Postado em 01/11/1999
Segundo a ONU, São José da Tapera é a cidade mais pobre do Brasil
LEONARDO SAKAMOTO
Maria deu à luz sob o olhar insuspeito de uma vaca e um jegue – figurantes sempre presentes nessas ocasiões há pelo menos 2 mil anos. José acompanhava a cena de perto, amparado pelas paredes de barro e um cigarro de palha. A fumaça esbranquiçada fugia pela porta e fundia-se à paisagem queimada de sol. Ao contrário da outra criança – do outro José com a outra Maria – não recebeu reis, muito menos presentes.
Os anos passaram e ela cismou em não crescer. Talvez por causa da água e da comida. Ou da falta de ambas. Certo mesmo é que adoeceu. O pai, desesperado, correu de um lado para outro em busca de tratamento. Diarréia, disenteria, olhar longo, profundo, perdido. Os médicos fizeram o que podiam e mandaram-na de volta para casa. Naquela tarde, ela rastejou pelo chão da sala, agonizando. Maria avisou ao marido que a criança estava indo embora. Então José, resignado, foi à cidade fazer a única coisa que estava ao seu alcance: arranjar um pequeno caixão. Quando voltou, a filha já estava morta.
Essa cena se repetiria mais quatro vezes na vida da família Bezerra. Assim como eles, muitos Josés e muitas Marias têm enterrado seus filhos pelo nordeste brasileiro, castigado com uma das piores secas das últimas décadas. Essa história tem sido uma constante nos anos recentes, no município de São José da Tapera, sertão das Alagoas.
No ano passado, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou o ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de quase 5 mil municípios do país. São José aparece em último lugar, com uma taxa de mortalidade infantil de 147,94 mortes por mil nascidos. Para se ter uma idéia do que é isso, Angola, país há quase 25 anos em guerra civil, coberto por 9 milhões de minas terrestres e que foi recentemente considerado pela ONU o pior lugar para uma criança viver em todo o mundo, apresenta uma taxa não muito pior: 170 por mil.
Quem visita o centro urbano de São José da Tapera não imagina que essa é uma das cidades mais pobres do Brasil. Banco, farmácias, mercados, feira livre. Uma bela praça, parque infantil, lanchonete. Porém, lá vivem menos de 20% dos quase 30 mil moradores. O resto está espalhado em aproximadamente 60 povoados, nesse que é o segundo maior município do estado, em área. A família Bezerra mora em um desses vilarejos, Furnas. Na verdade, um amontoado de pequenos sítios onde dezenas de casas de taipa e madeira salpicam a paisagem.
Rio seco
O único braço de água que atravessa Furnas e região chama-se riacho Grande: largo, sinuoso, longo... e seco. Assim como em todo o sertão, um rio temporário que existe quando há chuvas, ou seja, quase nunca. A maioria das comunidades não dispõe de poços artesianos e é obrigada a cavar cacimbas no leito seco para conseguir alguma coisa. Por azar, devido a depósitos minerais, a água, barrenta, sai salobra da terra.
Até pouco tempo atrás, essa água era utilizada para beber, lavar roupa, fazer comida e alimentar o gado. Problemas de saúde não faltavam, principalmente entre as crianças, com o organismo já fraco devido à fome. Em esquema de emergência, o exército, junto com as autoridades locais, tem levado caminhões-pipas aos locais mais atingidos pela seca. No estado de Pernambuco, trens partem carregados de água em direção ao interior para tentar amenizar a situação.
A Visão Mundial, entidade internacional de assistência, construiu nessa região do município 35 cisternas, reservatórios de alvenaria com capacidade para 10 mil litros. Várias famílias têm então que viver com essa quantidade por meses a fio, até que o próximo carregamento chegue. Teodoro Félix da Costa e sua mulher, Maria Rita, foram os primeiros a receber a cisterna em sua comunidade. "Eu buscava água salgada até três meses atrás. Criança já chegou a morrer por causa dela", conta Teodoro. E ele sabe de perto o que é isso, uma vez que perdeu quatro filhos – todos com menos de um ano de idade.
