Postado em 01/11/1999
Há cem anos nascia Flávio de Carvalho, o revolucionário romântico
CECÍLIA PRADA
A história da arte dos diversos países teve sempre a presença de algumas personalidades que são os ditos "ossos do mundo". Os ossos duros de roer, catalisadores de controvérsias e fatores de mudança – pessoas cuja vida, cujas ações, se revestem sempre de desafio, de exagero, de eficácia. Ou que são, como dizia o escritor francês Romain Roland, "pedras colocadas no mundo para impedir que ele se desmanche em mingau".
Para a arte brasileira do século 20, uma dessas pessoas foi Flávio de Resende Carvalho – pintor, escultor, arquiteto, cenógrafo, figurinista, escritor e teatrólogo, personalidade multifacetada, das mais marcantes no cenário brasileiro, de final da década de 20 até o ano de sua morte, 1973. Extremamente consciente do papel histórico que desempenhava, a começar pela discussão estético-sociológica dos conceitos de arte, expressa num livro intitulado, justamente, Os ossos do mundo. Definido pelo historiador Paulo Mendes de Almeida como "um grande suscitador de idéias, um grande chacoalhador... que sempre viveu sob o signo da encrenca, homem polêmico, contraditante, opositor".
E considerado por ninguém menos do que o célebre Le Corbusier "um revolucionário romântico", que merece ser lembrado de maneira especial por nós, neste ano do centenário do seu nascimento.
O engenheiro maluco
Dotado do mesmo espírito irreverente de seu coetâneo Oswald de Andrade, como este também Flávio é lembrado pelas intervenções (precursoras dos happenings dos anos 60, nos Estados Unidos) que realizou tanto no campo das artes como no do comportamento, para provocar reflexão e afrontar a sociedade paulistana.
A imagem "daquele engenheiro maluco" ligou-se particularmente a algumas experiências iconoclastas. A de número 2, de 1931, que registrou inclusive num pequeno livro, foi atravessar uma procissão de Corpus Christi, no centro da cidade, andando no sentido contrário, teimosamente de boné na cabeça e flertando com as Filhas de Maria. A indignação dos fiéis foi tão grande que gritos de "Prende! Mata! Lincha!" saíram das mesmas bocas que no momento anterior entoavam loas ao Santíssimo. Perseguido, Flávio teve de refugiar-se na cozinha da Leiteria Campo Belo, de onde foi retirado pela polícia.
Quanto à "Experiência número 1", pouco se sabe. A de número 3 foi encenada com dois amigos: numa exposição de móveis que se realizava no grande saguão do cinema Odeon, os três foram descobertos dormindo numa cama de casal, de onde se recusaram a ser desalojados. Chamada a polícia, resistiram à prisão, provocando aplausos entusiásticos da multidão.
Não é difícil perceber que, naqueles anos repressivos em que a ditadura Vargas se instalava, essas "experiências", que pareciam meras traquinadas de rapazes, assumiam aspectos de protesto político. Seus happenings, no correr dos anos, mostraram-se cada vez mais compromissados com a profundidade de sua conceituação artística – o mais importante deles, o lançamento, em 1956, do seu "traje tropical" (saiote e blusão), por pitoresco que pareça, representou, na realidade, o resultado de um estudo de vários anos.
O temperamento briguento e original valeu-lhe, até o fim da vida, hostilidade, incompreensão, exposições fechadas pela polícia, controvérsias no próprio meio artístico. Mesmo porque, numa época de engajamento obrigatório, colocou-se sempre acima de partidos e ideologias. Teve a coragem de dizer, após uma viagem à União Soviética: "Na Rússia a única coisa que presta é o Ermitage".
O mesmo espírito o faria recusar modas, correntes estéticas. Opôs-se ao concretismo e a todos os ismos. Tinha como lema: "O verdadeiro artista é um líder que impõe sua opinião". Simultaneamente, afrontava cada vez mais a sociedade com a violência de paixões vivi- das com suas sucessivas "noivas" – como a atriz Cacilda Becker, a cantora Maria Kareska, a condessa Inge de Beausacq, entre muitas outras. Proveniente de família tradicional e católica, bisneto do barão de Cajuru, nunca cedeu às convenções. Não se casou, mas teve duas filhas naturais. E, no dizer do seu grande biógrafo J. Toledo, a partir de 1962 teria passado a viver maritalmente com uma dessas filhas, Sonia Maria, de apenas 18 anos.
O perdedor de concursos
Criado na França e na Inglaterra, onde se formou em arquitetura, ao voltar ao Brasil, em 1924, Flávio vinha imbuído dos princípios inovadores que desde a Bauhaus, fundada em 1919, propunham a funcionalidade como base da criação arquitetônica. Sua rigorosa formação técnica e a seriedade com que se entregava ao trabalho valeram-lhe o convite para integrar, como calculista, a equipe do grande Ramos de Azevedo. Mas Flávio queria voar solo e muito mais alto, e já começava a desenvolver projetos arrojados, inteiramente diferentes de tudo o que aqui se fazia.
Em 1927, num concurso para a futura sede do governo paulista, inscreveu um projeto de palácio-fortaleza que chocou a comissão julgadora. Chamou-o de "Eficácia", definindo-o como "uma granada que se lança sobre a rotina, explodindo por sobre os lugares-comuns da arquitetura clássica". No entanto, nada mais funcional, na visão do artista, pois na Revolução de 1924, pela falta de estrutura de defesa do palácio do governo, este fora tomado pelos rebeldes, obrigando o presidente do estado, Carlos de Campos, a fugir.
