando muito aos produtores agrícolas, o que criou inclusive um grande respaldo político.

Ainda nos anos 60, na literatura econômica brasileira houve um grande desenvolvimento da discussão sobre as formas de garantia de renda mínima, sobretudo através de um imposto de renda negativo, como nos artigos dos economistas Roberto de Oliveira Campos, Antonio Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen. Eu me lembro de um artigo de Simonsen na revista "Exame", em 1993, em que ele se referia à maneira mais eficaz de combater a pobreza. Chamava-se o artigo "Por quem o presidente Itamar Franco chora?" Ele comentava as atitudes de Betinho, a campanha contra a fome e a miséria e observava que, se se quiser combater de fato a indigência e a miséria, o melhor sistema é o que foi propugnado pelos economistas liberais Friedrich A. von Hayek e Milton Friedman, o imposto de renda negativo ou a garantia de renda mínima, curiosamente defendida no Senado por um senador do Partido dos Trabalhadores. Delfim Netto e Roberto Campos escreveram algo semelhante.

O que vim a concluir depois de ter estudado essa matéria é que essa proposta pertence à humanidade, e não só aos liberais, da esquerda ou da direita. É uma proposta de bom senso e vou procurar comprovar isso fazendo uma retrospectiva histórica.

Por que pertence à humanidade? Aristóteles já dizia que o objetivo da política é alcançar o bem-estar. Para isso é preciso justiça política, e para tanto é necessária a justiça distributiva. Ele já estava dizendo o que mais tarde, em 1875, Karl Marx repetiu, ao afirmar que "numa sociedade mais amadurecida os seres humanos vão se portar de tal maneira que poderão inscrever isto como lema de sua bandeira: a cada um de acordo com a sua capacidade e necessidade". E que "poderão chegar nisso por uma decisão consensual e democrática".

Isso também está no Antigo Testamento, nas inúmeras passagens em que se ressalta a necessidade de tsedaka, a expressão em hebraico de justiça social. Também no Novo Testamento, nas parábolas de Jesus, como naquela em que ressalta que o dono da vinha ia pagar a quem chegou na primeira, na segunda e até na última hora aquilo que cada um concordou que seria justo, mas o suficiente para prover a cada família a sua necessidade. E na Segunda Epístola de São Paulo aos Coríntios, em que ele recomenda a todos que procedam como Jesus, que, sendo tão poderoso, resolveu se solidarizar com os mais pobres e viver entre eles. De tal maneira que, para que haja igualdade, todo aquele que teve uma colheita abundante não tenha de mais e todo aquele que teve uma colheita pequena não tenha de menos.

Também está expresso no Alcorão, nas recomendações de Omar, o segundo dos califas que sucederam a Maomé, quando observa que todo aquele que tem um grande patrimônio deve destinar uma parcela àqueles que pouco ou nada têm. Os fundamentos disso também foram expressos por aquele que foi um dos grandes pensadores humanistas da Europa moderna, Thomas More. Em 1516, no livro Utopia, ele escreveu um diálogo muito interessante sobre algo que hoje está nos preocupando, todos os dias, em São Paulo ou no Rio de Janeiro. São as gangues de adolescentes que descem dos morros e dos bairros periféricos das grandes cidades para fazer quebra-quebra e assaltos nos ônibus e no comércio. Mas em 1516, havia sido instituída na Grã-Bretanha a pena de morte. O livro fala do diálogo entre um cardeal-arcebispo, um outro personagem e o viajante português Rafael Hitlodeu, que, depois de chegar ao Brasil com Américo Vespúcio, teria alcançado a ilha de Utopia, localizada, segundo suposições de Eduardo Bueno com base nas indicações dadas no livro de More, em Fernando de Noronha. Ao discutir se a introdução da pena de morte não havia contribuído para diminuir os roubos, os assaltos, os assassinatos, Rafael Hitlodeu observou que, muito mais eficaz do que instituir essa pena, para quem não tem outra alternativa senão a de primeiro se tornar um ladrão e depois um cadáver, seria assegurar a sobrevivência das pessoas. Foi exatamente um amigo de Thomas More, Juan Luis Vives, que, enviado pelo rei de Espanha para os Países Baixos, escreveu, em 1526, De subventione pauperum, um tratado de subvenção aos pobres, propondo pela primeira vez um programa de renda mínima para a cidade flamenga de Bruges. Foi instituído em Ypres, naquela oportunidade, um programa de renda mínima municipal. Isso em 1526, há quase 500 anos.

Entre os que melhor fundamentaram o direito de todos partilharem da riqueza recebendo um dividendo é aquele que é considerado o maior ideólogo das revoluções americana e francesa, Thomas Paine. Em 1795 ele escreveu "Agrarian justice", um pequeno ensaio encaminhado ao Diretório e à Assembléia Nacional da França. Vamos recordar que Thomas Paine nasceu na Grã-Bretanha em 1737 e tornou-se amigo de Benjamin Franklin, que o convenceu a ir para a América, onde, como coletor de impostos, foi um grande observador dos costumes e valores. Começou a escrever textos sobre os direitos da pessoa humana, como "The rights of man" e "Common sense", este considerado por George Washington o estopim da libertação, já que foi distribuído nas ruas de Filadélfia e daí multiplicado em 150 mil panfletos anônimos pelas 13 colônias americanas.

Paine argumentava dizendo que contrariava o bom senso uma ilha tomar conta de um continente e, com outras idéias assim, levou os americanos a lutarem por sua independência, proclamada pouco depois, em 4 de julho de 1776. Mas suas idéias eram consideradas muito subversivas, e por isso ele teve de voltar para a Europa, onde acabou sendo o único estrangeiro na Constituinte da França, depois da Revolução Francesa.

Em "Agrarian justice", afirmou que a pobreza tem muito a ver com a civilização e a instituição da propriedade privada. Observou que achava justo que uma pessoa que realizasse uma benfeitoria na terra tivesse o direito de usufruir do resultado. Defendeu (esse era seu plano) que toda pessoa que cultivasse a terra destinasse uma parcela para um fundo que a todos pertenceria. Com esse fundo se pagaria a cada pessoa residente naquela nação 15 libras esterlinas ao completar 21 anos, e depois, ao completar 50 anos, 10 libras esterlinas por ano. Vejam que isso foi escrito há 200 anos, como um direito de cada cidadão, por participar da nação.

