Postado em 06/07/2008
Novas tecnologias favorecem descobertas arqueológicas subaquáticas
EVANILDO DA SILVEIRA
Documentos escritos não são os únicos registros com os quais se pode contar a história da humanidade sobre a Terra. Os resquícios materiais da atividade humana deixados por todos os povos que já viveram em diferentes cantos do planeta também são testemunhos de civilizações passadas. São esses os objetos de pesquisa da arqueologia. Nem sempre, no entanto, eles são encontrados em terra firme. Muitos podem estar, por diversos motivos, submersos nos oceanos, lagos e rios. Para estudá-los é necessário ir até o fundo das águas. Não é trabalho para amadores. É preciso saber mergulhar e ser arqueólogo ao mesmo tempo – requisitos preenchidos por profissionais de uma carreira recente, a arqueologia subaquática.
Trata-se de uma nova especialidade, que surgiu apenas nos anos 1960, no mundo, e na década de 1990, no Brasil. "De lá para cá, essa área conseguiu demonstrar seu potencial tanto para a academia quanto para a sociedade em geral, principalmente ao garantir o estudo de sítios arqueológicos com alto grau de integridade", diz Leandro Duran, pesquisador do Centro de Estudos de Arqueologia Náutica e Subaquática (Ceans), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Ela também gerou reflexões sobre os diferentes processos de interação entre as sociedades humanas, ao longo de sua história, e os ambientes aquáticos, tema sistematicamente ignorado pela maioria dos pesquisadores e da população em geral."
Segundo o oceanógrafo Flávio Calippo, também do Ceans, esse novo ramo da arqueologia, no qual ele tem mestrado e doutorado, pode facilitar a compreensão de uma parte da história do país que não está nos livros. Isso porque permite contato com os vestígios deixados por pessoas que tiveram de cruzar oceanos, rios e águas interiores para chegar até aqui. "A arqueologia subaquática pode, por exemplo, nos ajudar a recontar a história da escravidão e dos imigrantes europeus", explica. "Será que as pessoas sabem em que condições seus antepassados chegaram aqui? Como foram suas viagens? Quanto tempo demoravam? O que comiam e como dormiam? O que faziam a bordo? Essas são algumas das perguntas que tentamos responder estudando vestígios materiais submersos."
Os arqueólogos subaquáticos não chegam a duas dezenas no Brasil, mas vêm literalmente trazendo à tona uma parte importante do passado do país, realizando vários projetos que começam a mapear a riqueza escondida sob as águas brasileiras. "Há pesquisas sendo feitas no litoral de norte a sul, assim como em rios e lagos pelo interior do território nacional", diz Gilson Rambelli, um dos pioneiros nas pesquisas embaixo da água e responsável pelo Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos, da Universidade Federal de Sergipe. "Em breve terá início também o projeto Inventário do Patrimônio Cultural Subaquático desse estado", diz ele.
Vestígios da história
Apesar de o mergulho estar ligado à ideia de aventura, é preciso deixar claro que os arqueólogos subaquáticos não gostam nem um pouco de ser comparados ao explorador francês Jacques Cousteau, por exemplo – considerado um divulgador científico, não um cientista –, e muito menos a caçadores de tesouros ou souvenirs submersos, estes vistos como seus maiores inimigos. "Somos pesquisadores que exploram, com fins científicos, os restos materiais deixados pelo homem ao longo de sua história no fundo do mar, de rios, lagos ou represas", explica Rambelli, autor do livro Arqueologia até debaixo d’Água. "Nossos objetos de pesquisa podem ser vestígios de naufrágios, acampamentos pré-históricos, cidades, áreas portuárias ou qualquer outra marca da civilização, submersa por um ou outro motivo. Somos arqueólogos que mergulham, não mergulhadores aventureiros."
