Postado em 06/07/2008
País comemora o centenário de nascimento de Burle Marx, o artista das plantas
CARLA ARANHA
Sítio Santo Antônio da Bica: pintura vegetal
Foto: Paulo Mariano
Em 1983, Roberto Burle Marx resolve mais uma vez se aventurar em uma expedição pela floresta amazônica. Ele reúne 11 pessoas interessadas em participar da viagem, entre botânicos, paisagistas e fotógrafos, e parte para a mata. Seu objetivo é coletar plantas tropicais, muitas ainda desconhecidas, segundo acredita. O grupo viaja durante 53 dias pelo Acre, Mato Grosso e Pará, dormindo em redes e tendo de acampar no meio do mato. As muriçocas e as condições precárias da expedição, porém, estão longe de incomodar Burle Marx, apesar de seus 74 anos de idade e do marca-passo que tem no peito. "Ele fez viagens pelo país todo desde moço, e ficava muito feliz nessas aventuras. Empregava em seus jardins as plantas tropicais que ia conhecendo. Foi não só um grande paisagista como também um grande defensor da natureza e ecologista", diz Haruyoshi Ono, paisagista que trabalhou por três décadas ao lado de Burle Marx.
Roberto Burle Marx (1909-1994), cujo centenário de nascimento é comemorado neste ano, podia se orgulhar das muitas atividades que exercia. Foi um dos melhores paisagistas do século 20, autor de obras que se tornaram cartões-postais do Brasil, além de ter sido também pintor, escultor e tapeceiro. No Rio de Janeiro, deu forma ao Aterro do Flamengo e ao calçadão da Avenida Atlântica, em Copacabana. Ao todo, criou mais de 3 mil jardins, espalhados pelo mundo. Burle Marx também tocava piano muito bem e foi um dos primeiros brasileiros, coincidentemente ao lado de Tom Jobim, a levantar a bandeira da ecologia e a denunciar os crimes contra a natureza. Ele presenciou vários deles em suas constantes viagens pelo Brasil, que realizou desde muito moço. "Foi Burle Marx quem valorizou as plantas tropicais. Antes dele, os brasileiros preferiam rosas e cravos às bromélias e outras espécies nacionais", conta Ono.
Para sua família, de origem europeia, não era nenhum espanto o fato de Burle Marx ter desenvolvido diversos talentos artísticos. A mãe, Cecília Burle, descendente de franceses, abria o piano todos os dias e também gostava de cantar. O pai, o alemão Wilhelm Marx, que veio para o Brasil no final do século 19, assinava revistas de jardinagem e se considerava um amante das artes. Wilhelm e Cecília se conheceram no Recife, onde moravam, e casaram-se em 1900. Logo depois, mudaram-se para São Paulo. Em 1913, resolveram transferir-se de novo, dessa vez para o Rio de Janeiro, que era a capital do país. A família tinha um curtume, e decidira ir em busca de mais mercado para os produtos fabricados por Wilhelm. O terceiro filho do casal Wilhelm e Cecília, Roberto, tinha apenas quatro anos nessa época. O menino adorou a mudança.
Os Burle Marx se instalaram em uma ampla casa aos pés de uma das paisagens mais fantásticas do Rio de Janeiro da belle époque, o morro da Babilônia, no Leme. A casa ficava entre a floresta e o mar. Roberto criou um pequeno jardim no quintal. Os pais perceberam o interesse do menino por jardinagem e o estimularam a cuidar de suas plantas. Mas ele não ficava sozinho por muito tempo, adubando e regando o jardim. A vida no Leme era alegre e agitada: o casal Burle Marx adorava ter os amigos por perto, e os vizinhos eram sempre convidados para participar de reuniões e festas.
No Leme, Roberto ficou amigo de um vizinho muito especial, o então adolescente Lúcio Costa, que alguns anos depois se tornaria um dos maiores arquitetos brasileiros. Mais tarde, é Lúcio que vai indicar Burle Marx para seus primeiros trabalhos. Trata-se de uma parceria que vai marcar para sempre a relação entre jardim e construção, de forma inédita. "Burle Marx fazia com que entre os jardins e a casa, ou prédio, não houvesse contradições e sim uma relação de continuidade poética ou passagem, o que é muito difícil de conseguir", diz Vera Beatriz Siqueira, vice-diretora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora do livro Burle Marx, da editora Cosac Naify.