Reconhecido hoje como o verdadeiro precursor da arquitetura de imaginação criadora no Brasil, Flávio foi definido pelo crítico Walter Zanini como "um perdedor de concursos". Nos inúmeros em que se inscreveu, perdeu sempre – no máximo obteve um segundo lugar, ou menção honrosa. Restam os seus projetos, que abrangem todos os setores arquitetônicos, dos monumentos públicos, ministérios e palácios, a residências particulares, museus, um matadouro, faculdades e fundações culturais – testemunhos da grande perda artística sofrida pelo país. Somente dois deles seriam executados, com recursos próprios, na década de 30: o da casa da sua fazenda em Valinhos (SP) e o de um grupo de casas levantado na esquina da Rua Ministro Rocha Azevedo com Alameda Lorena, na capital paulista – das quais algumas, inteiramente desfiguradas, chegaram aos nossos dias.
Um fauvista no trópico
Como artista plástico, Flávio de Carvalho marcou sua presença por uma riquíssima e constante produção, que inclui de desenhos primorosos, realizados a tinta, nanquim ou carvão, a aquarelas e pastéis, esculturas, obras de artes aplicadas, e principalmente quadros a óleo onde as pinceladas vigorosas e as cores vivas traem a influência expressionista – mais caracteristicamente fauvista. Famosos e espalhados pelos museus mais importantes, tanto no Brasil como no exterior – como os de Nova York, Paris, Roma e Moscou –, são os ousados retratos que fez de personalidades famosas. Entre eles destacam-se o auto-retrato de 1965, que está no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, e o retrato de Mário de Andrade, o preferido do poeta, que costumava dizer: "Ele conseguiu mostrar o lado tenebroso da minha pessoa".
Mas o choque do público e a violência organizada, inclusive com repressão policial, cercaram quase todas as suas exposições. Em 1933 fundou o Teatro da Experiência, de brevíssima duração. Escreveu o texto, criou os cenários e os figurinos, e com Oswaldo Sampaio encenou uma peça, O bailado do deus morto – a provocação começava pelo título. E não deu outra coisa: o local foi invadido pela polícia mas curiosamente o espetáculo foi continuado no Gabinete de Investigações, para uma audiência de delegados, guardas e outros policiais. Inutilmente Flávio lutou durante dez dias, nas dependências policiais, para levantar a interdição. A conseqüência foi o fechamento, durante meses, não somente do teatro mas do próprio Clube dos Artistas Modernos (CAM) – que fora fundado por ele em 1932.
Em 1934 o mesmo aconteceria, mas com resultado diferente, em sua primeira mostra individual, numa galeria da Rua Barão de Itapetininga. A provocação do artista se revestia, como sempre, de características de happening: expedidos convites para toda a sociedade, na inauguração os convidados depararam com uma sala às escuras e já estavam duvidando do evento quando subitamente todas as luzes se acenderam, revelando para uma platéia de assustados cavalheiros e senhoras das melhores famílias o que foi logo designado como "mostra pornográfica" – isto é, uma centena de obras que incluíam magníficos desenhos de nus femininos e de crianças que riam e faziam ginástica na barriga das mães.
A zelosa força policial de plantão cumpriu logo sua missão, fechando a mostra e apreendendo cinco trabalhos. Com o auxílio do crítico amigo, Quirino da Silva, Flávio improvisou outro protesto – no dia seguinte todas as estátuas de São Paulo amanheceram vestindo camisolas brancas. O novo happening rendeu bons resultados – a mostra foi reaberta alguns dias mais tarde, e a afluência do público foi tal que provocou interrupção do tráfego na Barão de Itapetininga.
Mas o maior choque causado pelo artista foi o da Série Trágica – nove desenhos de 1947 em que registrou a agonia da própria mãe, vítima de câncer. Nessa ocasião, Assis Chateaubriand chamou-o de "pintor maldito". Interrogado mais tarde sobre os motivos que o levaram a realizar esses desenhos, Flávio disse: "Eu não desejava esquecer o seu grande sofrimento".
Dos seus trabalhos como escultor, somente um foi acolhido pela cidade – e por brevíssimo tempo: o Monumento a García Lorca, inaugurado em 1968, no ano seguinte foi destruído pelos vândalos fascistas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Mas foi reconstruído em 1979 pelos alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU).
Em 1957, ao ser recusado pelo júri da IV Bienal – curiosamente no mesmo ano em que o MoMA de Nova York adquiria três obras suas – Flávio organizou uma mostra paralela de protesto, "Doze artistas de São Paulo". Dez anos mais tarde, entretanto, o reconhecimento de sua genialidade já se impunha – na IX Bienal, em 67, obteve um privilégio jamais concedido antes a um artista brasileiro, e até hoje não repetido – a premiação na categoria internacional. E nas bienais de 1963 e de 1971, foi honrado com salas especiais.
Ativo até o fim, planejava em 1973 realizar um filme sobre a própria vida, cujo roteiro chegou a esboçar com o amigo artista e jornalista J. Toledo, mas o trabalho foi deixado a meio pela sua morte. O imenso material foi usado por Toledo para um alentado livro de 900 páginas, O comedor de emoções, publicado em 1994 (Brasiliense/Unicamp) – um retrato completo desse artista, motivo de orgulho desta Paulicéia com a qual, nas palavras de seu biógrafo, "o velho fauno cosmopolita parecia estabelecer uma relação de intimidade, como se a cidade e ele mantivessem um pecaminoso caso amoroso".
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