Postado em 01/09/1999
Como o mercado pode ser um bom parceiro da mata atlântica
ROBERTO HOMEM DE MELLO
Embora às vezes pareça um assunto distante, só acessível a militantes ecológicos, jornalistas internacionais e professores universitários, a mata atlântica está presente no dia-a-dia do brasileiro. Muitas donas de casa não sabem, mas quando colocam no carrinho de supermercado suco de caju ou de maracujá, palmito, chá-mate, pinhão, xampu de jaborandi, um vaso de xaxim ou uma vassoura de piaçava, entre várias outras mercadorias, estão levando para casa produtos originários da mata atlântica.
Em seminário realizado na capital paulista de 29 de junho a 2 de julho, foi divulgada a idéia de fortalecer a ligação desses produtos com sua origem, numa estratégia de marketing que aproveite o crescente apelo da "marca" mata atlântica no mercado. O evento em questão, no qual também foi proposta a criação de uma bolsa de futuros de orquídeas – outra espécie da mata atlântica –, demonstra que é um erro acusar indistintamente os ambientalistas de preservacionismo xiita. Idéias como as citadas acima, que caberiam muito bem em revistas de economia e negócios, foram debatidas sem preconceito no I Seminário Nacional sobre Recursos Florestais da Mata Atlântica.
Iniciativa do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (CNRBMA), entidade que reúne representantes do poder público, ONGs e universidades, o seminário é um dos frutos do Projeto Inventário dos Recursos Florestais da Mata Atlântica, um estudo de fôlego sobre espécies vegetais de interesse comercial oriundas desse ambiente, abrangendo aspectos ecológicos, econômicos e sociais.
O estudo foi um dos dez projetos escolhidos em 1997, entre mais de mil inscritos, para receber um financiamento no valor de R$ 337 mil do Funbio (Fundo Brasileiro para a Biodiversidade), com compromisso de conclusão em dezembro deste ano. "Mas temos a clara intenção de continuá-lo", diz Clayton Ferreira Lino, diretor técnico do CNRBMA e coordenador do projeto, que tem como parceiros a Fundação SOS Mata Atlântica, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e o Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Para Lino, a pesquisa explora "um novo e importantíssimo filão de estudos da mata atlântica" e pode apontar novas estratégias para a conservação e uso da floresta, além de enriquecer o conhecimento disponível sobre o assunto.
Uma das contribuições do projeto foi reunir informações de significativa abrangência geográfica, pois todas as regiões do país com remanescentes da mata atlântica estão representadas. Foram estudadas espécies tipicamente nordestinas – como caju e piaçava –, sulinas – como araucária e erva-mate – e do sudeste – como palmito-juçara, bromélias, orquídeas e carqueja.
Essas espécies foram examinadas por biólogos e botânicos, que tentaram reconstituir sua distribuição original, avaliar seu status de conservação e descrever aspectos como a variedade genética. E, em outra frente, economistas e consultores analisaram a cadeia produtiva de cada espécie.
Erva lucrativa
As pesquisas do ponto de vista econômico trouxeram à tona dados importantes. Revelaram, por exemplo, que a castanha de caju representa nada menos que 40% das exportações do Ceará. De 1965 a 1993, a área plantada passou de 53 mil hectares para 700 mil hectares.
Tal sucesso, no entanto, trouxe também preocupações. O inventário está procurando descobrir se, nesse caso, essa espécie da mata atlântica não estaria sendo motivo para o extermínio de todas as outras na região. "Mas os levantamentos até agora indicam que a maior parte foi uma substituição positiva, de culturas anteriores que estavam degradadas", diz Lino.
Outro exemplo de cultura bem-sucedida é a da erva-mate, que movimenta por ano US$ 180 milhões. Mas mais importante que isso é o número de trabalhadores envolvidos na sua produção: cerca de 700 mil, quantidade comparável ao total de empregos – diretos e indiretos – do setor automotivo no país, de acordo com a Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotivos (Anfavea).
