Postado em 06/07/2008
Há cem anos nascia o brigadeiro Faria Lima, que não conhecia a palavra "impossível"
HERBERT CARVALHO
Foto: Reprodução
Ao longo do século 20, o Brasil passou por um intenso processo de urbanização: até 1940, apenas 31% dos brasileiros viviam em centros urbanos, mas na virada para o século 21 essa proporção já era de 82%, ultrapassando os 92% na região sudeste.
Caso emblemático dessa transformação é o da cidade de São Paulo, que ainda era um modesto burgo de 200 mil habitantes ao tornar-se a metrópole do café, no final do século 19. A industrialização acelerada, principalmente a partir do segundo pós-guerra, somou aos imigrantes estrangeiros que predominavam na Pauliceia Desvairada dos modernistas uma onda de migração interna que atraiu brasileiros de todo o país.
Nos anos 1950 e 1960 a cidade que não podia parar – e que hoje literalmente para, com seus 10 milhões de habitantes, 6 milhões de veículos e transporte público insuficiente – crescia a cada ano uma nova Brasília, a cada dois uma Curitiba e a cada três uma Porto Alegre, como então se dizia. Vivia-se o despontar da megalópole e de seu paradoxo, a coexistência entre um dinamismo econômico incomparável e os problemas urbanos de difícil, senão impossível, solução.
"Impossível", porém, era uma palavra que parecia não existir em 1965 para o recém-eleito prefeito de São Paulo, o brigadeiro Faria Lima, cujo centenário de nascimento está sendo comemorado neste ano com as honras devidas ao administrador que mudou a face da cidade, rasgando suas maiores avenidas – como a 23 de Maio, a Radial Leste e as marginais dos rios Tietê e Pinheiros – e dando início à construção do metrô.
Como sua obra urbana e administrativa é bem mais conhecida, convém preliminarmente resumir a trajetória de vida desse homem público peculiar, morto prematuramente aos 59 anos de idade, quando desfrutava o auge de uma popularidade e um prestígio político que o colocavam como forte pretendente à presidência da República.
Epopeia
Nascido em 7 de outubro de 1909 no bairro carioca de Vila Isabel, José Vicente de Faria Lima foi o mais velho dos cinco filhos do imigrante português João Soares Lima e da capixaba Castorina Faria Lima. Também foi o primeiro a abraçar a carreira militar, seguida por mais três de seus quatro irmãos e que levaria todos ao generalato em suas respectivas forças: Roberto, como José Vicente, na Aeronáutica; João e Floriano Peixoto na Marinha – este último, o único ainda vivo, com 91 anos, assumiu o governo do Rio de Janeiro na década de 1970, durante o processo de fusão com o estado da Guanabara.
O futuro brigadeiro sentou praça em 1928 no Colégio Militar do Realengo, optando dois anos depois pela Escola de Aviação do Exército, em um tempo no qual o Ministério da Aeronáutica (criado em 1941) ainda não existia. Promovido a segundo-tenente em 1931, ingressou no Correio Aéreo Militar e no seu sucedâneo, o Correio Aéreo Nacional, instrumento pioneiro de integração entre a faixa litorânea do país e suas vastas regiões internas do cerrado e da Amazônia, inacessíveis a não ser pelo ar.
Pilotando seu monomotor, ao lado de ases como Nelson Lavenère Wanderley, Eduardo Gomes (que também teria destacada atuação política) e Casimiro Montenegro Filho – criador do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) –, Faria Lima participou da epopeia dos primórdios de nossa aviação. Eram tempos em que os pilotos carregavam uma bússola na mão e se guiavam por letras no teto das igrejas, pintadas por eles próprios.