A confusão resulta da própria história dessa área científica no Brasil. Segundo Rambelli, presa a uma tradição "romântica" de aventura submarina, ela acabou por criar uma imagem fantasiosa e um tanto ultrapassada de uma atividade exótica e amadora, sinônimo de exploração de tesouros de naufrágios. Calippo, aliás, faz questão de ressaltar que a arqueologia subaquática trabalha com a ideia de gestão sustentável do patrimônio cultural. "Evitamos retirar peças dos sítios submersos", explica ele. "Isso só é feito quando não existem mais alternativas para o seu estudo ou quando o patrimônio em questão está em risco. Nossa principal meta é a preservação in situ desses sítios, a fim de que possam ser vistos por outras gerações e utilizados em programas sustentáveis de turismo cultural subaquático."
Se a arqueologia subaquática ainda luta para se firmar, o mergulho em si, pode-se dizer, é tão antigo quanto a própria humanidade. Os primeiros registros materiais dessa atividade, no entanto, são bem mais recentes, datando de 4500 a.C. Rambelli conta em seu livro que nas ruínas de Bismaya, cidade da antiga Babilônia, foram encontrados objetos esculpidos em conchas de ostras retiradas das águas. Material semelhante foi usado por escultores egípcios em Tebas, em 3200 a.C. Posteriormente, durante o Império Romano, mergulhadores foram encarregados de recuperar cargas naufragadas.
Depois disso, há uma lacuna de séculos nos registros históricos da atividade. "Só vamos reencontrar documentação sobre mergulho no Renascimento", escreve Rambelli. "Esse período cultural é também marcado por um interesse frenético pelo mundo aquático, acompanhado de planos e experimentações, com a intenção de tornar possível a vida do ser humano sob as águas." Há, por exemplo, registros de projetos e experimentos de Leonardo da Vinci (1452-1519), tido como o inventor do escafandro. Um passo adiante foi dado pelo italiano Francesco Demarchi, em 1535. "Utilizando um capacete de madeira com um visor de cristal, ele realizou o primeiro reconhecimento arqueológico com equipamento de mergulho, em um dos barcos romanos afundados no lago Nemi, localizado 30 quilômetros ao sul de Roma", conta Rambelli.
Febre de mergulho
O grande salto nessa atividade só veio a ocorrer, no entanto, nos anos 1940, com a invenção do aqualung por Jacques Cousteau, então um jovem oficial da marinha francesa, em parceria com o engenheiro canadense Émile Gagnan. Ele realizou um dos mais antigos sonhos da humanidade: nadar livremente e respirar sob as águas como um peixe. Foi uma revolução. "O aqualung permitiu maior facilidade de movimento e se revelou capaz de satisfazer as exigências da exploração no ambiente aquático, inclusive da arqueologia", diz Rambelli. "Com a divulgação e a comercialização do novo equipamento, somadas ao desejo de explorar os fundos marinhos, surgiu uma verdadeira febre de novos mergulhadores espalhados pelo mundo."
Num primeiro momento, entretanto, isso não ajudou muito a arqueologia subaquática. Já as atividades voltadas à retirada de objetos do fundo marinho e à exploração de navios naufragados não só continuaram como foram intensificadas. Aos poucos, porém, o trabalho sério dos arqueólogos começou a ganhar força e a se firmar. "Paralelamente à tradição destruidora do mergulho de resgate, esboçaram-se as primeiras tentativas de sistematizar a pesquisa arqueológica do universo subaquático", explica Rambelli.
O primeiro experimento colocado em prática com esse objetivo ocorreu na França, entre 1952 e 1957. Uma equipe de mergulhadores liderada por Cousteau explorou os restos de um naufrágio, na região de Marselha. Entre os que trabalharam embaixo da água não havia nenhum arqueólogo, no entanto. O único a participar da pesquisa, Fernand Benoît, orientou cientificamente as buscas a partir da superfície. "Embora essa escavação tenha tido repercussão internacional na época, devido à retirada de milhares de artefatos do sítio, hoje só pode ser classificada como uma importante experiência técnica, e não como o nascimento de uma ciência nova, como pretendiam seus promotores", diz Rambelli em seu livro.
De acordo com ele, o primeiro exemplo verdadeiramente científico da nova especialidade veio de pesquisas realizadas por arqueólogos-mergulhadores, ou seja, por pesquisadores que aprenderam a mergulhar com o objetivo de fazer arqueologia embaixo da água. O pioneiro nesse trabalho foi o americano George Bass. "Entre 1961 e 1964, ele realizou a primeira escavação completa embaixo da água, em frente à ilha de Yassi Ada, na costa da Turquia", explica Rambelli. "Esse trabalho constitui um dos pontos de partida e de consolidação dessa nova área da ciência."
