Postado em 28/07/2009
Fim do mundo
por Reinaldo Moraes
Decepcionadíssima, decepcionadíssima estou com a igreja – tia Urânia entrou a dizer a quem quisesse ouvi-la, naquela sintaxe “elevada” que ela empostava para dizer certas coisas, em especial as do espírito e da fé, mas podendo ser também as do dinheiro e as referentes à passagem desta para melhor, que outros chamam de morte, mas não ela, que evitava essa palavra com o mesmo pavor com que procurava evitar a morte em si.
Logo todos em São Telmo do Embaço de Cima já sabiam disso, tanto ela tocava nessa tecla por conta de qualquer assunto: “Não é mais a mesma essa Igreja. Não são mais os mesmos os padres. Nem os bispos.
Todos liberais, folgazões, comunistas”. E dava de ombros quando lhe diziam que não estava mais na moda vituperar contra os “comunistas”, que praticamente nem existiam mais – não no formato tradicional, pelo menos, aquela coisa de stalinistas, trotskistas, maoistas, albaneses, castristas, guevaristas e tudo mais –, e que o próprio Presidente da República tinha sido em outros tempos um tipo de comunista, filiado ao partido que também fora “protocomunista”, como o chamava o farmacêutico e vereador praticamente vitalício do município de São Telmo, o seu Idalino, amigo de titia, “homem direito e de direita”, como ele se gabava, viúvo para sempre fiel à memória da extinta esposa, além de congregado mariano, como a própria tia Urânia.
– O fim do mundo, por exemplo, não chega nunca, nunca – bramia a velha, rouca de velhice e ódio contra o mundo. Ou melhor: contra o fato dessa “porquera de mundo” nunca se acabar como anunciavam as escrituras. O fim do mundo para ela era a cereja do bolo da religião.
Coisas de velha, sussurravam todos. Mas nem era tão velha a tia Urânia. Cinquenta e cinco, no máximo, achava minha mãe, bem mais de sessenta, lhe dava meu pai. Mas todos concordavam em que ela era uma anciã imemorial. Tinha nascido com alma centenária. Para ela, a velhice era a virtude maior, a condição suprema do ser humano. O fato de temer tanto a morte e ao mesmo tempo ansiar pelo Juízo Final parecia a todos um paradoxo, sintoma, talvez, de algum parafuso solto em sua cachola de velha. Mas eu sempre achei que tia Urânia tinha medo é de morrer sozinha. Se todos fossem no mesmo barco que ela para o além, se não sobrasse ninguém por aqui pra falar mal dela pelas costas – o que, de qualquer maneira, todos faziam, com ela viva mesmo –, nem para viver os prazeres que ela nunca se permitiu usufruir, nem a vida lhe ofereceu com muita insistência, aí sim acharia a morte aceitável, e até doce, quiçá sublime.
A suposta loucura em progresso da tia Urânia parecia estabilizada, já prestes a adentrar o folclore local, como a do filho do dr. Demóstenes, o Arlindo, que tinha umas ausências e uns surtos algo extravagantes, quando chegava a tirar a roupa, e da Siá Mindela, que passava o dia de lá pra cá na cidade falando sozinha com entidades invisíveis, a exigir providência contra os desmandos das autoridades, os excessos da juventude e os caprichos do clima de um modo geral.
Mas naquela manhã de domingo de Pentecostes, na Sé, toda a cidade-que-conta dentro da igreja ?acabando de ouvir o sermão do padre polaco, tia Urânia assomou o púlpito, puxou o sacerdote pela gola da batina, arrancando-o do proscênio do palquinho suspenso, e soltou a garganta num discurso alucinado, como se perorasse para legiões de fiéis a perder de vista nas colinas, montanhas, pradarias, desertos e oceanos do imenso mundo de Deus. Foi aí que eu vi de fato, não só um, mas todos os parafusos da velha se soltarem de sua cabeça e caírem no chão, onde rolaram pra dentro do ralo fundo da piração. Como se trespassada por um raio divino, o peito dela fremia, seu corpo todo tremia, o gogó bramia e ela toda tremia, num clamor insano:
– Disse o profeta: “Foi visto ainda outro sinal no céu: um grande dragão vermelho de sete cabeças, e, em cada cabeça, sete diademas. Tinha o dragão uma cauda potente que arrastou a terça parte das estrelas do céu, e precipitou-as na terra, com grande estrugido e mortandade!” Apocalipse, capítulo 12, versículo segundo. Estou a quase cinquenta anos ouvindo padre, monge, frei, bispo, cardeal e até papa repetindo isso, e até agora, nada. Naaadaaa!!! Não apareceu nenhum dragão vermelho, nem azul, amarelo, nada, nem muito menos com sete cabeças. Nem duas. Nem uma! Cadê Tu, Deus, que não respondes!?