Neste século foram inúmeros os economistas e filósofos que escreveram sobre isso, como Bernard Shaw e Bertrand Russell, que em 1918 publicou Os caminhos para a liberdade (The routes to freedom). No capítulo sobre remuneração e trabalho, ele diz que toda pessoa deve receber o suficiente para sua sobrevivência e, a partir daí, cada um viverá com aquilo que obtiver por seu talento e esforço. Nos anos 20, 30 e 40 foram justamente os economistas que tiveram a preocupação com a justiça, a democracia, a liberdade e a igualdade. Formaram a Liga do Bônus Social, na Grã-Bretanha, Denis Milner e o casal E. Mabel, George D. H. Cole, Major Douglas, o prêmio Nobel de Economia de 1977 James Edward Meade, Joan Robinson, Oskar Lange e Abba P. Lerner. Todos eles escreveram a respeito de prover um dividendo social, uma renda mínima garantida, batizada com os mais diversos nomes. Muitos desses economistas ficaram conhecidos por ter formado em torno de John Maynard Keynes o Círculo de Cambridge. O próprio Keynes, em 1939, escreveu um de seus mais brilhantes ensaios, denominado "How to pay for the war?" A Grã-Bretanha estava ingressando na guerra contra a Alemanha, Japão e Itália, e Keynes, preocupado com a questão de como reservar o suficiente para a defesa, escreveu a respeito do financiamento das despesas de guerra. Nesse ensaio, que é o último de Essays in persuasion, ele dizia que era necessário prover uma renda básica a todos os que moravam na Grã-Bretanha. Em 1939, antes de Hayek e outros, ele dizia que a Grã-Bretanha deveria destinar 2% de seu Produto Nacional Bruto, que era de 5 bilhões de libras, o que dava 100 milhões de libras, a uma renda básica a todos os que moravam no país. E dizia que isso era perfeitamente viável.

Em 1944, Abba P. Lerner, em The economics of control, escreveu a proposta de uma "negative income tax". Também em 1944, Hayek escreveu O caminho da servidão, uma crítica ao nazismo, ao comunismo e ao totalitarismo, propugnando o sistema de livre mercado. No capítulo sobre a seguridade e a segurança, ele diz que se deveria garantir o direito a uma renda mínima e que era perfeitamente possível a Grã-Bretanha, em 1944, fazer isso, pois estava ao seu alcance. E ele dedica esse livro aos seus amigos socialistas.

Em 1946, George Stigler, numa análise sobre os efeitos do salário mínimo na revista "American Economic Review", afirmou que o mais eficaz para garantir uma renda mínima, combater a pobreza e também o desemprego seria o imposto de renda negativo. Stigler era amigo pessoal de Milton Friedman. Em 1962, em Capitalismo e liberdade, ao explicar o imposto de renda negativo no capítulo sobre a pobreza, Friedman contribuiu para popularizar essa proposta, e ao mesmo tempo provocou em parte de segmentos da esquerda uma reação do tipo "imposto de renda negativo é uma proposta neoliberal, então cuidado com ela".

Em 1968, economistas como James Tobin, Paul A. Samuelson, John Kenneth Galbraith e 1,2 mil outros assinaram um manifesto para que o Congresso norte-americano instituísse um programa de renda mínima através de um imposto de renda negativo. O presidente Lyndon Johnson formou uma comissão de combate à pobreza, a Heinemann Comission, que chegou à proposta de instituir um programa para prover um mínimo de renda para todos. Quem acabou sendo responsável pela proposta ao Congresso americano?

Surpreendentemente, um presidente que tinha um histórico de anticomunista e muito conservador, Richard Nixon. Ele chamou do gabinete de Kennedy e de Lyndon Johnson Daniel Patrick Moynihan, hoje senador, um profundo conhecedor de programas de seguridade e de imposto de renda negativo. Foi ele que formulou o Family Assistance Plan, que em 1969 foi enviado por Nixon ao Congresso. Na mensagem lida em agosto de 1969, o presidente afirmou: "Os Estados Unidos farão duas coisas que até uma geração atrás eram consideradas impossíveis: primeiro, colocaremos um homem na Lua; segundo, vamos erradicar a pobreza através do Family Assistance Plan". A proposta era que toda família cuja renda não alcançasse naquela época US$ 3,9 mil por ano tivesse o direito de receber 50% da diferença entre esse valor e a própria renda. Podemos dizer que hoje os US$ 3,9 mil equivalem a algo como US$ 17 mil ou US$ 18 mil. A família que não recebesse hoje pelo menos US$ 18 mil teria assegurado 50% da diferença. A proposta foi discutida em profundidade e venceu por dois a um na Câmara (Casa dos Representantes). Mas no Senado perdeu por dez a seis. Daniel Patrick Moynihan, no livro The politics of a guaranteed income – The Nixon administration and the Family Assistance Plan, revela todo esse debate e como algumas organizações se uniram para defender o Food Stamp Program. Os senadores dos Estados fornecedores de produtos agrícolas ficaram com receio do corte do Food Stamp Program e por isso não votaram a favor do Family Assistance Plan. Outros tiveram dificuldade em aceitar a idéia de prover um mínimo de renda mesmo àquela pessoa que não está trabalhando. Por isso a proposta perdeu por dez a seis. Tanto a esquerda como os conservadores se dividiram. O próprio Partido dos Panteras Negras tinha no estatuto a garantia de uma renda mínima, mas na hora de votar a matéria não teve apoio suficiente.

Nixon mandou duas vezes a mensagem e nas duas perdeu aproximadamente com a mesma proporção. O senador Russell Long, democrata da Louisiana, observando aquele debate, propôs criar uma forma de imposto de renda negativo só para quem estivesse trabalhando e cuja renda não atingisse determinado patamar, para que houvesse maior estímulo ao trabalho. Algumas experiências locais já haviam ocorrido, inclusive na Califórnia, com o governador Ronald Reagan, em Nova Jersey e em outros lugares. Em 1974 esse senador propôs o Crédito Fiscal por Remuneração Recebida, que foi aprovado consensualmente. Era então presidente Gerald Ford.

Isso foi expandido depois por Ronald Reagan, e mais tarde por George Bush, em ambas as ocasiões com maioria democrata e presidentes republicanos. Em 1992, Bill Clinton resolveu expandir e mais do que duplicar o Earned Income Tax Credit. Observem que foi desde esse momento, de 1993 para cá, com a expansão do Earned Income Tax Credit (e tenho notado que os economistas brasileiros, mesmo os de meu partido, ainda duvidam disso), que diminuiu significativamente a taxa de desemprego nos Estados Unidos, hoje em torno de 4,2%. É a menor taxa dos últimos 29 anos. É claro que o conjunto de políticas macroeconômicas que conseguiram fazer as taxas de juros baixarem foi importante para isso. Mas os estudos de Robert Greenstein, do Center on Budget and Police Priorities, demonstram como a introdução e depois a expansão do Earned Income Tax Credit contribuíram para que os Estados Unidos tivessem uma menor taxa de desemprego.

