Postado em 01/11/1999
Vítimas da agressividade, muitas mulheres sofrem em silêncio
IMMACULADA LOPEZ
Tornar pública a violência sofrida, muitas vezes em silêncio, pelas brasileiras. Esse tem sido um dos maiores esforços do movimento organizado de mulheres e de grupos de direitos humanos na última década, com alguns aliados nos governos e nas universidades. Apesar dos avanços – que incluem os ousados compromissos assumidos pelo Brasil nas conferências mundiais de Cairo 93 e Beijing 94, as delegacias da mulher e algumas pioneiras casas de apoio e casas-abrigos para acolher vítimas de violência –, a mobilização geral ainda é insuficiente. Tanto que até agora se desconhece a real dimensão do problema. Há apenas a certeza – confirmada pelos poucos levantamentos disponíveis sobre o assunto – de que ele é grave, constante e generalizado.
Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por exemplo, a cada ano, de 30% a 75% das mulheres latino-americanas que vivem com parceiros sofrem abuso psicológico por parte deles. Boa parte delas – de 10% a 30% – são atingidas por violência física.
São espantosos também os números da violência sexual contra as mulheres, cometida na maioria das vezes pelos próprios parceiros ou por pessoas próximas. Só no estado de São Paulo foram registrados 4 mil estupros em 1998. Considerando que, segundo estimativas internacionais, costumam vir à tona apenas 15% dos casos ocorridos, o total desses crimes se aproximaria de 27 mil.
Sob silêncio, a dor de ser espancada, humilhada ou violentada se intensifica pela falta de apoio e atendimento adequado. Portanto, alertam os especialistas, é necessário muito mais do que a simples denúncia. Não basta o esforço para tratar a violência contra a mulher como um caso de polícia e de justiça. Cresce também a necessidade de que o país encare o assunto como uma questão de educação e saúde.
Violência doméstica
Neste momento, a principal movimentação do governo federal vem do Ministério da Saúde. Pela primeira vez, ele está elaborando um plano nacional de assistência à mulher vítima de violência doméstica e sexual, que será divulgado no começo do ano 2000.
A iniciativa visa cobrir uma lacuna importante. "O espaço doméstico apresenta mais risco para a mulher do que o ambiente público", diz a sanitarista Elcylene Leocádio, coordenadora da Câmara Temática sobre Violência Doméstica e Sexual, do ministério. Em outras palavras, a violência doméstica é hoje uma relevante causa de morte e doença entre as brasileiras, de todas as classes sociais.
As conseqüências para a saúde não se limitam às fraturas, hematomas e ferimentos. "A mulher repetidamente humilhada, xingada e desvalorizada pode desenvolver ansiedade, hipertensão, depressão, insônia, partir para o uso de drogas e até mesmo tentar o suicídio", diz Elcylene.
Para a médica, cabe ao setor da saúde aprender a reconhecer as pacientes que estão correndo esse risco. "Há mulheres que vão muitas vezes ao posto de saúde, cada hora com uma queixa. Nunca melhoram, e o profissional não questiona o que está por trás", relata Lilia Schraiber, que coordena o projeto Violência, Gênero e Práticas de Saúde, no Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP). Há casos em que a mulher se apresenta no pronto-socorro ferida, sem dizer o que houve, e o profissional simplesmente não pergunta, nem pensa na hipótese de violência.
Um levantamento realizado pela equipe do projeto entre 322 usuárias do Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa, da USP, revela o quanto a violência faz parte do universo das pacientes. Quase 60% delas apontaram pelo menos um episódio de violência física ou sexual na vida, e 15% revelaram pelo menos uma ocorrência em 1998. Um pouco mais de 35% indicaram o agressor como uma pessoa conhecida, e quase 33% como sendo o próprio companheiro. Contraditoriamente, porém, 73% dessas mesmas mulheres, no final da pesquisa, disseram que nunca sofreram violência. "Há uma dificuldade de percepção e expressão do que é violação de direitos", explica Ana Flávia Pires, pesquisadora do projeto. "E nos raros casos em que a mulher se queixa, os profissionais em geral se omitem", continua.