Mas Roberto Burle Marx não contou apenas com seu talento, ou com parcerias produtivas, para se tornar um dos maiores paisagistas do século 20. Ele tratou de estudar nos melhores centros artísticos internacionais até se dedicar profissionalmente à atividade pela qual ficaria conhecido. Em 1928, aos 19 anos, Burle Marx foi para a Alemanha, terra de sua família paterna, estudar pintura e desenho. Nessa época, ele ainda não sabia bem se pretendia ser paisagista – então uma profissão exercida por pouca gente no mundo – ou artista plástico. Na dúvida, decidiu passar uma temporada na Europa estudando arte. Em Berlim, aproveitou para conhecer o Botanischer Garten, o mais antigo jardim botânico alemão, fundado no século 17 com o propósito de reunir plantas medicinais e ornamentais de diversas partes do mundo – inclusive do Brasil. Ele passava muito tempo no jardim. Foi na Alemanha que se encantou pelas espécies tropicais. "Sou muito brasileiro. Descobri isso em Berlim", diria o paisagista anos mais tarde.
De volta ao Brasil um ano depois, Burle Marx decidiu continuar os estudos na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Nessa época, conheceu vários artistas. Sua turma era formada por Oscar Niemeyer, Candido Portinari, Carlos Leão e Patrícia Galvão, a Pagu. Sua amizade com Lúcio Costa também crescia. Por sinal, cultivar amigos foi outra arte que Burle Marx soube dominar como poucos. "Era uma personalidade extraordinariamente alegre e adorava estar com gente, recebia sempre um número muito grande de visitas do mundo todo em sua casa", diz a arquiteta e paisagista Rosa Kliass, que conviveu com Burle Marx. Apesar de nunca ter se casado ou ter tido filhos, ele jamais reclamou de solidão: estava sempre cercado de amigos e de plantas de que precisava cuidar. E elas eram muitas.
Carreira
Burle Marx começou sua carreira como paisagista em 1932, aos 23 anos, no Rio de Janeiro. Seu primeiro trabalho foi um jardim residencial encomendado por Lúcio Costa, responsável pela arquitetura da casa da família Schwartz em Copacabana. No ano seguinte, surgiu outro projeto junto com o arquiteto, também no Rio. A partir de então, Burle Marx começou a ser bastante requisitado. Em 1934, foi convidado a assumir o cargo de diretor de Parques e Jardins do Recife, onde ficou até 1937. Tratava-se de uma oportunidade e tanto para um jovem em ascensão: finalmente ele poderia começar a desenhar jardins públicos, saindo da esfera residencial. Burle Marx trabalhou sem parar no Recife. Projetou os jardins do Palácio do Parque Dois Irmãos, da Praça da República, fez a reforma paisagística da Ilha dos Amores – como ficou conhecida a Praça do Derby, após essa remodelagem. Foi quando começou a sentir falta de mais espécies nativas para usar em seus jardins e resolveu ir à caça delas, fazendo incursões pelas regiões de mata. "Naquela época, a flora nativa era praticamente ignorada, já que o bonito era ter jardins clássicos com plantas europeias", diz Haruyoshi Ono. Nessas viagens, Burle Marx se apaixona pelas bromélias – antes quase desconhecidas –, palmeiras e outras plantas tipicamente brasileiras. "Ele criou o paisagismo tropical e deu forma a uma gramática nova para essa arte", diz o arquiteto Lauro Cavalcanti, conselheiro da Fundação Oscar Niemeyer.
Não levou muito tempo para que grandes projetos, como a área verde do Aeroporto Santos Dumont, o jardim-terraço do Instituto de Resseguros do Brasil, ambos no Rio de Janeiro, e os jardins do complexo da Pampulha, em Belo Horizonte, o tornassem famoso no mundo todo. Em 1943, Burle Marx participa de uma exposição de arquitetura em Nova York, a "Brazil Builds: Architecture New and Old, 1642-1942", no prestigiado Museu de Arte Moderna (MoMA). A partir daí, começam a chover convites internacionais. Como pintor, Burle Marx também é chamado a expor em alguns países. Em 1945, toma parte em uma importante mostra de pintura moderna em Londres. Fica feliz também por ser convidado a criar jardins no México e nos Estados Unidos.