Por essa razão digo para as entidades empresariais, bem como para os trabalhadores, que é importante observar que nos países desenvolvidos há formas de garantia de renda mínima que contribuem para que eles inclusive tenham maior competitividade. Na Europa são inúmeros os instrumentos. Na França instituiu-se o Renda Mínima de Inserção (RMI), em 88. Na Espanha, o RMI foi introduzido em 90. Em Portugal, em 96. Os países escandinavos têm sua forma de renda mínima. A Holanda é um dos países onde o debate sobre o conceito de renda básica está mais avançado; está se discutindo inclusive no Parlamento. Há hoje parlamentares de diversos partidos no Parlamento da União Européia propugnando pelo direito a uma renda básica universal. Se essa idéia for aceita progressivamente em todos os países, estaremos muito mais próximos inclusive de resolver problemas como os de Angola, do Timor Leste, de Biafra, de alguns dos países mais pobres do mundo, e assim chegarmos ao objetivo de garantir a todos o direito de partilhar da riqueza do planeta.

Vejamos um breve histórico sobre o Brasil. No meio acadêmico, Antônio Maria da Silveira, em julho de 75, escreveu na "Revista Brasileira de Economia" sobre a proposta de um imposto de renda negativo para atacar a pobreza. Ele conjugava a proposta com a maneira de se introduzir moeda na economia. Em 78, Edmar Bacha e Roberto Mangabeira Unger, num livro que depois nunca fizeram muita questão de discutir e propagandear, escreveram um projeto de democracia para o Brasil, "Participação, salário e voto", onde propunham reforma agrária e um programa de garantia de renda mínima através de um imposto de renda negativo.

Dentro do Partido dos Trabalhadores, nos anos 80, eu e Paul Singer inúmeras vezes conversamos sobre isso. No governo Figueiredo, quando era ministro Antonio Delfim Netto e José Flávio Pécora participava da equipe, não me lembro de ter havido discussão sobre um imposto de renda negativo. Nem mesmo eu, como deputado federal, formulei proposição com esse teor. Em 86, lembro-me de ter argüido no plenário da Câmara os ministros Dílson Funaro e Francisco Dornelles, da Fazenda, sobre o que eles pensavam a esse respeito. Mas foi só em 90 que retomei o interesse sobre esse assunto, que eu havia conhecido quando fiz o mestrado e depois o doutorado nos Estados Unidos e acompanhei o debate entre Richard Nixon e George McGovern, em que ambos propunham uma forma de garantia de renda mínima. Conversei com meus colegas de partido e amigos economistas, que me disseram: "Por que você não apresenta isso?" Chamei então Antônio Maria da Silveira, e ambos redigimos a proposta, apresentada em abril de 91, que instituía um programa de garantia de renda mínima através de um imposto de renda negativo. Pelo projeto, toda pessoa adulta de 25 anos ou mais cuja renda não alcançasse 45 mil cruzeiros à época, mensalmente – hoje seriam uns R$ 300 –, teria direito a um complemento de renda correspondente a 30% da diferença entre aquele patamar e a renda da pessoa, podendo o Executivo aumentar esse índice para 50%. O trabalho seguinte foi conversar com os 81 senadores e com as bancadas. Em outubro de 91, a proposta foi aprovada por unanimidade na Comissão de Assuntos Econômicos. Era o governo de Fernando Collor. Em dezembro, o líder do PFL, Marco Maciel, pediu que o projeto fosse para o plenário, porque era terminativo, e poderia ter sido encerrada lá a votação. Na última semana de trabalhos, em dezembro, o senador Humberto Lucena, presidente, reuniu os líderes e disse: "O que vocês avaliam que precisa ser votado nessa semana final?" Cada um deu sua opinião, e Marco Maciel disse: "Precisamos votar os incentivos aos exportadores". Já tínhamos votado incentivos para a Zona Franca de Manaus. Ao chegar a minha vez, perguntei: "Quando o Senado vai votar um projeto para a erradicação da pobreza? Votamos a toda hora incentivos fiscais creditícios aos empresários, às pessoas que já detêm recursos para criar investimentos e empregos, mas sempre pelas mãos dos que detêm maior patrimônio". Deram-me razão. No dia 16 de dezembro, depois de quatro horas e meia de debate, um a um todos os senadores, mesmo os que levantaram objeções, foram convencidos. E o líder do PSDB, Fernando Henrique Cardoso, fez um pronunciamento de mais de 20 minutos, espontâneo, dizendo que se tratava de uma utopia realista, com os pés no chão, e que o PSDB iria dar muito mais do que um crédito de dinheiro, um crédito de esperança. Quase todos os partidos votaram a favor (quatro se abstiveram). Os que se abstiveram hoje dizem que estão convencidos da seriedade e viabilidade da proposição. O projeto seguiu para a Câmara dos Deputados, recebeu parecer entusiasta do deputado Germano Rigotto, e até hoje está lá para ser votado.

No debate havido no seio do Partido dos Trabalhadores, certa vez nos reunimos em Belo Horizonte com Walter Barelli, que era o coordenador do governo paralelo de Lula, e 50 economistas. José Márcio Camargo ponderou: "Acho boa a proposta de renda mínima, mas em vez de fazer por pessoa, por que não por família e relacionada à educação, para atacarmos um dos maiores problemas no Brasil, que é o número tão grande de crianças que trabalham precocemente porque seus pais não ganham o suficiente?" Assim, foi redigida a proposta de renda mínima por família relacionada à educação. E assim, em 95, Cristovam Buarque, no Distrito Federal, e o prefeito José Magalhães Teixeira, o Gama, de Campinas, instituíram, respectivamente, a Bolsa-Escola e o Programa de Renda Familiar Mínima, com o seguinte princípio: toda família cuja renda não alcançasse meio salário mínimo per capita e incluísse criança até 14 anos teria direito a receber um complemento de renda. No Distrito Federal um salário mínimo fixo e em Campinas o suficiente para completar meio salário mínimo per capita, desde que as crianças estivessem na escola. Os programas foram implementados, com resultados positivos sobre a evasão escolar, que diminuiu. Houve inúmeras avaliações positivas, inclusive do meio acadêmico, do Ipea, da Unicamp e da USP, e teses estão sendo produzidas por toda parte. Ribeirão Preto, Piracicaba, Jundiaí, Belo Horizonte, Belém, Mundo Novo, mais de 35 cidades instituíram programas desse tipo. Inúmeras proposições apareceram, três na Câmara e três no Senado, e a partir daí houve um debate. E o Palácio do Planalto coordenou junto com a Câmara dos Deputados para que fosse aprovada a lei 9.533, a partir de uma iniciativa de Nelson Marchezan, que basicamente diz que fica o governo federal autorizado a financiar em 50% os municípios que adotarem programas de renda mínima associados à educação, desde que as crianças estejam freqüentando a escola. Primeiramente – nos primeiros cinco anos – para os municípios de menor renda per capita, e gradualmente, até todos os que tiverem renda e arrecadação per capita menores do que a média do respectivo estado. E, a partir do quinto ano, por proposição minha, todos os municípios brasileiros poderão ter isso. O benefício é de R$ 15 multiplicado pelo número de crianças até 14 anos, menos metade da renda familiar per capita. Uma fórmula que não é de bom senso, no meu entender, e que não alterará tanto as coisas, ainda que possa ser uma pequena ajuda, mas muito microscópica.