Reservada, porém, quase exclusivamente à subsistência, essa água não é suficiente para a agricultura. O céu ainda é a única fonte de irrigação para essa gente.
Os produtos mais cultivados são o feijão e o milho. Cena comum são os milharais que permanecem baixinhos, com espigas nanicas ainda em fase de crescimento. Quem conseguiu tirar algo do roçado, por pouco que seja, está satisfeito. Há famílias que perderam tudo e agora esperam a divina providência ou a ajuda do governo.
Maria Aparecida Corrêa e seu marido, Adeído, são um exemplo. Os dois e mais sete filhos dividem uma casa feita de pau-a-pique, de um único cômodo, com uma só cama. A cozinha se resume a uns tijolos no lado de fora da casa. Nem seria preciso muito mais, pois o feijão, dieta única, é pouco. Quase todas as famílias comem feijão no almoço, feijão no jantar e caldo de feijão no café da manhã. Quando conseguem, acrescentam um pedaço de carne e alguma farinha. Mas em certos lares, como o de Maria Aparecida, mesmo o feijão três vezes por dia é raridade. Um indicador fiel são os filhos. O menor, de um ano, pesa cinco quilos. A desnutrição também ataca outra filha do casal, com dois anos, de olhos fundos, cabeça grande e bracinhos finos.
Três contos por dia
Com o roçado perdido, Adeído está procurando serviço. Emprego não há, tanto no comércio do centro urbano quanto na prefeitura, que já mantém muito mais gente do que poderia. De vez em quando, aparece uma vaga para trabalhar em alguma fazenda, como a Jequiá, cortando palma (uma espécie de cacto que serve de ração para o gado), fazendo cerca ou processando palha de milho. "Só que eles pagam três ‘contos secos’ (R$ 3) por um dia inteiro de serviço, e os patrões não dão nem a água para beber. E, no final do dia, você fica tossindo pó", reclama José Bezerra. Adeído estava disposto e bem que tentou, mas ainda não havia conseguido vaga para ganhar os três "contos secos".
Como em Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, há muitas Marias. O marido da irmã de Maria Aparecida, Maria de Lurdes, está trabalhando num desses bicos. Enquanto Antônio passa o dia fora, ela fica em casa cuidando dos oito filhos. Bem, eram nove até meados de agosto, quando o caçula morreu. Magro, com as costelas tentando sair para fora da pele. Talvez, se o pseudo-emprego houvesse chegado antes, a história tivesse sido diferente.
A história também poderia ter sido diferente se a entrega das cestas básicas concedidas pelo governo federal não tivesse sofrido um atraso em todo o país. Da mesma forma, a verba destinada às frentes de trabalho não aparece em São José da Tapera há muito tempo. De acordo com Antônio Benedito Júlio, dono de um sítio e um dos beneficiados, o valor do auxílio caiu de R$ 80 para R$ 65 mensais – menos da metade de um salário mínimo. Famílias com dez, 12 pessoas que conseguiram inscrever apenas um membro têm de fazer mágica e se virar com isso. De acordo com a prefeitura, em 1983 havia 11 mil nas frentes de trabalho. Hoje, esse número foi reduzido para 2 mil.
Outro problema que Maria de Lurdes enfrenta é o coração. "O médico do posto de saúde me disse que, se eu tiver outro filho, posso morrer." Problemas cardíacos ocasionados por má alimentação, além de estresse e hipertensão, são freqüentes. E, de quebra, há a doença de Chagas, que muitos têm e nem sabem. Os barbeiros (insetos vetores da doença) costumam sair ao meio-dia das tocas, principalmente em dias quentes, e transmitir o Trypanosoma cruzi. Lurdes espera na fila para ir a Maceió fazer a cirurgia necessária em um hospital do Sistema Único de Saúde.