Trabalho não falta. Nem aqui nem em outros países. Burle Marx acredita que já é chegada a hora de ter o endereço dos sonhos no Rio de Janeiro. Em 1949 ele compra o Sítio Santo Antônio da Bica (que mais tarde passa a se chamar Sítio Burle Marx), no bairro de Barra de Guaratiba, uma região até hoje praticamente intocada do Rio de Janeiro. Ali, em meio a uma enorme área de 365 mil metros quadrados, equivalente ao tamanho de dois Maracanãs, ele começa a formar uma espetacular coleção de plantas, que chega a ter 3,5 mil espécies. Ele usava muitas delas nos jardins que criava. O artista também pinta e faz esculturas em seu ateliê. Os almoços que passa a oferecer no sítio são notórios. Empregados, arquitetos, atores, poetas, pintores e uma alegre turma de bon vivants se reúnem em torno da mesa aos sábados, sem distinção de raça ou classe social, para saborear as receitas preparadas pelo cozinheiro Cleofas Cesar da Silva, que segue à risca as orientações do mestre: os pratos devem ter sabor – nada de usar poucos temperos – e cor. "O contraste das cores, das texturas e sabores é que valoriza a refeição. Eu não entendo essa cozinha que só usa alho, cebola e sal para todos os pratos (arroz, bife, feijão etc). Fica tudo com o mesmo gosto. Isso que chamo de falta de criatividade", fazia questão de dizer a seus convidados, segundo registro das arquitetas Claudia Pinheiro e Cecília Modesto, autoras do livro À Mesa com Burle Marx, da Editora Batel.
Enquanto inventa receitas junto com seu cozinheiro e cuida das plantas do sítio, o paisagista dá prosseguimento a seu trabalho e se firma como um dos maiores artistas do século. Em 1953, na I Exposição Internacional de Arquitetura da II Bienal de São Paulo, seu projeto para a casa de Odette Monteiro em Correias, no município de Petrópolis, na serra Fluminense, ganha o prêmio de melhor paisagismo. O júri conta com estrangeiros, como o arquiteto alemão Walter Gropius e o crítico inglês Herbert Read, que ajudam a popularizar o trabalho de Burle Marx fora do Brasil. É também em 1953 que o artista projeta os jardins do Parque do Ibirapuera. A arquitetura fica por conta de Niemeyer e sua equipe.
Nos anos 1950, ele concretiza mais alguns sonhos. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro abre suas portas para uma grande exposição de pinturas, desenhos, tapeçarias e projetos paisagísticos que levam a assinatura de Burle Marx, em 1956. No mesmo ano, algumas pinturas suas são embarcadas para Londres, onde é organizada uma mostra em sua homenagem na Contemporary Arts Gallery. Ainda nessa época, Burle Marx recebe o convite para projetar o Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, uma obra descomunal. Ele abraça o projeto e fica, de 1954 a 59, desenhando os jardins do parque.
Sua carreira vai de vento em popa. Quando completa 53 anos, em 1962, Burle Marx ganha um grande presente. Várias capitais da América do Sul convidam o artista a exibir modelos de projetos paisagísticos de sua autoria em uma exposição itinerante pelo continente. Seus trabalhos viajam por Montevidéu, Buenos Aires, Santiago do Chile, Lima e Bogotá. Os franceses também se rendem ao fascínio do paisagista brasileiro. Em 1963, ele faz os jardins internos do prédio da Unesco, em Paris. Nos anos seguintes, passa a receber prêmios e homenagens no mundo todo. A comunidade artística internacional faz questão de convidar Burle Marx para expor suas pinturas. Para grande orgulho seu, ganha uma sala só para seus trabalhos na Bienal de Veneza de 1970. "Burle Marx sempre encontrou tempo para se dedicar à arte e ficava muito feliz de ter seu trabalho reconhecido", conta Haruyoshi Ono.