Na década de 1940, Faria Lima integrou o gabinete do primeiro ministro da Aeronáutica, Salgado Filho, e fez os cursos de aviador militar e engenheiro aeronáutico, com especialização na Escola Superior de Aeronáutica da França. A partir de 1948, começa a organizar, na zona norte da capital paulista, no Campo de Marte, o Parque da Aeronáutica, do qual seria o primeiro diretor. Nesse cargo o então coronel prestaria um apoio direto à instalação da indústria automobilística, fazendo-se notar pelo governador Jânio Quadros, que em 1955 o convida para a presidência da Viação Aérea São Paulo (Vasp) e logo a seguir para o comando da Secretaria de Obras, Transportes e Vias Públicas, posto no qual seria mantido por Carvalho Pinto, no governo seguinte. Na meteórica passagem de Jânio Quadros por Brasília, já com as estrelas de brigadeiro, Faria Lima chegou a assumir a presidência do BNDE (atual Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES).
Anfíbio
Após a renúncia de Jânio, Faria Lima aceita disputar nas urnas pela primeira vez um cargo político, amparado no prestígio obtido ao contabilizar, em seu período como secretário, a construção de 2 mil quilômetros de estradas asfaltadas no interior do estado. Porém, é derrotado nas eleições estaduais de 1962 como candidato a vice-governador na chapa de Jânio, que por sua vez perde para Adhemar de Barros na disputa principal (naquela época votava-se separadamente no vice, tanto na esfera estadual como na federal). Três anos depois, porém, com o regime militar já instaurado, surge como candidato imbatível para a prefeitura de São Paulo, na última eleição direta para esse cargo até 1985. Nessa disputa de 1965 vence com maioria absoluta dos votos, superando políticos paulistas como Auro Soares de Moura Andrade, Laudo Natel e Paulo Egydio Martins. Ao ingressar em 1968 na Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de sustentação ao regime, era o principal "anfíbio" do cenário brasileiro, como se chamavam os militares que trocavam a farda pelo terno, identificando-se mais com a vida civil.
Seus hábitos espartanos, entretanto, não mudaram como prefeito. Acordava às 5 da manhã, lia os principais jornais, ligava para os secretários comentando as notícias e a agenda do dia. Às 8 horas estava em seu gabinete no Parque do Ibirapuera, sede à época do Executivo municipal, da qual só se afastava para os canteiros de obras, a bordo de um helicóptero ou, nas madrugadas, dirigindo seu próprio fusquinha vermelho.
Às terças-feiras recebia, na presença do secretariado e dos administradores regionais (as administrações regionais, antecessoras das atuais subprefeituras, foram criadas em seu governo), os representantes das sociedades de amigos de bairro, quando ouvia reivindicações e avaliava, através do relato direto da comunidade, o desempenho da máquina administrativa.
Embora tenha legado a São Paulo marcos arquitetônicos como o prédio do Museu de Arte de São Paulo (Masp), inaugurado em 1968 com a presença da rainha da Inglaterra, a principal característica de sua gestão foi preparar a cidade para se transformar na atual metrópole de serviços, o que ele fez por meio de um plano urbanístico básico – mais tarde transformado em plano diretor – e, sobretudo, dando início à construção do metrô, então na alçada municipal.
Mesmo criticado por ter acabado com os bondes – que poderiam ter sido mantidos como em tantas cidades europeias –, quando deixou a prefeitura, no início de 1969, rejeitando qualquer articulação para ficar no cargo além do mandato obtido nas urnas, sua administração exibia um inacreditável índice de 97% de aprovação, jamais igualado. Prova irrefutável de sua popularidade seria a eleição, em 1970, do sobrinho José Roberto Faria Lima, com 154.914 votos, o terceiro deputado federal paulista mais votado.
No dia 4 de setembro de 1969, sofreu um enfarte fulminante no Rio de Janeiro, onde estava participando da disputa militar pela substituição do general Costa e Silva na presidência da República. Foi sepultado no Cemitério Campo Grande, na periferia sul de São Paulo, na presença de milhares de pessoas, muitas tendo na mão uma rosa – que, junto com a colher de pedreiro, foi o símbolo de seu governo.