Postado em 04/03/2009
Fausto Chermont
O fotógrafo analisa a produção brasileira de imagens para o jornalismo, assim como para o campo das artes, e alertar sobre a necessidade de preservar a memória visual do país
O fotógrafo paulistano Fausto Chermont é uma das vozes mais fortes quando o assunto é defender a visibilidade da produção brasileira. Segundo ele, temos uma qualidade visual muito superior àquilo que efetivamente aparece na imprensa e no mercado especializado. Ainda no tempo da graduação em administração de empresas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Chermont interessou-se mais pelo grupo de estudo de fotografia formado por estudantes de seu curso e também das faculdades de antropologia, história e jornalismo. A carreira profissional teve início em 1981, ano da primeira exposição individual. Mas não demorou para que o entrevistado deste mês da Revista E percebesse que era preciso tomar as rédeas de sua produção. Em 1983, Chermont abre o laboratório Os Vesgo, juntamente com Luigi Stavale. No ano seguinte, continua a investir em sua formação, tornando-se assistente da fotógrafa Vania Toledo. Entre 1988 e 1991, atua como diretor da União dos Fotógrafos do Estado de São Paulo e, naquele mesmo ano, funda o Núcleo de Amigos da Fotografia (NAFoto), em parceria com os colegas de profissão Rubens Fernandes Júnior, Roseli Nakagawa e Nair Benedicto. De 1993 a 2003, coordena projetos no Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, e, em 2003, destaca-se com menção honrosa no Prêmio Porto Seguro de Fotografia. A seguir, trechos da conversa durante a qual Chermont falou sobre a qualidade da fotografia brasileira e sobre a “democratização” da imagem provocada pelas novas tecnologias.
Como vai a fotografia brasileira?
Eu discordo de quem diz que a gente tem uma presença representativa. Eu acho que a nossa produção é maior do que a exposição que a gente tem. A partir dos anos de 1950, a gente tem uma produção de primeira linha, uma cultura visual rara. Se a gente for considerar tecnicamente, na imagem impressa, nós temos uma cultura de grande qualidade. A revista O Cruzeiro, por exemplo, começou a trabalhar com rotogravura [processo de impressão direta, cujo nome deriva do princípio rotativo das impressoras utilizadas] nos anos de 1920. Ela foi a primeira revista impressa em rotogravura. A Manchete também foi impressa em roto até o seu final. Então a gente tem uma acuidade visual, e não percebe o quanto é exigente para ver as coisas. Nós temos uma tradição da imagem impressa.
E por que você ressalta os anos de 1950?
A partir dessa década, com a imigração de alguns europeus – e basicamente a Editora Abril, a partir dos anos de 1960 –, cria-se uma escola, pessoas que ainda estão vivas hoje e que foram fundamentais. Essas pessoas acabaram criando um ambiente. E a partir dos anos de 1950 começam a ser publicadas as grandes matérias, sobre temas como a questão da descoberta do território [brasileiro], que é uma coisa recente para nós. Rondônia foi colonizada nos anos de 1970, por exemplo. Um processo registrado pelo [fotógrafo] Marcos Santilli, que ficou quase 15 anos lá. Então com essa coisa dos anos de 1950, dessa marcha para o interior, a fundação de Brasília, imediatamente as revistas começaram a fazer essas matérias. E daí a gente tem uma produção. Infelizmente, ela não é, na minha opinião, representativa no caso jornalístico – nem no âmbito da própria imprensa brasileira. Acho que existem matérias e materiais [série de imagens] de inúmeros fotógrafos que eu nunca vi impressas. E por diversos motivos. Existe um desrespeito muito grande com relação à profissão – jornalista fotógrafo geralmente quando entra na imprensa recebe mais ou menos a metade do que um repórter que, às vezes, estudou na mesma classe que ele.
A categoria ganha menos?
Exato. E outra coisa: o fotógrafo quase não participa da decisão da pauta, isso fica na mão do [pessoal de] texto. Tanto que muitas vezes você vê que existe, na verdade, uma desqualificação da imagem. Se a imagem é boa demais, eles cortam. Eu me lembro que na Folha de S.Paulo a gente era obrigado a fazer uma opção [de foto] vertical e uma horizontal. Havia certa prisão da direção de arte. Acho isso muito engraçado porque nós não atingimos uma excelência editorial com respeito à imagem, e no momento em que a gente tem toda a oportunidade e talento em profusão, isso já vem enquadrado em parâmetros que não são da imagem. Porque às vezes o contexto, a informação necessita de um tratamento mais respeitoso. Quanto à questão da visibilidade hoje, eu não acho que [o problema] é da fotografia brasileira, mas sim da fotografia em geral.
Você acredita que a fotografia brasileira participa da sociedade de massa?