Segundo ela, ao serem questionados sobre sua postura, os profissionais alegam que não têm tempo para lidar com algo tão complexo, que não é da sua competência, ou, ainda, que não há nada que possam fazer.
Ana Flávia discorda. Eles podem agir, sim, e muito. A experiência no Centro de Saúde Escola revela que, por meio de sensibilização e capacitação da equipe, a rede de saúde pode identificar e acolher as mulheres em situação de violência, fazendo o encaminhamento ao serviço de apoio psicológico, social, jurídico ou psiquiátrico, pois a solução nem sempre é a delegacia. Segundo Lilia, o serviço de saúde ocupa uma posição privilegiada para essas ações, pois está associado à qualidade de vida e se mantém em contato com toda a família.
"Um atendimento solidário e acolhedor já é uma conquista", completa a médica Fátima Oliveira, do Conselho Diretor da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, em Belo Horizonte. "Nunca vi uma mulher agredida entrar gritando no hospital. Ela chega acuada e precisa de apoio para se fortalecer." Fátima acredita que médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos podem contribuir decisivamente para a quebra do ciclo de violência, pois muitas vezes o hospital é o primeiro – ou o único – local público procurado pela mulher.
No final de 1998, Fátima coordenou a elaboração de um trabalho pioneiro, as Considerações e Orientações para Atendimento à Mulher em Situação de Violência na Rede Pública de Saúde. O envolvimento dos serviços de saúde, diz ela, terá grande repercussão na vida das mulheres a curto prazo. "Basta observar que há apenas 225 delegacias da mulher em todo o país, mas existe pelo menos um posto de saúde por município, o que significa uma rede de mais de 5 mil postos."
Norma polêmica
Os serviços de saúde podem desempenhar papel importante não só em relação às agressões domésticas, mas também quando se trata de abuso sexual e estupro. Nesses casos, evidentemente, os riscos para a saúde também são muito graves: distúrbios de sexualidade, doenças sexualmente transmissíveis, além da gravidez indesejada.
Mais uma vez, no entanto, todos concordam que os serviços de saúde não estão preparados para lidar com esse tipo de problema. Por isso, o Ministério da Saúde começou a distribuir em setembro a Norma Técnica para Prevenção e Tratamento da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, com a finalidade de apoiar estados e municípios na organização de sua rede de assistência.
A norma, pioneira, prevê que as vítimas recebam serviços como atendimento emergencial (que implica coleta de material para identificação do agressor, anticoncepção de emergência e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis), acompanhamento psicológico, cuidados médicos e interrupção da gravidez indesejada decorrente de estupro. "Nosso objetivo é dar respaldo à ação dos profissionais, concretizando as conquistas já garantidas em lei", diz Elcylene, do ministério, numa clara referência à polêmica despertada pela iniciativa, que recebeu críticas no Congresso por ser considerada um incentivo ao aborto.
A lei não basta
A interrupção da gravidez em caso de estupro está prevista no Código Penal desde sua promulgação em 1940, mas o primeiro serviço público organizado para oferecer esse atendimento surgiu quase 50 anos depois, em 1989, no Hospital Municipal do Jabaquara, em São Paulo. Hoje, são 25 serviços implantados pelo país. "Fica claro que não basta a lei, os gestores e profissionais de saúde precisam saber o que e como fazer. Por isso, o maior impulso para os novos serviços veio com a definição de critérios e procedimentos técnicos", avalia o ginecologista Jorge Andalaft Neto, que implantou o Programa de Aborto Legal do Hospital Jabaquara e preside a Comissão Nacional Especializada em Violência Sexual e Interrupção Legal da Gestação da Febrasgo (Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia).