O Padre Estanislau, que, em quarenta anos no Brasil, de Brasil só tinha pego o vermelhão da cara e um português truncado, avultou por trás dela, malagueta irada:
– A senhôrra querria o quê, dona Urrânia?! – ele soltou, naqueles erres enrolados dele. –Verr dragon vermelho arrrastando estrelash do céo e xogando tudas no cabeça da chente?!
– Lógico! – explodiu tia Urânia, dando um empurrão na barriga do velho polaco que o fez descambar meio corpo pra fora do parapeito semicircular do púlpito.
Enquanto o povo debaixo do púlpito debandava pros lados, evitando levar um padraço na cabeça, tia Urânia perorava:
– A humanidade clama pelo apocalipse! Queremos o prometido e jurado final juízo, pelo qual tanta fé empenhamos! O fim do mundo, glorioso e redentor, é o que queremos, nada menos. E qué d’ele, Déus méum?
–entoava ela numa espécie de latim de seu uso próprio. Só ouvimos do Criador insensível seu silêncio estéril.
Ah, fiéis concidadãos! Só Deus sabe o que eu rezei pra ter vida e olhos e lucidez nesse último e derradeiro dia de modo a apreciar o espetáculo flamejante. Quero, queremos todos ver o fim do mundo chegar e todo mundo arder na mesma fogueira purificadora, no mesmo segundo fatal! E que seja já!!
“Sejajá?”, repetiram-se todos para si mesmos, deixando abertas de pavor paralisante as bocas bobas de beiços trêmulos. Na cabeça de todos ecoava a pergunta que não queeria ca-calar: Teria aquela velha doida o poder de conjurar um holocausto global para todos os povos do mundo naquele domingo de verão abafado à espera de uma chuva que não vinha há muitos dias, às margens de um Rio Grande esturricando na seca, não longe da prejudicada represa de Maribondo, Minas Gerais, Brasil?
– Sim, o holocausto agora! – cobrava tia Urânia em sua insânia aos senhores deuses Pai e Filho, e a todos os santos espíritos e anjos e afins. – O fim dos tempos, ó altíssimos, cobro-vos, neste momento solene em que vos falo e me ouvem, mor de nos sobrevir a nós, findo o mundo, o início resplendente de uma eternidade de luzes na paz do Senhor para os bons, e a perenidade das chamas penitenciárias para os maus que corrompem a vida alheia e dissipam a sua própria que Deus lhes deu em pecados e infâmias!
Seguiu-se um silêncio dominical, matizado de aleatórias manchas acústicas vindas do mundo eletroacústico lá fora. Um choro de mulher eclodiu entre os fiéis, metade pelo menos dos quais tinha se prostrado de joelhos, posição que lhes pareceu mais apropriada para dar entrada na eternidade luminosa ou, pelo menos, para tentar negociar o adiamento ?ad infinitum das chamas infernais. Uma senhora gorda aproveitou o ensejo para desmaiar de comprido no banco que dividia com outros tiritantes fiéis.
Mesmo o padre, que afinal não tinha caído do púlpito, olhava inquieto em volta à espera do primeiro ataque súbito e traiçoeiro das trombetas do Juízo Final, seu vermelhão facial luzidio de suor. Mas o apocalipse não veio.
Nem a tempestade que todos esperavam, com ou sem Juízo Final. Caiu foi uma chuvinha fina, pontuada por longínquas trovoadas, que cruzou o meio-dia e entrou pela tarde até a noite, trazendo frio, pessimismo, irritação e o ideal pretexto pra ninguém arredar pé da frente da televisão ou da garrafa de cachaça, todo mundo comentando, a intervalos, o despautério da velha Urânia, que franqueara de vez e de público os limites da sanidade mental.
Na hora lá, tia Urânia foi retirada do púlpito pelo sacristão, já que o padre já tinha descido as escadinhas excomungando em polonês aquela apóstata psicopata de uma figa. A partir daí, titia deu de esquecer cada vez mais as coisas, as pessoas, Deus e o próprio fim do mundo. Morreu uns dois anos depois disso de pneumonia derivada de uma gripe mal-curada com mezinhas e orações inócuas. Foi enterrada lá mesmo em São Telmo, que Deus a tenha até o Juízo Final, amém.