Aqui mesmo em São Paulo buscamos a aprovação, pela Câmara Municipal, de um projeto de iniciativa do PT. Procurei convencer o prefeito Celso Pitta. Ele tinha encaminhado ao Tribunal de Justiça uma ação de inconstitucionalidade, mas em maio último desistiu da ação. Recentemente, o Tribunal de Justiça decidiu que a lei está promulgada e aprovada. Basta regulamentar. Já passou o prazo, mas o prefeito ainda não o fez. Em São Paulo, a lei tem o seguinte desenho: toda família cuja renda não alcançar três salários mínimos mensalmente tem o direito de receber 33% da diferença entre aqueles três salários mínimos (R$ 408), e a sua própria renda, podendo o Executivo aumentar essa alíquota, se tiver recursos e de acordo com a experiência do programa, até 66%. E as crianças dessas famílias deverão estar freqüentando a escola. O prefeito disse que regulamentaria a lei até agosto, mas estamos em 10 de setembro e ainda não o fez. Se for implementado na cidade de São Paulo, 855 mil pessoas seriam beneficiadas e aproximadamente 215 mil famílias receberiam algo significativo. Na regulamentação ele colocaria que as famílias devem estar residindo em São Paulo há pelo menos quatro anos. Segundo a proposta que fiz, somente as famílias que tivessem renda zero teriam direito a 33% da diferença entre R$ 408 e a renda, pois se houvesse pelo menos uma pessoa trabalhando na família, até para que haja estímulo ao trabalho, a proporção aumentaria para 45% da diferença entre R$ 408 e a renda. Se o prefeito efetivar a regulamentação, que está pronta, será esse o desenho.

Debate

Nota do Editor: as colocações dirigidas ao palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para serem respondidas de forma concentrada.

ROBERT APPY – Ninguém duvida da generosidade do senador Suplicy. Eu sempre respeito suas opiniões, o que não quer dizer que compartilho delas. O senador começou por reconhecer, aliás com certo atraso, que o Plano Real foi um instrumento de redistribuição de renda e acrescentou que houve outros mecanismos que agravaram a situação. Mas não citou esses mecanismos. É uma das minhas perguntas.

Segunda observação: foram citados os instrumentos que devem reduzir a má distribuição de renda no Brasil: reforma agrária, microcrédito, cooperativas, orçamento participativo e renda mínima. Eu acho que ele se esqueceu da reforma da previdência social, da qual o PT não é muito entusiasta porque é o partido dos funcionários públicos, e não dos trabalhadores. A renda mínima se justifica plenamente, mas temos que pensar em ter o menor número possível de pessoas recebendo esse benefício. Por isso, a redução do déficit público é muito importante, porque vai permitir taxas de juros aceitáveis e vai criar empregos. Estou de acordo, portanto, em defender a renda mínima, mas também em reduzir ao máximo o número dos beneficiários. Todos os países que adotam a renda mínima de um modo ou de outro têm estabilidade, o que naturalmente não é o caso do Brasil.

JACQUES MARCOVITCH – Gostaria de ouvi-lo sobre um tema que a meu ver é demagógico. Não é o seu projeto, que é sério, mas de outros que estão iniciando no Brasil uma fase de neopopulismo que pode ter graves conseqüências. Refiro-me expressamente ao projeto aprovado pelo Senado da República que dispõe sobre uma cota de vagas nas universidades para estudantes oriundos da rede pública de ensino. Começo com uma observação, citando um correligionário seu, Cristovam Buarque, meu colega nas lides acadêmicas, que, quando discutia a importância da seleção e do aspecto qualitativo das universidades públicas, dizia que o que faz a universidade elitista não é o fato de que os pobres não terão filhos médicos, mas o fato de que os pobres não terão médicos para seus filhos. Esse projeto de cotas, aprovado aparentemente por unanimidade pelo Senado, vai afetar, sim, a qualidade dos médicos e dos profissionais, sem criar chances reais para que os pobres formem seus filhos. Ficou claro, quando da vinculação da renda mínima à manutenção das crianças na escola, que há uma preocupação extremamente responsável e de longo prazo, que foi adotada em Brasília e em Campinas, para que através do aprimoramento e da diminuição de repetência na escola de primeiro e segundo graus possamos chegar a gerações mais bem preparadas para enfrentar o vestibular. Dessa forma, a sociedade como um todo se beneficia da universidade, sem a discriminação que está sendo agora proposta.

Gostaria de ouvi-lo em primeiro lugar sobre experiências bem-sucedidas, como as que foram citadas, e quais foram suas conseqüências. Talvez três anos ainda seja pouco tempo para uma análise, mas dada a sua dedicação ao tema nós poderíamos, quem sabe, aprender mais dos municípios que adotaram esse caminho. E pergunto também quais são, na sua opinião, os riscos de um neopopulismo emergente no Brasil, que pode gerar situações muito sérias que possam afetar as poucas instituições que conseguiram criar no Brasil um desenvolvimento voltado para a justiça social.

JOSUÉ MUSSALÉM – Vou levantar algumas questões, a primeira delas sobre o financiamento desse programa. É uma proposta interessante, mas é bom saber se seria aplicável antes ou depois da reforma previdenciária, até porque representa um gasto público a mais.

Segundo ponto: um programa de renda mínima desse tipo teria mais importância no nordeste, que tem uma concentração de renda maior do que o centro-sul. Talvez ele tivesse até uma eficácia maior do ponto de vista social do que o programa Finor (Fundo de Investimento do Nordeste), administrado pela Sudene, que atua mais em projetos de grande porte.