Embora o atendimento e a informação sobre saúde tenham melhorado consideravelmente com a implantação do programa Agentes Comunitários de Saúde (ver PB 327, maio/junho de 1998, encarte) persistem alguns obstáculos, como a absoluta falta de planejamento familiar. É comum encontrar famílias com 11 ou 12 filhos. A própria agente de saúde Ivete de Barros teve 15. O problema é que o crescimento do número de bocas não vem acompanhado de ampliação da renda da casa, e sim de um aumento da fome.
Boa parte das mulheres de São José da Tapera já conhece métodos contraceptivos, por orientação de médicas e enfermeiras. Mas a desinformação e o preconceito ainda são grandes, como mostram casos como o da mulher que engravidou por achar que a pílula anticoncepcional deveria ser tomada dia sim, dia não, ou a recusa dos maridos em usar preservativos.
Por cima do pecado
Devido à fé do sertanejo, a dicotomia religião versus controle da natalidade transforma-se em um desafio a qualquer projeto que tente mudar o cenário. Por estarem atreladas à Pastoral da Criança, algumas agentes de saúde não estão autorizadas a ensinar outros métodos além do da tabelinha, endossada pelo Vaticano. O padre da cidade, durante o sermão na missa, condena o uso de preservativos, pílula anticoncepcional e a vasectomia ou a ligadura de trompas.
Mesmo assim, muitas mulheres passam por cima do pecado e, arriscando a salvação eterna, querem submeter-se à operação de esterilização.
Jeíusa Pereira dos Santos é uma delas. Tem 29 anos de idade, mas bem poderia ter 45, pelas marcas de um tempo que foi mais severo com ela do que com outras pessoas. Tem também oito filhos (um deles desnutrido), outro no ventre, sem contar um par de gêmeos que morreu. Porém, seu marido é contra a esterilização e faz-lhe ameaças para que não leve à frente a idéia da cirurgia.
Às vezes ele consegue um bico de apanhar feno em alguma fazenda do Sítio Antas, povoado onde moram. Porém, a renda da família vem basicamente da fabricação e venda de vassouras de palha de coco aricuri. Andam vários quilômetros sob o sol escaldante para buscar a matéria-prima na mata. Dedicam uma semana inteira à produção de cem unidades, que depois vendem por R$ 15.
A família de Jeíusa é uma das mais pobres de toda São José da Tapera. Durante três anos, viveram em um barraco feito com palha e madeira. Pequeno, de aproximadamente dez metros quadrados, com uma cama de palha que servia de descanso para todo mundo.
Por causa da situação de sua família e do sentimento de incapacidade diante da dor dos filhos, o marido de Jeíusa entrega-se à bebida. Sem ter o que fazer, abraça a garrafa de cachaça, sentado à sombra de uma árvore. Quando o álcool lhe sobe à cabeça, briga com a mulher e os filhos. Já chegou a tentar derrubar a casa que a prefeitura construiu para eles em substituição à palhoça. No dia em que esta reportagem visitou a família, encontrou um de seus filhos desmaiado em meio a moscas, estirado no chão da casa. Ele havia pedido o que o pai estava tomando e bebeu pinga. Com o estômago vazio.
Poder de voto
Como Jeíusa, a maioria da população tem título de eleitor e carteira de identidade – exatamente nessa ordem de importância. A região nordeste é famosa por ter seu povo oprimido e explorado por coronéis, grandes latifundiários que utilizam mão-de-obra quase escrava em seus domínios, mantendo através da violência seu poder e o status quo. Até pouco tempo atrás, São José da Tapera e cidades vizinhas eram dominadas pela família Maia. A população reluta ainda em falar abertamente no assunto, mas o curral eleitoral estava estampado em cada esquina, nos muros pichados com propaganda. Do tio ao primo, da cunhada ao genro. A situação começou a mudar de uns tempos para cá, quando Ênio Ricardo Gomes, marido da atual prefeita e sem vínculo com os Maia, venceu as eleições municipais. Pouco tempo depois, foi assassinado misteriosamente. Edineuza então resolveu se candidatar para dar continuidade ao trabalho do marido, e venceu.
E o mais interessante é que muito poucos sabem escrever além do próprio nome, lembrado apenas nos dias de votação, e ler o nome dos candidatos, estampado nas urnas eletrônicas. O analfabetismo é grande entre os adultos.