Acho. Isso começa, na verdade, com a Magnum [agência de fotografia criada nos anos de 1930 pelo fotógrafo húngaro Robert Capa e que começou registrando cenas da Primeira Guerra Mundial]. Depois disso, já na virada dos anos de 1940 para 1950, a fotografia passa a ter voz como um produto cultural que discute a contemporaneidade. Isso dentro do jornalismo.
Seria nesse momento que a fotografia deixa de ser, digamos, apenas um instrumento de apoio ao texto?
No jornalismo, sim. Na arte, que é um outro parâmetro, isso acontece um pouco antes. Você tem um momento, na virada do século 19 para o século 20, quando o movimento pictorialista reúne fotógrafos que passam a imitar a pintura e ali existe uma exceção da fotografia como arte, mas como micagem, como repetição. Aí umas pessoas se revoltam contra isso, em vários países, e partem para uma documentação mais realista. No jornalismo [a fotografia], há documentações importantes também, em momentos como a Guerra da Crimeia [de 1853 a 1856, conflito entre a Rússia e uma aliança formada pelo Reino Unido, França e Império de Piemonte-Sardenha (atual Itália), para defender o Império Turco-Otomano (atual Turquia) da invasão russa] e Guerra da Secessão norte-americana [Guerra Civil ocorrida nos Estados Unidos, de 1861 a 1865, entre os estados do sul e os do norte]. Mas, no que diz respeito a mercado, valores, compra de obras, é esse momento do pictoralismo mesmo.
É quando a fotografia ganha “status” de arte?
O que acontece com o mercado, para falar de visibilidade, é que, quando a obra de arte tradicional, clássica, em meados dos anos de 1970, pula de 50 mil dólares para milhões de dólares, ele fica carente de produto. Porque quantas pessoas podem comprar um quadro a esse preço? Então a fotografia entra suprindo esse espaço e você pode pagar cerca de 20 mil dólares numa obra [uma foto] de alguém que é tão conhecido, tão falado, tão famoso, quanto um artista plástico. Afinal, você tem pessoas que consomem pelo valor artístico, pelo envolvimento, pela paixão, por estar inserido naquele contexto histórico etc., mas há pessoas que compram porque têm dinheiro e querem colocar alguém famoso na parede. Não estou querendo comparar as duas artes, mas nesse sentido tanto um artista plástico quanto um fotógrafo, do ponto de vista do reconhecimento, de quem produziu aquilo, tornaram-se ícones hoje. E a fotografia também se valorizou. Então hoje temos imagens vendidas por dois, três milhões de euros. As fotos históricas, por exemplo, já passaram de um milhão de dólares há alguns anos.
Você acha que a produção fotográfica brasileira tem uma identidade?
Existe uma certa picardia, uma ligação com a música, com o samba, que, em certos momentos, permeia alguns artistas. O Valério Vieira, que é um cômico, um [fotógrafo] que é de um humor tremendo. Ele tem uma imagem, chamada 30 Valérios, que é um sarau com 30 pessoas, todas “interpretadas” por ele mesmo – tem de garçom turco, banda de música passando, pessoas que estão assistindo, e é tudo ele. É uma imagem feita em 1901. Agora, sobre nós termos uma característica, eu digo que alguns artistas brasileiros, sem dúvida, estão tão inseridos no contexto brasileiro, tão imersos no imaginário, no cotidiano, que acabam extraindo uma realidade que talvez só um brasileiro pudesse extrair. Então, daí surgiria uma identidade. Mas é muito mais, na minha opinião, algo ligado ao objeto do que ao artista em si.
É então o contexto, mais do que a técnica, que acaba sugerindo uma identidade?
Acho que sim, porque, veja você, os dois maiores fotógrafos brasileiros são formados no exterior: Sebastião Salgado e Vic Muniz. Um deles fotografa com a tradição artística norte-americana, que é o Muniz, e o outro, com a tradição francesa, que é o Salgado. O mundo considera ambos brasileiros. Mas não vejo, por exemplo, uma Tarsila, um Oswald de Andrade ou um Glauber Rocha da fotografia brasileira. Adoraria estar errado, de repente, vem alguém com uma tese qualquer, enfim. Certa vez eu li uma crítica que dizia que as artes visuais brasileiras não têm nenhum Machado de Assis, mas que o concretismo brasileiro é o nosso Machado de Assis. E eu acredito que na fotografia é mais ou menos assim.
Você citou o Sebastião Salgado. Você não acha que ele tem algo ligado, em termos de conteúdo, a um certo pensamento brasileiro que vem lá dos anos de 1960, como o Cinema Novo, por exemplo?
Esteticamente, eu posso até concordar. Mas eu acho que a gente não pode esquecer que a vida tem um pouco a ver com as oportunidades. A gente vai por um caminho. São poucas as pessoas que têm o domínio da dimensão humana.