Aí coloco uma terceira questão. Na prática existem pessoas que não querem sair do estágio de pobreza. Recentemente, uma experiência da igreja episcopal no Recife tirou das ruas do centro da cidade um grupo de mendigos, dando a eles carteira profissional, emprego e casa. Depois de seis meses, eles voltaram para o mesmo lugar, saíram dos empregos, venderam as casas. Enfim, gostam de permanecer nesse processo. Se pensarmos em um grupo maior, não seria esse programa uma espécie de cristalização desse estado de pobreza, ou seja, aumentaria apenas a renda, mas o indivíduo não avançaria? Não adianta apenas um programa de renda mínima, mas uma ação mais específica para mudar o status do país.

Quarto ponto: eu não acredito muito no papel do Estado como redistribuidor de renda. Será que a sociedade organizada, as empresas, um movimento como o Instituto Ethos, de São Paulo, não seriam capazes de complementar a ação do Estado, estabelecendo-se até um incentivo fiscal para que as empresas atuassem na sua própria área geográfica com um programa de renda mínima?

MALCOLM FOREST – A proposta é de muito bom senso e humanidade. Está bem exposta, apoiada em casos e vasta bibliografia. Minha pergunta é a seguinte: o que fazer para implantá-la? Há receio quanto a aspectos negativos e processos de realimentação. Por exemplo, o fato de a educação estar atrelada ao benefício. Não se poderia estabelecer mais relações com o planejamento familiar e o trabalho, para ganhar assim uma alavancagem ainda maior? Porque vejo essa proposta inclusive com potencial de ativação da cadeia econômica. À medida que esse capital chegar aos pobres, vai começar a melhorar a economia.

EDUARDO SUPLICY – Em relação aos mecanismos que agravaram a concentração de riqueza, em grande parte são aqueles que têm sido característicos das últimas décadas e que se aprofundaram inclusive durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Para o orçamento do ano 2000, por exemplo, estimam-se incentivos fiscais de R$ 9,2 bilhões. Não seria mais adequado estimular o crescimento e o desenvolvimento econômico pelo lado dos que pouco ou nada têm, em vez de favorecer os que já detêm muito?

Mas analisemos quais os instrumentos em especial que contribuíram para a concentração de renda e de riqueza. Primeiro, vejamos como foram distribuídos os créditos do próprio BNDES nos anos de 96, 97 e 98. Fiz um pedido de informação ao BNDES no ano passado para saber, por exemplo, da destinação de recursos para micro, pequenas, médias, médias grandes e grandes empresas, segundo a classificação da entidade. Em 97 e no primeiro semestre do ano seguinte, 95% dos recursos emprestados pelo BNDES foram para médias grandes e grandes empresas e apenas 2% para micro, pequenas e médias empresas. O próprio BNDES vem, desde o segundo semestre de 1998 e durante este ano, procurando modificar isso. Recentemente, o presidente regulamentou o crédito às micro, pequenas e médias empresas, e parece que vai dar um impulso a elas. Mas a tendência não tem sido essa.

Será que o programa de privatização tem contribuído para melhorar a distribuição da renda? Se verificarmos a maneira como foi feito, a resposta é não. Em outros países, procurou-se democratizar a propriedade e o controle das empresas que antes eram patrimônio público. Isso foi objeto de propostas da oposição no Congresso, mas não obtivemos um terço das assinaturas necessárias. No processo de privatização, o governo colocou o BNDES provendo recursos a taxas de juros menores do que as de mercado para que grupos privados pudessem adquirir o controle de estatais, com o aval do Banco do Brasil e o apoio das entidades de previdência fechada como Previ, Petros, Funcef e tantas outras. Nominalmente, esses fundos são de propriedade dos funcionários das empresas públicas, mas na prática são controlados pelo Palácio do Planalto. Temos portanto de pensar em que medida a privatização contribuiu para a concentração de patrimônio na sociedade brasileira.

Outro aspecto da questão são o Proer e o Proes, programas criados para reestruturar o sistema financeiro. Em entrevista à "Gazeta Mercantil", Gastão Eduardo Bueno Vidigal mencionou, de forma pouco usual, que durante o governo em que foi ministro, o titular da pasta da Fazenda lhe solicitou que adquirisse o controle do banco então presidido por Roberto de Oliveira Campos. Ele disse ao ministro da época: "Não vou aceitar isso, porque, se eu concordasse em receber um crédito da sociedade para adquirir o controle de um banco como esse, deveria ser preso". Foi essa sua análise do Proer.

O Proer foi transformado de medida provisória em projeto de lei. Utiliza recursos que não são do orçamento, mas do depósito compulsório recolhido de todas as empresas e de pessoas pelas instituições financeiras. Desses recursos uma parcela significativa destina-se aos empresários, a taxas de juros menores do que as disponíveis, para facilitar a aquisição do controle de ativos de instituições que não estão bem. Dessa forma, instituições relativamente mais saudáveis passam a ter um patrimônio maior. Embora até se possa argumentar que esse processo contribui para maior estabilidade do sistema financeiro, etc., ele não leva a maior concentração de renda e de patrimônio na sociedade?

Robert Appy, a melhor proposta de reforma da previdência, a que representa maior eqüidade, é a de Eduardo Jorge, do Partido dos Trabalhadores, com a qual estou de acordo e que o governo elogiou mas não abraçou. Previa um sistema único de igualdade de tratamento para todos no setor público e no privado. O governo só elogiou.

A proposta da renda básica universal faz sentido e talvez seja a mais racional. Para começar, tem de ser para os que pouco ou nada têm. Mas a maior racionalidade vai ser alcançada quando inclusive você, eu e Antonio Ermírio de Moraes, todos pudermos receber, para que não haja o estigma.

Jacques Marcovitch, quanto ao projeto das vagas para as faculdades públicas, infelizmente não tivemos no Senado a oportunidade de receber sua contribuição e a do meio universitário na ocasião da votação. Não percebi no Senado Federal os segmentos universitários pedindo cuidado com essa proposta. Ela foi votada, houve boa vontade por parte do plenário. Eu mesmo tive algumas reservas e dúvidas, mas não cheguei a manifestá-las. À primeira vista, a proposta me pareceu um tipo de discriminação positiva, que muito se discute em relação aos negros, por exemplo. Hoje há uma polêmica muito grande sobre se convém ou não ter cotas para minorias raciais. Nos Estados Unidos há um debate a esse respeito, porque lá isso se implementou. A proposta de assegurar 50% de vagas para os alunos vindos de escolas públicas me pareceu que pode ter resultados. Quem sabe seja o caso de experimentar, para alcançar maior eqüidade.

Quanto à questão da operacionalização e dos resultados, posso citar o prefeito de Catanduva, que começou o projeto de renda mínima logo no início de seu mandato, em 97. Ele me informou recentemente que conseguiu diminuir a evasão escolar, de crianças de sete a 14 anos, que antes estava em 19%, para menos de 1%. Em Catanduva há mais de mil famílias participando do programa, ali denominado Bolsa-Escola. Na cidade de Belém, o prefeito Edmilson Rodrigues dedicou 2,77% do orçamento a um projeto semelhante, beneficiando mais de 5 mil famílias. Ainda não atingiu todas elas, mas gradualmente está chegando lá.