A casa de Jeíusa não tem um móvel sequer. "Não quero mesa, não quero cama, quero trabalho." Apesar de haver acomodados que estão à espera de que a comida caia do céu, a maioria das pessoas de todo o sertão quer emprego e principalmente deseja poder trabalhar na sua roça, cultivar a sua terra.
Uma saída para as cidades do sertão parece ser a agricultura irrigável. As condições de clima e solo do semi-árido brasileiro são ideais principalmente para o plantio de frutas. As altas temperaturas e o sol o ano inteiro favorecem a produção de frutas bem mais doces do que as produzidas no centro-sul.
E não se trata apenas de frutas típicas da região, como umbu, cajá, cacau, caju, mas também de manga, melancia, acerola, maracujá, melão, laranja, uva. Os vinhos produzidos no nordeste, por exemplo, já começam a rivalizar em qualidade com os das parreiras gaúchas. Também no sertão, em Juazeiro (BA), o tomate é cultivado pela empresa Cica para a fabricação de polpa, molhos e catchup devido às boas condições de plantio. Parte da produção é exportada, gerando empregos e divisas.
Alguém pode dizer: "Isso é porque Juazeiro está às margens do São Francisco, um dos maiores rios brasileiros". Mas o fato é que São José da Tapera fica a apenas 20 quilômetros do Velho Chico, em um trecho em que ele tem 500 metros de largura. A contradição, de tão grande, parece surreal. Enquanto as plantações secam, o gado padece de sede e crianças morrem desidratadas, a poucos minutos dali, na cidade de Pão de Açúcar, turistas de vários lugares brincam e se divertem em uma praia natural na beira do rio. É nesse local que a água é captada e enviada por tubos para os centros urbanos de municípios da região. E é nesse trecho que os caminhões-pipas abastecem as caçambas para distribuir água nos povoados carentes. Um vaivém necessário, mas apenas paliativo.
Grandes projetos
"Só o dinheiro que o governo gasta com caminhões dava para irrigar esse sertão", desabafa José Bezerra. Exageros à parte, José não está muito longe da verdade. O projeto para a transposição das águas do São Francisco, que beneficiaria milhões de nordestinos, custaria aproximadamente R$ 700 milhões aos cofres públicos. Captando apenas 3% da água da Barragem de Sobradinho – a maior do país –, o projeto prevê a construção de canais artificiais para abastecer os rios temporários que correm como fantasmas pelo sertão, além dos diques e açudes.
A solução para São José está mais próxima ainda, uma vez que 20 quilômetros de tubulação não são muita coisa. A vizinha Pão de Açúcar já cultiva melões irrigados. O mesmo se aplicaria às cidades vizinhas, que vivem idêntica condição surreal. A prefeitura tem um projeto – com custo de R$ 8 mil – para desviar água de uma adutora já existente até o vilarejo de Antas, com a finalidade de criar condições para o plantio irrigado de tomate e quiabo.
Com ou sem medidas efetivas contra seus problemas crônicos, no entanto, não é difícil que São José da Tapera passe para outra cidade miserável o título de lugar mais pobre do país na próxima listagem do IDH. Isso porque, de acordo com José Carlos Libânio, um dos responsáveis pela divulgação do ranking brasileiro, a classificação depende do censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a ser realizado no ano que vem. Ou talvez o local nunca tenha sido mesmo o mais pobre do país, mas apenas mais uma cidadezinha escondida nas areias do sertão. É quase impossível quantificar a dor e o abandono.
Contudo, a triste colocação serve para trazer à luz do sol a miséria escondida nas sombras do sertão nordestino. As histórias dos sofrimentos de Josés e Marias vivificam o problema, transformam números, gráficos e dados estatísticos em rostos, sonhos e lágrimas. Traduzem a fria expressão "mortalidade infantil" na imagem dos cinco filhos de Maria Bezerra, dos gêmeos de Jeíusa, dos quatro meninos de Maria Rita, do caçula de Maria de Lurdes...
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