Não admitido por aqueles que se opõem radicalmente ao aborto, o serviço também foi contestado pelos que acreditavam que incentivaria esse tipo de operação de forma indiscriminada. "Isso não ocorreu", diz Andalaft. Em dez anos de atendimento, foram 150 casos. "A interrupção da gravidez", esclarece o médico, "é apenas a intervenção mais extrema de um amplo tratamento que deve ser assegurado à mulher que sofre violência sexual."
Polêmica à parte, o benefício de um bom atendimento mostra-se decisivo. "As mulheres expressam uma gratidão enorme", conta Andalaft. "O que nos faz ter a certeza de que um lugar onde sejam acolhidas, cuidadas e acompanhadas é essencial para que se recuperem da violência."
"Precisamos dar essa resposta às mulheres, e elas precisam saber que têm direito ao atendimento", reforça o ginecologista Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual do Hospital Pérola Byington, centro de referência de saúde da mulher do governo estadual de São Paulo, pioneiro no mundo na prevenção de contaminação pelo HIV em caso de estupro.
Desde 94, foram quase 1,3 mil mulheres e adolescentes atendidas no ambulatório. Sistematicamente, perguntou-se às pacientes se já haviam passado por outro profissional de saúde e verificou-se que menos de 4% das atendidas receberam tratamento de contracepção de emergência (remédios para evitar a gravidez indesejada, que só podem ser ministrados até 72 horas após o estupro) e menos de 3%, medicamentos para curar doenças sexualmente transmissíveis. "O sistema de saúde ainda acha que violência sexual é caso de antiinflamatório e calmante", adverte Drezett.
O desconhecimento técnico, segundo o ginecologista, associa-se ao bloqueio cultural que discrimina e estigmatiza a paciente. "A questão cultural enraizada é muito forte", completa Andalaft, do Hospital Jabaquara. "Ainda hoje, a mulher que precisa de atendimento e relata sua história recebe um olhar de desconfiança dos médicos em geral." Ele conta a cena de uma menina de 15 anos que havia sido estuprada e foi assim questionada pelo profissional que a atendia: "Mas que roupa a senhora estava usando? A senhora não conhecia mesmo o rapaz?"
Questão de educação
Considerar a violência contra a mulher como crime é historicamente recente, lembra a socióloga Jacqueline Pitanguy, diretora do Cepia (Centro de Estudos, Pesquisas, Informação e Ação), no Rio de Janeiro. "E para entender tantos séculos de invisibilidade da violência, temos que indagar como a sociedade vê a mulher nas esferas social, familiar e política", diz ela. Até 1932, a brasileira não podia votar; até 1970, não havia divórcio no país e até 1988 apenas o homem era considerado o chefe da família. São conquistas recentes e, apesar delas, observa a socióloga, ainda persiste um tratamento desigual e desrespeitoso.
Para piorar a situação, é bom lembrar que, além da violência específica contra as mulheres, também sobram para elas agressões motivadas pela cultura generalizada de violência, que afeta a todos. "Na própria família, ela é sistêmica e atravessa gerações", diz Roseane Monteiro Corrêa, coordenadora do Pacto Comunitário contra Violência Intrafamiliar, promovido pelo Ministério da Justiça em parceria com a ONU e mais de 200 entidades durante 1998. Em sua opinião, para enfrentar o problema de forma eficaz deve haver uma atuação que envolva todos os atores da família: mulher, idoso, criança, adolescente e até mesmo o agressor.
Nesse contexto, além de recentes iniciativas que incluem também o homem na discussão, é importante o papel que a educação pode desempenhar na mudança de valores e posturas. "A discussão de novas relações entre homens e mulheres, meninos e meninas, deve começar na escola", destaca Márcia Larangeira, coordenadora-geral da organização não-governamental SOS Corpo, do Recife. Ela também enfatiza a importância do investimento em ações preventivas e educativas dirigidas às próprias mulheres (ver box na página ao lado), esclarecendo quais são seus direitos e como podem romper a rotina da violência.
Uma iniciativa interessante veio de Porto Alegre. Em 1993, a Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero lançou a idéia de formação de Promotoras Legais Populares, um projeto que agora está sendo multiplicado pelo Ministério da Justiça em outros seis estados.