Na localidade de maior abrangência do projeto, o Distrito Federal, houve diminuição muito significativa na evasão escolar. Alguns dos resultados positivos colhidos por Sônia Rocha, João Sabóia, Lena Lavinas, Samir Cury e outros estão sumarizados em um livreto. Tanto que a idéia da renda mínima social da educação é reconhecida hoje internacionalmente pela Unesco e pelo Banco Mundial, e tem sido objeto de discussões em todos os simpósios.

Em relação ao financiamento, que Josué Mussalém abordou, acho importante poder compatibilizá-lo com o sistema previdenciário. O governo até agora não olhou para isso com a devida atenção. Mesmo esse programa de renda mínima social da educação, agora sob a responsabilidade do Ministério da Educação, não tem grande conexão com o sistema previdenciário. E se considera como rendimento da família para se chegar àquela renda per capita tudo o que se esteja recebendo do governo, da previdência, portanto. Há que se fazer uma coordenação, sem dúvida.

Senhor Malcolm, permita-me apenas dizer que é muito importante que as entidades possam colaborar. Na Sociedade Rural Brasileira, tive um contato com Luiz Suplicy Haffers, e diversas pessoas se entusiasmaram pela proposta de renda mínima. Elas a consideram interessante até para a agricultura, para a resolução do problema social no campo. É muito importante que a Federação do Comércio também estude o assunto, para sugerir qual o melhor desenho, a melhor fórmula, e participe desse debate. Todos os projetos – locais, estaduais ou mesmo o nacional – podem ter a abertura para que entidades privadas colaborem em sua elaboração, fiscalização e financiamento, de modo a torná-los ainda mais eficientes.

VAMIREH CHACON – Congratulo-me com o senador Suplicy pela desemocionalização do debate e até por sua despartidarização. Sabemos que as paixões políticas são naturais, principalmente as partidárias, e até inevitáveis. Mas sua exposição foi técnica e, por assim dizer, com uma justificação de motivos ampliada. Quero chamar a atenção para um único aspecto. É a necessidade de desburocratizar, desde o começo, esse programa. Estamos acostumados, sem nenhuma preocupação de cometer injustiças, a que quase sempre entre nós as reformas sejam melhores para os reformadores do que para os reformados. No final, costuma haver mais gente na atividade-meio do que na atividade-fim. Isso pode significar, mais uma vez, a montagem de uma burocracia desnecessária. Precisamos ter autocrítica. Vejam o caso mais do que típico da CPMF, que nunca foi destinada às suas finalidades, mas exclusivamente a tapar rombos do déficit público. Esse projeto, por mais meritório que seja, também não deve agravar o referido déficit. Sem o prévio saneamento financeiro do Estado, esse ou qualquer outro projeto de maior presença estatal, inclusive benéfica, pode significar o contrário do que todos queremos: a montagem de mais uma fonte de sangria da já tão depauperada finança pública.

CLÁUDIO CONTADOR – Não me preocuparia muito, senador, com essa questão polêmica menor, se a proposta é da direita ou da esquerda. A preocupação social depende da consciência de cada indivíduo, e portanto não tem matiz ideológico. Vou resumir muito rapidamente algumas questões técnicas. Antes de mais nada, como seria vista pelo programa uma pessoa não registrada? No Brasil temos uma quantidade enorme de pessoas que não têm registro de nascimento. Segundo, a renda proveniente da economia informal não tem nenhum tipo de contabilização. Então há pessoas que se dizem desempregadas mas na verdade têm alguma renda. Como identificar essas pessoas? E uma terceira questão: existe a idéia de exigir uma contrapartida dos adultos favorecidos pela proposta? A propósito ainda dessa questão técnica, Gary Becker, que, junto com Friedman e Stigler, foi um dos que falaram a respeito disso, escreveu um artigo, publicado no "Journal of Labor Economics" de janeiro de 93, em que avalia bem alguns problemas que surgiram nos Estados Unidos no tocante à economia informal, principalmente com chicanos. Daí vem a idéia da contrapartida: exigir que essas pessoas sejam legalizadas para que possam participar do programa.

Finalmente, uma preocupação comum: ao lançar o programa, o governo não estaria desviando recursos sociais da saúde, da educação, etc.? Não seria melhor uma política direta de geração de emprego através de redução de impostos para a criação de empresas, microcrédito e programas de prefeituras?

JOSEF BARAT – Imagino que em países ricos o conceito de combate à pobreza é voltado mais a proteger famílias e indivíduos que ficaram fora do processo de afluência e que representam um contingente minoritário da população. No caso de um país como o Brasil, acredito que esse programa tem mais a finalidade de alterar a própria estrutura social, pois aqui a pobreza é um fenômeno muito mais marcante do que nos Estados Unidos ou na Europa. Nesse sentido, mais do que um programa de redistribuição de renda em si, o projeto pode ser o catalisador de ações de transformação dessa realidade social. Pode ativar mecanismos ligados à educação, como já foi aqui mencionado, mas também ligados à saúde pública preventiva, à organização comunitária, etc., de forma que esse programa, mais do que tudo, possa dar ensejo à conscientização da cidadania.

Agora uma curiosidade. Ontem, o secretário da Receita Federal, em depoimento na Câmara dos Deputados, mencionou que quase metade das grandes empresas brasileiras se beneficia da chamada elisão fiscal. Ou seja, em bom português, não pagam imposto.

SUPLICY – Foi na CPI do Sistema Financeiro, no Senado.

BARAT – Portanto, uma grande parte das grandes empresas no Brasil não paga imposto de renda positivo, em contraposição ao imposto de renda negativo. Não temos sequer o controle da arrecadação do tributo mais elementar, que é o imposto de renda. Digo isso apenas para mostrar que, ao lado do esforço do programa de renda mínima e de todo esse trabalho de apoio às populações mais pobres, deveria haver uma preocupação do governo em penalizar aqueles que de fato devem pagar impostos e não pagam.