Lino ressalva que essa atividade muitas vezes não proporciona um bom nível de renda. Além disso, o número de empregos não pode ser tomado como algo muito preciso, pois oscila ao sabor das safras do produto. "Mas mesmo que se tratasse de dois terços disso, ainda seria extremamente representativo", diz. Enquanto os postos de trabalho nas montadoras são alvo de debate nacional, argumenta o coordenador do projeto, um setor com potencial de empregos semelhante não é nem sequer conhecido por boa parte dos brasileiros. "O peso político da erva-mate é muito pequeno em relação ao seu significado econômico", resume Lino.
Com a divulgação do inventário, o CNRBMA espera colocar em evidência a erva-mate, não apenas por seu mercado de trabalho, mas também pelo importante fato de seu manejo ser – em tese, pelo menos – bastante favorável à conservação da floresta. Afinal, trata-se de uma espécie de sub-bosque, ou seja, que depende da sombra de outras árvores para seu desenvolvimento – o que também ocorre com o xaxim, as orquídeas e as bromélias.
Mas nem sempre isso é suficiente para preservar a mata. Para otimizar a área disponível, alguns produtores de erva-mate cortam as outras árvores e promovem um adensamento da plantação, utilizando os próprios pés mais antigos para proteger os mais novos do contato direto com o sol.
Péssima estratégia
O caso do palmito, por sua vez, é bem mais complicado. Para Lino, a política meramente proibitiva adotada nos últimos tempos nessa questão apenas desestimula aqueles que poderiam dedicar-se a uma produção dentro das exigências legais. Na outra face da moeda, às vezes comunidades inteiras são atraídas para a clandestinidade, que só traz prejuízos ao país. "Ela desestrutura o mercado, não permite controle sanitário e inibe experimentos de manejo." Pior: a clandestinidade pode se tornar "uma forma de vida socialmente aceita" e ensinada às crianças, que muitas vezes acompanham e ajudam o pai nas extrações noturnas.
Em suma, Lino considera a proibição uma "péssima estratégia", pois nem sequer evita a destruição das espécies que se pretende proteger. Por outro lado, simplesmente liberar a extração seria uma postura "tão perniciosa quanto a anterior". Como alternativa, o estudo propõe, paralelamente a uma fiscalização "pesada", programas de capacitação, linhas de crédito, garantias de plantio e colheita e estímulo a experimentos de manejo com acompanhamento de universidade ou instituto de pesquisa, com o objetivo de transformar palmiteiros predatórios em cultivadores.
Banquinha
Em relação à araucária, os pesquisadores identificaram outro dilema. Embora no longo prazo o pinhão colhido da árvore seja mais vantajoso, pois significa renda garantida por muitos anos, às vezes a situação aperta e acaba-se vendendo a madeira, o que restringe a possibilidade de ganhos futuros e contribui para a destruição da mata. Para aumentar o leque de opções dos produtores, segundo os pesquisadores, a solução seria o modelo de culturas consorciadas, ou seja, reservar uma parte das araucárias para madeira e outra para pinhão, e ao mesmo tempo manter pasto para gado e aproveitar o terreno também para apicultura. Segundo Lino, além de aumentar sensivelmente a renda, essa solução propiciaria um equilíbrio ecológico muito maior que qualquer das outras opções isoladamente.
Mas uma das recomendações mais importantes do seminário, por ser mais abrangente e ambiciosa, é utilizar o mercado a favor da mata atlântica. Para isso, Lino considera imprescindível que haja mecanismos de certificação que garantam não apenas a origem, mas também um manejo adequado dos produtos. Uma vez superada essa etapa, seria possível adotar uma idéia que o coordenador do estudo já propôs a uma rede de supermercados: instalar banquinhas com o título "aqui tem mata atlântica", nas quais só haveria produtos certificados. Para os incautos, uma advertência: a idéia de Lino já está registrada.
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