Postado em 08/01/2010
UM BOM COMEÇO
por Sandra de Souza
Pediatra há 17 anos, a doutora Sandra de Souza sempre focou seu trabalho num cuidado com seus pequenos pacientes que ia além das questões clínicas. “Inicialmente, eu ia fazer psiquiatria infantil porque queria cuidar de outros tipos de dores das crianças”, disse ao Conselho Editorial da Revista E. Presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca), a médica explicou aos presentes a importância do contexto de vida para a formação da criança. “O começo da vida faz a diferença em qualquer situação”, afirmou no encontro. “É completamente imprescindível que esse começo seja bom.” Doutora Sandra contou ainda que terminou por pautar toda sua formação nessa “inquietação”, como chama. “(...) ou seja, a forma como a gente recebe alguém que acabou de chegar a essa vida – precisa ser diferenciada.”
Durante a conversa, a especialista falou também sobre a responsabilidade de todos nós com relação às crianças, sobre saúde infantil e sobre quando o tratamento dispensado aos pequenos deixa de ser de foro familiar e passa a ser uma questão social. A seguir, trechos.
Relações afetivas
O começo da vida faz a diferença em qualquer situação. É completamente imprescindível que esse começo seja bom. Acabei pautando toda a minha formação nessa inquietação, de que o começo a ser oferecido – ou seja, a forma como a gente recebe alguém que acabou de chegar a essa vida – precisa ser diferenciado. Quando a gente fala da chegada de alguém, ao começo da existência, falamos de encontros e de suas qualidades.
O desenvolvimento do cérebro depende do número de relações afetivas positivas vividas pelo indivíduo. E a isso está atrelado o desenvolvimento de todas as suas capacidades. Tudo ligado às possibilidades que ele tem de interagir positivamente ou de repelir experiências. Daí a importância de prestar atenção no que acontece com a família. Porque uma coisa é você cuidar da mãe, outra é cuidar do bebê. Eu costumo dizer que é tranquilo dar conta de perceber os sintomas e os sinais da mulher. Assim como também o é dar conta dos sinais do bebê, que pouca alteração mostra no começo da vida. Agora cuidar desse encontro é que faz a diferença. E chamo tanto a atenção para isso porque, não raro, todos os atropelos na questão do direito vão passar por nossas relações mais primitivas. Seja porque elas acontecem dentro da nossa própria casa ou porque não temos estrutura para entender o que está acontecendo ou porque não temos um ambiente propício para o nosso desenvolvimento – ou seja, pode ser um local violento, negligente. E isso é absolutamente determinante e estruturante para aquilo que vamos ser na nossa vida inteira.
Questão de todos
A criança é um problema de todos nós e é um investimento também de todos, independentemente se o filho é seu ou não. Quando falo de toda a minha preocupação com a fase inicial da vida, em estabelecer uma oportunidade justa para que a família se organize, seja devidamente acolhida e acolha aquela criatura que acabou de chegar – enfim, garantir que essa família dê, de fato, uma oportunidade justa para essa pessoa –, não se trata de um investimento desinteressado. E por que eu digo isso? Ora, vivo aqui, neste planeta. Eu tenho filhos neste planeta, e não dá para achar que o meu vizinho, que bate no filho dele, não tem nada a ver comigo. Não dá para eu achar que aquela criança, que é amiga do meu filho e que sofreu uma determinada violência, não tem nada a ver comigo. Nós estamos implicados.
A violência é um grande exemplo porque se trata de um assunto central, ao mesmo tempo que é periférico, porque tem uma ramificação e um poder de chegar a todos os lugares. Se a gente parar para refletir, a violência acaba sendo um assunto nosso, porque todos nós sofremos ou aplicamos algum tipo de violência em algum momento. E trabalhar na perspectiva da construção de uma situação melhor para o desenvolvimento de crianças e adolescentes, pensar o que é a construção de uma nação, significa que nós não vamos poder nos furtar de encarar a violência e de nos envolver na elaboração da tal cultura de paz.
Privacidade
Não tem nada mais seguro do que a casa. Digo isso no seguinte sentido: existe o limite, você não pode simplesmente entrar na casa do seu vizinho. Você sabe que ele está abusando da filhinha dele de quatro anos, você está escutando a coisa acontecer, mas você não pode entrar lá e bater nele. Você corre o risco de ser preso. Mas você pode chamar o Conselho Tutelar, pode chamar a polícia, fazer um escândalo, por exemplo. Estou falando do extremo. Se a questão é realmente de foro familiar, aí você não tem nada a ver com isso, pouco se pode fazer, não temos escolha. Embora eu goste de verde, não posso obrigar aquela família a vestir os filhos de verde. Agora, eu posso, sim, interferir em maior ou menor medida para que aquelas crianças estejam vestidas adequadamente. Não é uma coisa simples. Trabalhar com a família talvez seja a parte mais difícil. Estamos agora em fase de grandes discussões no Condeca [Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente], por conta da nova gestão, e trazer esse assunto tem sido difícil. Ninguém quer trabalhar com a família. Só que crianças não brotam em árvores. Ou você passa a trabalhar com a mulher grávida, com a família, entre outras coisas, para garantir uma boa chegada, um bom começo, ou tudo está fadado a não dar certo. É mais fácil pensar na criança isoladamente, mas a coisa não funciona assim. É uma batalha perdida. No entanto, as pessoas insistem em projetos que se apropriam das crianças, o que é mais maluco ainda. Você ouve médicos, professores, assistentes sociais, gestores de abrigos dizendo: “As minhas crianças!”. Essa é uma frase de arrepiar. Suas por quê? Você as comprou? Isso não pode, é ilegal! Pessoas tomam a criança como propriedade e acabam desqualificando e impedindo qualquer possibilidade de desenvolvimento daquele caso.
Transparência
A cultura alimentar é muito particular daquela comunidade, daquela família e daquela história. Se você trabalha a alimentação saudável com as crianças na escola, você reduz doenças cardiovasculares e reduz o peso de uma família inteira. E gasta menos. Eles vão gastar com o que é necessário. Mas não é simples. A tarefa não é pequena. O que eu digo é que neste momento sou a pessoa que ocupa este banquinho, e não vou medir esforços para que as coisas sejam pelo menos encaminhadas. Mas nada acontecerá em menos de dois anos. A gente precisa garantir é que quem venha depois siga minimamente, ou que pelo menos tenha vergonha de sentar em cima de determinados projetos. E só se consegue isso tornando a coisa tão pública, tão apropriada pela população, que ninguém consiga esconder. E essa é uma parte que normalmente a gente deixa para lá, que é a de contar para as pessoas por que se está fazendo aquilo e o que é preciso acontecer. Se você não tem uma ampla divulgação, o seu projeto não sairá do papel.
“A criança é um problema de todos nós e é um investimento também de todos, independentemente se o filho é seu ou não”