JANICE THEODORO – Acredito que a melhor distribuição de renda ou justiça social é um caminho que todos devemos perseguir, inclusive porque a violência na sociedade contemporânea é de tal ordem que nos leva a pensar sobre esse tema, queiramos ou não. Mas tenho a sensação de que grande parte dos pensadores humanistas citados, quando fizeram suas propostas, viviam numa sociedade em que de fato o homem tinha que resolver um sério problema, que era a fome, e grande parte da violência resultava desse impasse. A questão que temos de enfrentar na atualidade é que parte da população mundial sofre com o problema da fome, mas a violência causada pela desigualdade social, por incrível que possa parecer, não resulta obrigatoriamente da fome. Um exemplo. Na rua há meninos que pedem esmola porque aparentemente estão com fome. Se dou dinheiro, eles vão comprar droga, não vão comprar comida. Assim, se dermos dinheiro para determinadas famílias, esse dinheiro obrigatoriamente não resultará numa melhor qualidade de vida dessa população.

Qual seria o caminho ideal? Evidentemente, acredito que se fez uma ligação importante entre o salário que a família recebe e a educação. Mas, na atual conjuntura, eu pergunto: não seria mais interessante um incentivo fiscal dado a determinadas empresas que gerenciariam a montagem de escolas onde os alunos não pagariam? A rede pública está enfrentando problemas de qualidade muito complicados, que vão influenciar a entrada desses estudantes na universidade. Estamos conseguindo que muita gente vá para a escola, mas as pessoas não se alfabetizam lá. Tenho alunos quase analfabetos que chegam à Universidade de São Paulo. Não poderíamos acoplar isso ao projeto? Será que tudo isso não resultaria num repensar da própria reforma fiscal? Não é por aí que a sociedade teria de enfrentar o problema? Não seria o caminho mais justo para chegarmos a objetivos que o senhor propõe e que são tão corretos?

SUPLICY – Professor Chacon, sua preocupação de fazer uma reforma para a sociedade, e não para os reformadores, é fundamental. Estou de acordo com suas observações sobre os desvios havidos com a CPMF. Precisamos, de fato, arrumar a casa. Vamos conseguir desburocratizar o programa? Temos que pensar em diversas alternativas, qual é o melhor desenho, fazer um imposto de renda negativo por pessoa ou por família e relacioná-lo à educação? É possível fazer um imposto de renda negativo para famílias, conforme descrevi há pouco no projeto para o município de São Paulo, ou ainda no formato que apresentei. Em vez da fórmula que o governo colocou, R$ 15 vezes o número de crianças até 14 anos, menos metade da renda familiar per capita, poderia ser assim: o benefício por família seria 50% da diferença para alcançar o número de pessoas vezes o patamar definido. Digamos que seja meio salário mínimo per capita menos a renda familiar. Se uma família tivesse pai, mãe e quatro crianças, teríamos seis vezes R$ 68, que é meio salário mínimo, o que dá R$ 408. Se a família não receber R$ 408, terá direito a 50% da diferença entre R$ 408 e sua renda. Se tiver zero de renda, receberá R$ 204. Se já tiver R$ 208 de renda, receberá mais R$ 100.

Há uma alternativa para desburocratizar inteiramente o programa e, mais do que isso, evitar qualquer efeito da armadilha do desemprego, da armadilha da pobreza e do estigma. O que são essas armadilhas? Nos programas que complementam inteiramente o que falta de renda para a pessoa ou para a família, essa pessoa pode não querer mais trabalhar porque, ao conseguir um emprego, o benefício lhe será retirado. Isso é uma armadilha, a não ser que se estipule uma proporção da diferença na forma do imposto de renda negativo. Mas aí vem o problema: como assegurar que a informação é correta? É o problema da formalidade e da informalidade. Quando instituímos o imposto de renda positivo, não deixamos de fazê-lo só porque não se pode ter a garantia total de que as pessoas declarem a sua renda. Será que não poderíamos pelo menos iniciar um programa perguntando às pessoas qual é a sua renda formal mais a informal, utilizando certos mecanismos de sanção para a declaração incorreta, mas pelo menos confiando na declaração? Isso tem de ser enfrentado. Para uma solução completa, o passo mais adequado é a renda básica universal. Isto é, a todas as pessoas, não importando sua origem, raça, sexo, condição civil e socioeconômica, se proveria um tanto de renda. É possível? Sim, é possível. Existe em algum lugar? Existe. Fui visitar esse lugar no Alasca e achei extremamente interessante o que encontrei. É claro que são apenas 600 mil pessoas, mas com a informática o que se faz para 600 mil se faz para 160 milhões.

Vejam que coisa interessante. Nos anos 60, Jay Raymond, o prefeito de uma pequena vila de pescadores chamada Bay Bridge, observou que de lá saía uma grande riqueza na forma de pesca. Entretanto, muitas pessoas dali permaneciam pobres. Ele criou então um imposto de 3% sobre o valor da pesca para instituir um fundo pertencente a todos. Houve enorme resistência à idéia. Cinco anos depois de sua primeira tentativa, ele conseguiu a aprovação, e teve bom resultado. Tanto é que se tornou, dez anos mais tarde, governador do Alasca. No final dos anos 60, houve nesse estado a descoberta de uma enorme reserva petrolífera. Eleito em 1976, ele mandou para a Assembléia Legislativa (são 40 deputados e 20 senadores estaduais) a seguinte proposta: destinar 25% dos royalties decorrentes da exploração de recursos naturais para um fundo criado para pagar um dividendo para todos. Foi aprovada por referendo popular, 76 mil a 38 mil votos, dois para um, quando o Alasca tinha 300 mil habitantes. De 76 a 80, eles debateram qual a natureza do fundo. Alguns queriam um banco de desenvolvimento, do tipo do nosso BNDES, mas outros ponderaram que essa seria uma maneira de destinar recursos aos que já detêm grande capital, o que iria concentrar renda e riqueza. A primeira alternativa foi criar um fundo que pagaria, dos recursos gerados a cada ano, uma renda dividida proporcionalmente entre os que moravam no Alasca desde 59, quando foi fundado o estado. Mas três procuradores concluíram que era inconstitucional e estavam já para ganhar na terceira instância quando, em 1980, o governador disse que a renda seria igual para todos. Mandou nova mensagem e assim se fez. A partir de 80, metade dos recursos provenientes da exploração de recursos naturais são destinados a esse fundo.