Seu escritório de paisagismo no Rio, o Burle Marx & Cia, segue a todo o vapor. Ele ajuda a formar uma geração de paisagistas, entre eles Ono e José Tabacow, que são seus fiéis discípulos. Juntos, fazem várias viagens pelo Brasil para coletar plantas. Cada vez mais Burle Marx se preocupa com a preservação da natureza. Ao longo dos anos 1970, além de falar sobre paisagismo e arquitetura nas palestras que dá pelo mundo afora, também alerta para a importância de conservar o ecossistema. As viagens não fazem com que diminua o ritmo de trabalho no escritório, pelo contrário. As encomendas não param de chegar. Burle Marx cria os canteiros da Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, e também o calçadão, no qual reinterpreta um conhecido desenho português de mosaicos. As ondas do calçadão de Copacabana logo se transformam num dos principais cartões-postais do Brasil. "O incrível é que pouca gente sabe que isso é obra de Burle Marx", diz Ono.
Em 1981, ele descobre que tem um problema no coração e precisa colocar um marco-passo. Isso não o impede de continuar fazendo suas viagens de exploração pelo Brasil e de trabalhar com afinco em seus projetos paisagísticos. Faz jardins na Venezuela e é encarregado da reurbanização do Largo da Carioca, no centro do Rio de Janeiro, um dos marcos mais importantes da cidade. Aos 76 anos, Burle Marx decide doar o Sítio Santo Antônio da Bica ao governo federal, para garantir a manutenção do local mesmo após sua morte. O lugar é rebatizado como Sítio Burle Marx e, a partir de 1994, ano de sua morte, é aberto à visitação. O maior paisagista brasileiro falece em 4 de junho de 1994, aos 85 anos, em decorrência de um câncer no baço. "O Brasil perdeu não só um grande artista, mas também um ser humano incomparável, que com certeza faz falta em nosso mundo", diz a arquiteta e paisagista Rosa Kliass.
Homenagens ao artista
A Casa Cor deste ano, terceira maior mostra de arquitetura, decoração e paisagismo da América Latina, vai fazer uma homenagem especial a Burle Marx. De 28 de agosto a 6 de outubro, o evento acontecerá em Campinas (SP). A mostra, que terá como temática a sustentabilidade, se realizará no Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim, espaço de 11 mil metros quadrados projetado por Burle Marx, e será aberta ao público. Os jardins criados pelo paisagista serão revitalizados até agosto. Mais informações podem ser obtidas através do site http://www.casacor.com.br/campinas/.
Este ano, a prefeitura do Rio de Janeiro também anunciou que irá tombar 88 jardins que Burle Marx projetou na cidade, a maioria instalada em locais públicos. Há intenção ainda de criar um mecanismo de conservação para que, com o passar do tempo, as plantas não se deteriorem. O arquiteto Haruyoshi Ono apoia a iniciativa. Ele acredita que não só os jardins, mas outras obras de Burle Marx, como o calçadão de Copacabana, devam ser preservados. "A falta de manutenção tem sido um problema. Os desenhos do calçadão estão ficando deformados", diz ele.
No primeiro semestre do ano, cariocas e paulistas tiveram oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a obra de Burle Marx, em dois eventos. A exposição "Burle Marx 100 Anos, a Permanência do Instável" levou 355 obras do artista ao Paço Imperial, no Rio de Janeiro, entre pinturas, esculturas, maquetes e tapeçarias. E, em São Paulo, a Caixa Cultural abrigou a mostra "O Gravador Roberto Burle Marx no Atelier Ymagos".
Outra homenagem ao paisagista vem da Editora Senac São Paulo, que, em coedição com a Edusp, está lançando "Modernidade Verde – Jardins de Burle Marx", de Guilherme Mazza Dourado. Doutor em história e teoria da arquitetura e do urbanismo, o autor inova ao incluir no livro os projetos acompanhados da especificação botânica original, além de material iconográfico ainda pouco conhecido.
O Sítio Burle Marx não preparou nenhuma exposição comemorativa do centenário de nascimento do artista, mas lembra que o local preserva seu ateliê e sua casa, abertos à visitação. Os amplos jardins que o paisagista cultivava também podem ser conhecidos durante o passeio. As visitas precisam ser marcadas com antecedência, pelo telefone (21) 2410-1412. Há dois horários de visita diários (inclusive aos sábados e domingos): um às 9h30 e outro às 13h30, e o passeio é acompanhado por um monitor.