No Brasil, a primeira experiência de pesquisa submersa ocorreu em 1976, mas sem a participação de um arqueólogo no trabalho embaixo da água. A exemplo de seu colega francês Benoît, Ulysses Pernambucano de Mello Neto orientou da superfície uma equipe de mergulhadores no sítio do naufrágio do galeão Sacramento, ocorrido em 5 de maio de 1668, no litoral da Bahia. O primeiro trabalho realizado por arqueólogo-mergulhador é mais recente. Foram pesquisas feitas pelo próprio Rambelli no baixo vale do Ribeira, na região de Cananéia, no litoral de São Paulo, que resultaram numa dissertação de mestrado e numa tese de doutorado apresentadas no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) em 1998 e 2003, respectivamente.
Mitos e lendas
Os resultados do estudo mostraram como sítios arqueológicos submersos podem ajudar a esclarecer e entender a história, além de derrubar mitos e lendas. De quebra, serviram também para estabelecer a metodologia de trabalho para o estudo de locais e bens que estão embaixo da água. Em 135 horas de mergulho – cada submersão pode durar de 10 minutos a 1 hora e 10 minutos –, entre 2000 e 2003, ele estudou os restos do naufrágio do Conde d’Áquila, que afundou no antigo porto de Cananéia, em 1858.
Tratava-se de um navio de propulsão mista, a vapor e vela, que fazia a viagem entre o Rio de Janeiro e Florianópolis, com algumas escalas, entre elas Iguape e Cananéia, a serviço do Império do Brasil. Rambelli conseguiu localizar a embarcação depois de estudar os registros históricos sobre ela. "Em um documento de 1858, um viajante conta que, ao passar pela região de Cananéia, viu afundar os últimos mastros de uma embarcação a vapor que pegou fogo naquele ponto", conta.
O naufrágio impressionou tanto a população da região que deu origem a uma lenda. Diz ela que, quando o navio passou por Cananéia, a tripulação teria cometido uma blasfêmia, dizendo que, se faltasse carvão para as caldeiras, queimaria as pernas da estátua de são João Batista, padroeiro da cidade. Por castigo do santo, o navio foi vítima de um incêndio e afundou. "Contextualizada historicamente, essa lenda pode representar uma manifestação da resistência da população local à modernidade, visto que a tecnologia de propulsão a vapor da embarcação estava se sobrepondo à dos tradicionais barcos a vela, comuns na região", explica Rambelli.
Segundo ele, na época do naufrágio do Conde d’Áquila, Cananéia praticava com excelência a construção naval tradicional, com mais de 17 estaleiros, e não sofria uma ingerência estatal tão poderosa. "Os navios a vapor, como o Conde d’Áquila, simbolizavam esse controle do Estado, assim como uma mudança na concepção tecnológica náutica", explica. "Aqueles navios só poderiam ser reparados em grandes estaleiros no Rio de Janeiro. Assim, a lenda surge como resistência de uma sociedade que se sentia ameaçada por aqueles novos valores."
Presença antiga
Na mesma região de Cananéia, Flávio Calippo vem pesquisando desde 2000 os sambaquis – elevações arredondadas, com até 30 metros de altura, construídas no litoral com conchas e ossos de peixes e mamíferos por povos pré-históricos. Diferentemente de outros arqueólogos, porém, Calippo se dedica ao estudo de exemplares submersos. Entre eles, encontra-se um dos mais antigos do Brasil, com idade que beira os 8 mil anos antes do presente. Segundo Calippo, que mergulhou mais de cem vezes no local, esse sambaqui – como todos os outros – foi construído em terra firme. "Há 5 mil anos, no entanto, o nível do mar subiu 5 metros, engolindo a construção", explica.