Um conselho – seis pessoas designadas pelo governador – administra o fundo da forma mais transparente possível. Reúne-se em uma sala redonda, e em volta há um auditório para que as pessoas possam assistir às sessões, transmitidas ao vivo. Em 95, quando lá estive, estavam investindo aproximadamente 45% em títulos de renda fixa, 35% em ações de empresas do Alasca e dos Estados Unidos, 10% em empreendimentos imobiliários e 10% em ações de companhias internacionais, das quais seis eram brasileiras. Em 1980 era US$ 1 bilhão e hoje está em US$ 23 bilhões. A partir daquele ano, foram sendo destinados a cada pessoa residente no Alasca, desde que ali vivesse há um ano, primeiramente um pouco mais de US$ 300 anuais, depois US$ 400, depois US$ 500, e assim por diante. A pessoa faz uma declaração de que reside no Alasca há um ano, se viajou foi por tal motivo, e que responde pelas crianças até 18 anos. Duas pessoas testemunham que essa declaração é verdadeira, um requerimento de uma página só com perguntas simples. Quem assim procedeu entre 1o de janeiro e 31 de março do ano passado recebeu, na segunda semana de outubro, US$ 1.540 por pessoa. Se forem seis pessoas na família, são mais de US$ 9 mil, como um direito de partilhar da riqueza do estado. Não soube de ninguém no Alasca que tenha deixado de trabalhar porque recebe isso.

No caso do Alasca, há um princípio que é incondicional. Não existe estrutura burocrática. Ao contrário, fiquei impressionado com a transparência e a forma enxuta de administrar o fundo. O diretor executivo havia sido designado há dois anos e era prefeito da capital Junot, onde fica a sede do fundo. Ele me disse: "Quando fui nomeado pelo conselho e pelo governador, houve um debate na imprensa de que eu estava acumulando o cargo de prefeito de Junot e de diretor executivo do fundo permanente do Alasca. Optei por ser só diretor executivo do fundo, que politicamente é o segundo cargo mais importante no estado, depois do de governador".

Acredito também que a instituição de uma renda mínima, até na visão de uma renda de cidadania (poderíamos adotar esse nome), vai elevar, sim, a consciência dos cidadãos. Gostaria até de registrar que nos municípios onde foi instituída a renda mínima social da educação as pessoas passaram a participar, por terem maior renda, de outros programas de educação e de saúde, de que antes nem conhecimento tinham.

Quanto aos não registrados, acredito que, na medida em que soubessem que teriam direito a uma renda como um direito à cidadania, obviamente fariam um esforço para se registrar. Sobre a renda informal, digo que é importante iniciar na circunstância presente por aqueles que pouco ou nada têm. É o formato do imposto de renda negativo. Com base em Thomas Paine e na experiência do Alasca, apresentei em abril de 1998 um projeto de lei que institui um Fundo Brasil de Cidadania. O projeto diz o seguinte: "Fica o governo autorizado a criar um Fundo Brasil de Cidadania para poder financiar uma renda como um direito à cidadania, primeiro para aqueles que pouco ou nada têm". Mas já na visão de um dia chegar a algo como o que existe no Alasca, um direito por estar vivendo naquele lugar, naquele país, por um ano ou mais ou por cinco anos ou mais. Se o presidente Bill Clinton quer fazer um grande mercado da Patagônia ao Alasca, por que não instituir direitos à cidadania do Alasca à Patagônia, iguais para todos? Aliás, eles gostariam que houvesse livre circulação de bens, serviços, capitais e pessoas do Alasca à Patagônia, mas o que se vê é um muro cada vez mais alto logo abaixo do Rio Grande. Aliás, Sebastião Salgado está organizando para o ano 2000 uma exposição sobre isso, mostrando que, se é para integrar o planeta, se tenha não apenas a livre circulação de bens, serviços e capital, mas o direito de a pessoa poder viver, trabalhar e estudar onde quiser, com o direito de partilhar da riqueza.

Quanto à possibilidade de exigir uma contrapartida dos benefícios, isso existe no caso da educação das crianças, uma coisa positiva. Poderá haver também estímulo à inserção das pessoas no mercado de trabalho. Não digo que esse seja o melhor modelo, mas deveríamos experimentar a fórmula de prover um complemento, uma proporção entre um patamar e a renda da pessoa, a fim de que sempre haja o estímulo para ela ingressar no mercado de trabalho.

Com a renda mínima, será que estaremos tirando recursos da saúde e da educação? Penso que devemos ter um bom sistema de educação e de saúde pública, mas também garantindo um mínimo de renda. Por que não gerar emprego fornecendo crédito às empresas? Considero o programa de renda mínima, desde que bem desenhado, uma das mais eficazes maneiras de estimular a atividade econômica. Já está comprovado que nos municípios onde se adotou o programa de renda mínima social da educação ativou-se a economia. Tenho a convicção de que se o prefeito Celso Pitta regulamentar a proposta em São Paulo, veremos esses efeitos aqui.

JULIAN CHACEL – Estou de acordo com sua observação de que esse projeto de renda mínima pode representar um incentivo ao nível de atividade econômica, que se acha deprimido. Mas é necessário ter em conta que em certas circunstâncias ele pode modificar o perfil da demanda. Então é preciso ter a garantia também de que do lado da oferta os chamados "wage goods" (já que o senhor se referiu tantas vezes a expressões inglesas) poderão fazer face a esse aumento de demanda.

SUPLICY – Com toda a certeza. Podem observar que na proposta inicial a idéia foi essa. O projeto foi aprovado em 91 no Senado, em 92 foi para a Câmara e o deputado Germano Rigotto deu parecer favorável. Minha proposta era iniciar em 93. O Senado modificou para iniciar em 95, no primeiro ano para as pessoas de 65 anos ou mais, no segundo ano 55 anos ou mais, diminuindo de cinco em cinco anos, até que no ano 2002 todas as pessoas de 25 anos ou mais tivessem esse direito. Seria uma forma de introdução gradual que possibilitaria à estrutura produtiva se ajustar. Em 96, em novo entendimento com Germano Rigotto, fizemos alguns ajustes. Em vez de classificar por idade, resolvemos iniciar pelos municípios de menor renda per capita. Abandonamos o critério de idade para atender a todos de 25 anos ou mais, no primeiro ano no Maranhão, Tocantins e Piauí, no segundo ano nos demais estados do nordeste e assim progressivamente até os estados de maior renda per capita e em seis anos para todo o Brasil. A proposta está lá, mas a idéia de introduzi-la gradualmente levava em conta também a importância de que o sistema produtivo se adapte. Sem dúvida, a maior injeção de recursos para aqueles que ganham até três salários mínimos significaria maior demanda de bens e serviços de primeira necessidade e estímulo para a economia produzir mais esses bens.

Janice nos falou que parte da violência tem a ver com a fome. Penso que muito da violência tem a ver também com a desigualdade. Ou seja, os extremos de desigualdade criam a violência. Se em Diadema e nos bairros paulistanos de Jardim Ângela e Vila Brasilândia há indicadores de violência extraordinários, é claro que isso tem a ver um pouco com as drogas. E estas têm a ver com a falta de direito à cidadania. Acredito que o direito a uma renda mínima poderá melhorar extraordinariamente a sociedade, propiciar um salto de qualidade. É possível administrar essa proposta não apenas nas cidad

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