Como você vê a relação da imprensa com a fotografia hoje?
Tem uma molecada infernal por aí. E no Brasil inteiro: Recife, Porto Alegre, não é só no eixo Rio-São Paulo. Agora, vejo que as pessoas não percebem o potencial da coisa, quer dizer, você depende de um projeto de direção de arte para estourar uma foto numa página. Não precisa acabar o mundo, não precisa matar o Kennedy ou a gente ganhar a Copa do Mundo para estourar uma foto na página. Há imagens que contam no nosso dia-a-dia.
A que você credita esse problema?
A imprensa está numa crise, né? Com os blogs e essa coisa toda. Nesse momento, está todo mundo querendo viver dentro do próprio reality show. Hoje você tem como contrapor a informação que recebe. Você tem como desmontar essa informação, principalmente de política e economia. Antes você era obrigado a aceitar o que vinha dos jornais. Você lia o Estadão [jornal O Estado de S.Paulo], a Folha, o Jornal do Brasil ou O Globo e procurava a visão mais coerente com a sua identidade, mas não tinha como questionar o que estava ali. E hoje você tem. É maravilhoso.
Mas e do ponto de vista da fotografia?
Acho que o fotógrafo está numa crise também. E a fotografia é fundamental para o pós-modernismo, fundamental para o momento atual das artes plásticas. Uma ponta da discussão da contemporaneidade são as artes visuais. É uma das questões fundamentais. A imagem que discute e não importa a técnica, se é pintura, desenho. E, de repente, o mercado se aproveita disso, e daí voltamos à questão inicial sobre a visibilidade. Existe uma produção enorme sendo feita agora e existe uma tentativa, graças aos meios de incentivo, de tirar o represamento da nossa produção dos últimos 50 anos. E uma coisa que acho fundamental é que nós ainda não temos um centro de memória no Brasil.
Mas esses museus da imagem e do som que existem no Brasil não cumprem esse papel?
Não. A gente não tem um órgão específico para isso no Brasil. Já nos Estados Unidos existem uns 3 mil. Qualquer biblioteca, qualquer universidade [nos Estados Unidos] tem ali sua sala climatizada, sua pesquisa, sua digitalização. Porque um museu morto e enterrado não serve para nada, ele tem que disponibilizar [seu acervo]. Ou seja, a gente não fez a lição de casa no sentido de disponibilizar [a produção] quando ela era analógica e a gente ainda não está fazendo a transição para o momento digital, sendo que o material de 100 anos atrás já está degradado, e começa a se degradar também o material pós-Guerra [Primeira Guerra Mundial]. Sei de jornais jogando fora milhões de fotos. Fui a Recife há uns cinco anos e vi uma caçamba em frente a um jornal com um milhão e meio de fotografias dos anos de 1930, negativos, no lixo.
Há alguma movimentação para a criação de um centro de memória?
Não tem. As artes visuais não têm representação nem municipal nem estadual nem federal. Temos o Centro Cultural São Paulo, com um departamento de artes visuais, mas não temos um órgão específico.
E a internet como um depositário de memória? Por que você pode encontrar na rede blogs e sites com um monte de coisas, isso não supre essa falta?
Não. A gente ainda está correndo atrás. Porque existe uma série de questões. Uma coisa é você reproduzir um acervo, outra é você codificá-lo. De que ano é tal foto, quem tirou, ou seja, você cria o ecossistema que cerca aquilo. Porque no momento em que você faz essa lição de casa, isso infla a coisa, ela começa a se relacionar com outras. Porque se você só disponibilizar as imagens, vem qualquer um e diz que é dele, diz que é autor da imagem, tem um monte de oportunistas por aí.
Se alguém quiser estudar a história da fotografia brasileira e quiser ver algumas imagens, como essa pessoa faz?
Não faz. Quem for levantar onde está esse acervo vai dar com a cara na porta. No Arquivo do Estado [Arquivo Público do Estado de São Paulo], eu acredito, se a pessoa está fazendo um mestrado ou algo nesse sentido, ela até tem acesso. Agora os museus não têm nenhum técnico para disponibilizar esse material. Eu sou curador porque faço trabalho com artistas contemporâneos de quem eu vou até na casa. Eu pesquiso, amplio e faço, ou seja, eu viabilizo recursos para fazer a pesquisa, porque se depender do artista, ele também não tem a pesquisa feita, não tem cópias, a maioria não tem portfólio.
E dos mais antigos?
Nesses casos você tem quem seja dono do material, como a família, por exemplo. Mas você não tem acesso.
E um nome como o José Oiticica, por exemplo?