No Rio Grande do Sul, mais de 250 líderes comunitárias já passaram pelo curso de direitos humanos, criando postos do Serviço de Informação à Mulher. Por meio de plantões de atendimento na própria comunidade, elas orientam outras mulheres sobre a violação de direitos e o acesso à justiça.
"Certamente dessa forma incidimos na prevenção da violência", avalia Virgínia Feix, coordenadora executiva da entidade. "As participantes do curso se transformam e passam a ser uma presença afirmativa de que a mulher pode ocupar outro espaço."
Mas esforços educacionais como esse, mesmo que bem-sucedidos, demandam tempo. Enquanto isso, persiste para muitas mulheres a situação intolerável de conviver diariamente com o perigo. Nesse cenário, as organizações de mulheres esperam que o governo demonstre empenho mais efetivo em seu compromisso de construir casas-abrigos, onde as mulheres que correm risco de vida encontrariam um lugar temporário para viver. Até hoje, informa Guacira Cesar de Oliveira, da organização civil Cfêmea, em Brasília, só foram criadas sete instituições desse tipo em todo o país – a maioria no ano passado, graças a uma emenda no Orçamento Geral da União. "Ao ser votado o orçamento deste ano, mais uma vez as casas-abrigos não foram previstas. Conseguimos R$ 8 milhões, mas até setembro só 10% foi liberado e nenhuma casa foi construída", lamenta Guacira.
Silêncio rompido
"Somos chamadas de mal-amadas quando contrariamos os homens. De atrevidas por não termos medo e nos apresentarmos em todos os lugares. E de abusadas porque queremos mudar os valores e pensamentos das pessoas." É assim que o grupo teatral Mal-Amadas, Atrevidas e Abusadas explica seu nome, que causa tanta inquietação.
A história do grupo começou em 92, na cidade de Diadema, em São Paulo, em um projeto de apoio a mulheres vítimas de violência. "Através da arte, busquei resgatar a auto-estima das mulheres, construir sua identidade e promover a descoberta de suas capacidades", diz a psicodramatista Marta Baião, criadora e diretora do grupo.
"O teatro me fez crescer, conhecer meus direitos e meu valor", conta a paraibana Josefa da Costa Correia, que aos 63 anos é uma das cinco atrizes do grupo. Vivia dentro de casa, doente, nem andava direito. Em suas palavras, "uma violência contra mim mesma". "Agora é uma das mais atrevidas", brinca Valdelina Odete dos Santos, 66 anos, seis filhos e mais de 30 anos de um casamento sofrido.
"Não apanhava, pois, a primeira vez que ele tentou bater, reagi." Assim mesmo, dona Josefa conhece de perto a violência, vivida por sua mãe e também por duas filhas. "Mas elas já deixaram seus maridos, pois sabem que não precisam viver assim."
A atriz Neusa de Brito também fez essa descoberta à custa de muito sofrimento. "Me casei com 24 anos. Eu trabalhava, mas meu marido ficava o tempo todo me controlando. Eu achava que era sinal de amor. Um dia ele me bateu, eu denunciei. Da segunda vez, minha mãe me levou para o grupo de apoio." Até então, Neusa achava que não havia muito o que fazer: "Minha mãe tinha passado por isso, minha avó também, minha irmã..." No grupo, percebeu que a iniciativa de mudança devia ser sua, pois quem estava sofrendo era ela. Hoje continua vivendo com o marido, mas a relação mudou. "Ele sabe que não vou permitir. E tenho certeza de que meus filhos têm esse exemplo e que a história não vai se repetir."
É sobre tudo isso que elas falam nos palcos, nas ruas e praças, com muito humor, capricho estético e rigor de texto. Em todas as peças, incitam o público. "Os homens chegam negando que são daquele jeito", conta Marta, "e as mulheres muitas vezes vêm pedir ajuda." A cada espetáculo, rompe-se o silêncio.
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