Desenvolvida para sua dissertação de mestrado, apresentada em 2004 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), a pesquisa mostrou que os primeiros habitantes conhecidos daquela região já estavam no local quase 3 mil anos antes do que se presumia até a realização do estudo. "Meu trabalho tornou evidente que essas ocupações mais antigas realmente existiram e, em alguns casos, foram destruídas pelas últimas grandes oscilações do nível do mar, que variou de 120 metros abaixo a 5 metros acima do atual. Além de revelar isso, a pesquisa serve para entender melhor a ocupação do litoral brasileiro, por caçadores/pescadores/coletores, há milhares de anos."
Paulo Fernando Bava de Camargo, seu colega no Ceans, também realizou pesquisas na região de Cananéia. Seu foco, porém, foi outro. "O que eu queria era estudar o sistema defensivo da região e o material bélico usado nele", explica. "Na minha pesquisa procurei a localização de uma fortificação do século 19, hoje submersa nas proximidades da ponta da Trincheira, na barra de Cananéia, no município de Ilha Comprida." Com a ajuda de um sonar, ele chegou a localizar um canhão enterrado no fundo do mar, mas não conseguiu cavar até ele, mesmo depois de mais de 50 mergulhos.
De qualquer forma, o trabalho gerou resultados que ajudaram a entender um pouco melhor como o Brasil ocupava e defendia seu litoral. "Ficou claro que no início do século 19 já havia a preocupação em ter um sistema defensivo integrado, para a defesa contra contrabandistas e pequenas esquadras dos países platinos vizinhos e para controle da população local", diz Camargo. "Mas o estudo também mostrou que, apesar de bem planejada, a execução do sistema não era das melhores. Os próprios canhões usados nas fortificações eram comprados da Inglaterra quando esse país já não os usava mais, por considerá-los obsoletos."
Trabalhos como os desses pesquisadores mostram quanto pode estar escondido sob as águas do país. Na verdade, trouxeram à tona apenas uma parte ínfima da riqueza arqueológica submersa do Brasil. Não existe um levantamento preciso, mas, como termo de comparação, basta saber que estudos realizados no Mediterrâneo revelaram que há lá, em média, um navio da Antiguidade naufragado a cada 6,6 quilômetros quadrados. "A partir daí, pode-se imaginar o número existente no Brasil, onde circulavam milhares de navios por ano no período colonial", diz Rambelli. "Em nosso país, estima-se que haja algo entre 3 mil e 4 mil navios naufragados nos 8,5 mil quilômetros de sua costa. Por isso, podemos dizer que, embaixo da água, o Brasil não se conhece."
O pior é que grande parte dessa riqueza poderá nunca vir a ser conhecida. Ela está sendo arrancada de seus sítios por caçadores de tesouros e de souvenirs. Essa ação destrói o contexto de deposição dos vestígios materiais do sítio e elimina as informações que poderiam ser obtidas. "Na verdade, os que buscam tesouros garimpam o fundo das águas com dragas, sem nenhum cuidado com o sítio", critica Rambelli. "Sob o princípio tempo é dinheiro, não se preocupam com registro arqueológico."
No caso dos caçadores de souvenirs, os arqueólogos subaquáticos explicam que eles se divertem nos fins de semana recolhendo peças de navios afundados. "Os artefatos arqueológicos retirados, que servem como troféus de suas aventuras, muitas vezes terminam nas lixeiras, pois eles não sabem como tratá-los ou, quando sabem, os transformam em adornos de decoração pessoal", lamenta Rambelli. "Com isso, muita informação se perde, pois objetos extraídos de seu contexto ficam destituídos de significado. Um sítio arqueológico saqueado é como um livro que teve suas páginas arrancadas."
Para agravar a situação, a legislação brasileira, em vez de coibir ou controlar, estimula essa prática prejudicial ao trabalho dos arqueólogos. A lei 10.166, de 27 de dezembro de 2000, libera a comercialização de artefatos retirados de dentro da água. "A atual lei que trata do patrimônio subaquático é, em verdade, um convite à dilapidação de nossos sítios, pois garante ao explorador – que pode ou não ser arqueólogo (eis aí o primeiro erro) – o direito de auferir lucro com a comercialização de parte dos achados arqueológicos", critica Camargo. "Assim, as portas estão abertas para o garimpo subaquático e para que os bens culturais sob tutela da União sigam para o exterior ou para coleções particulares."