Ele está no MAM do Rio de Janeiro, se não me engano. Mas o normal é o seguinte: eu vou para Nova York, por exemplo, daí eu passo um e-mail para o curador do local, me apresento, digo o que estou fazendo, que artista eu quero ver etc. Daí eles me agendam, quantas horas etc. Quando eu chego lá, encontro um sujeito me esperando, e que me leva para o arquivo, lá já está a pasta me esperando, eu sento e fico determinado tempo com o material.
E no Brasil...
Isso não existe aqui em nenhum lugar que eu conheça. O Masp conseguiu agora fazer um livro sobre o acervo deles, mas, mesmo assim, deve ser 20% ou 30%. O MAM tem também 30% do acervo documentado. Mas, para você olhar a obra, precisa ter acesso, precisa ter um impresso [uma cópia da obra] para você saber de que informação você vai precisar, o que está na foto, no quadro, no documento. Daí você anota tudo e depois solicita ver o que você quer. Você não precisa ver tudo [todas as obras], mas você precisa ter acesso a cinquenta reproduções, por exemplo.
Mas como se faz para pesquisar fotografia no Brasil?
A gente tem algumas pessoas que você tem que perseguir, ver onde elas vão dar palestra, enfim, correr atrás delas. Mas, por exemplo, um dos meus sonhos é ouvir a história de um menino desses que saiu depois de quatro anos de Senac [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, que tem um curso de fotografia em nível superior] e que, porque entendia de fotografia, tenha chegado num diretor de arte e desancado o sujeito.
Como você acha que a iniciativa pública lida com isso?
Aqui as coisas se sobrepõem, são abandonadas, ou seja, não tem projeto. Nem continuidade nem projeto.
Como você interpreta a relação da fotografia com a publicidade?
Aí é uma questão de arte aplicada. Tecnicamente é o [trabalho] mais bem realizado no Brasil – isso na média. Mas há fotografia científica, expedições, coisas que eu faço, que são tão ou mais complexas do que a publicidade. A diferença da publicidade é que você tem dinheiro. A quantia que aquilo demandar para ser feito vai sair. E nas outras áreas você dá um jeito. Não importa muito o mérito – às vezes você faz da melhor maneira possível, noutras vezes não [quando se fala em fotografia publicitária]. O público, em geral, pensa na Gisele Bündchen ou no ator mais bonito. Mas não é só isso, o que está por trás é uma infraestrutura infernal: diretor de arte, artistas, maquiadores, cenógrafos, pintores. Uma foto [de publicidade] pode envolver 15 profissionais fundamentais para que aquilo seja produzido.
Qual o abrigo da fotografia no Brasil com o fim de revistas como a Manchete?
São os blogs. Recentemente, eu soube que o Luis Nassif começou a publicar uns portfólios, algumas revistas digitais de fotógrafos – com projeto editorial – que recebem material e publicam. Mas essa não é a maneira de ver. Meu trabalho, por exemplo, está completamente vinculado à materialidade, o meu trabalho é para ir para a parede.
Hoje vemos diversos novos espaços para exposição. Isso já não seria um indício de uma abertura para a fotografia?
Seria, mas falta um norte, falta a crítica, falta a historiografia, que é o que cataloga essa produção. Mas não se percebeu que é preciso criar uma instituição para documentar a produção. A gente não tem essa cultura, é muito louco isso. Uma vez, num debate, eu disse para um colega fotógrafo que eu adoraria que meus netos pudessem um dia ver uma foto dele daqui a 50 anos e dizer: “Puxa vida, o vovô era amigo desse fotógrafo”. Ou seja, é uma questão de ser possível contar a nossa história. Então se trata, realmente, de uma contradição. Porque a informática permite você suprir uma deficiência desse momento histórico.
Mas você não acha incrível poder, por exemplo, acompanhar as férias do seu filho por meio das fotos que ele coloca no blog?
Mas não é disso que reclamo e nem digo que isso não tem sua importância. Hoje, de fato, chegamos a um momento em que todos podem expor sua visão e de forma democrática.
Então, mas isso não é memória?
É, mas num determinado momento é preciso organizar isso. Porque se não isso se dilui.
Há jornais que publicam imagens feitas pelos próprios leitores, por exemplo...
Mas veja, acho que essa ultraespecialização pela qual o fotógrafo teve que passar num determinado momento está sendo questionada. Porque todo mundo fotografa, mas no sentido do registro, do documento. Porém, o sentido do ensaio, da linguagem, de como contar a história, isso é outro processo.
Você acredita que essa “democratização” da fotografia, por conta desses celulares com câmera, pode vir a criar uma nova linguagem?
Não, eu vejo como mais uma banalização. Porque mais de 90% do que as pessoas fazem é jogado fora – ou seja, a pessoa passa a foto que ela fez no celular para o computador, vê uma vez só, nunca imprime e depois joga fora.