
Um presente de Natal
por Adriana Lisboa
Era um cachorro honestamente sujo, esfomeado, honestamente cachorro. E as mãos humanas, inconstantes: difícil saber a quais ele podia recorrer, e diante de quais devia escorraçar a si mesmo, preventivo.
O mundo lhe apresentava uma nova ordem fazia algumas semanas. Não que ele contabilizasse o tempo. Mas contabilizava as noites e os dias, numa linha pura, presa ao ritmo das experiências. A noite se seguia ao dia que se seguia à noite que se seguia ao dia, e as duas pontas se perdiam em lugares velados.
Antes era assim, também, mas dias e noites eram coisas bem diferentes. Limpas. Saciadas. Eram coisas sem esforço.
Não havia, naquele antes, um erro localizável, capaz de justificar o que aconteceu depois. Um erro como nos dias em que, ainda muito pequeno, e com dentes nascendo ferozmente dentro da boca, roeu o pedal da bicicleta, o sapato e o telefone celular. Naqueles dias, recebeu gritos, mas depois recebeu também pequenos objetos roíveis cuja destruição não parecia incomodar a ninguém. Ele não via diferenças essenciais, ontológicas, entre aqueles ossos de borracha e os pés da cadeira, mas tinha a disciplina na alma. A disciplina era o seu futuro, o seu objetivo, a sua vida. Acatava mesmo aquilo que não fazia qualquer sentido, e assim amansava aquela rusticidade sua, aquele jeito tão cachorro com que tinha vindo ao mundo.
De fato era um rústico, nos primeiros meses. Mas perseverou. Aprendeu a lógica ilógica embutida na palavra doméstico, e virou isso: um animal doméstico. Seu pelo chegava a combinar com a cor do sofá que ele já não roía, e a cor do sofá por sua vez combinava com a cor das paredes, e o seu mundo era um pequeno paraíso monocromático.
Aprendeu a corresponder, decorou seu nome. Caiu de amores, como um bom cavalheiro cheio de cortesia e das melhores intenções, pela menina. Aquela que o deixava subir no sofá e lhe dava biscoitos. Aquela que corria com ele pelo gramado e atirava uma bolinha amarela para que ele apanhasse, até ela se cansar.
As duas pessoas grandes o haviam dado de presente para a menina. Naquele dia ele foi lavado com água morna e uma substância desagradável que fazia espuma sobre o seu corpo. Depois empunharam um objeto capaz de produzir vento artificial e um ruído alto, incômodo. Ao final de tudo, ele sentiu sono, e as duas pessoas grandes amarraram uma fita verde, vermelha e prata em torno do seu pescoço. Tentou apanhá-la com os dentes, mas o laço era astuto e ficava atrás, onde ele não alcançava – naquele intervalo entre as orelhas, corpo estranhamente inacessível. Ele dormiu.
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Acordou quando chegaram num lugar espaçoso e novo, cheirando a algo muito atraente ao seu estômago. Havia um pinheiro fincado dentro da sala, cheio de objetos brilhantes pendurados nos galhos, feito uma senhora gorda e rica usando todas as suas joias ao mesmo tempo. Naquele dia ele correu, roeu coisas, deu seus pequenos latidos ainda infantis e toscos, deixou que a menina cobrisse de beijos e afagos o seu pelo limpo, comeu, dormiu.
E depois cresceu.
Fez o possível. Adequou-se como uma roupa usada dia após dia, que vai guardando o contorno orgânico do dono. Ele era, em essência, isso: o contorno orgânico do dono. Ele era uma conveniência de quatro patas e pelo, sempre pronto, sempre a postos, mesmo no meio do sono. Fosse o que fosse aquilo que requeriam dele.
Cresceu. E, depois de crescido, já não tinha mais o focinho curto e a barriga redonda dos primeiros meses – da época em que era um filhote rústico, um cachorro em essência, cheio de dentes indistintamente roedores na boca.
A menina agora descartava o seu amor puro e cavalheiresco como quem está com dor de cabeça e não tem tempo. Não havia, nela, interesse por cachorros crescidos, sem barrigas redondas e focinhos curtos, sem latidos experimentais e patas que tropeçavam nos degraus, sem aquele corpo pequenino e troncudo de recém-chegado.
E o bicho-brinquedo da menina perdeu o sentido, a razão de ser. Ele era um namorado insistente, antes da hora ainda por cima. Era um dever de casa. Era uma coisa comum, cotidiana. Quando a vida era feita de novidades frescas! Quando a vida não precisava, ainda, de tédio!
O tédio era algo essencialmente adulto. Vinha no pacote do trabalho, dos horários, das alianças e das úlceras. A menina não queria um cachorro crescido. Ela queria um filhote sempre filhote, queria uma pequenina existência esfuziante e sua, uma companhia feito gás de refrigerante. O que acontece quando as pessoas deixam o refrigerante aberto por muito tempo? Pois é.
Foi assim que um dia o cachorro entrou no carro para um passeio, e era um passeio longo. Chegaram a um lugar desconhecido. Um parque imenso, com árvores nas beiradas e pessoas aqui e ali, e outros cachorros de coleira.
Tiraram a sua, para que ele corresse, e ele correu. Correu com todos os músculos das suas quatro patas jovens, com toda a alegria de virar um movimento, sem outra questão no mundo. Mais nada. Só ele e a sua vida integral, a sua vida.
Quando acabou de correr e se virou, todo alegria e língua rosada, as pessoas familiares não estavam mais lá.
Tinham ido embora, levando junto o cheiro delas, e ele percebeu de imediato a nova ordem do mundo. Não foi bem medo. Não foi raiva, nenhum traço. Foi surpresa. Confusão. No desajuste do seu corpo que não devia ter crescido mas cresceu, ele foi aos poucos edificando aquele novo cachorro que ele era, agora: honestamente sujo, esfomeado, honestamente cachorro.
Pelas ruas, tudo se enfeitava mais uma vez. Havia pinheiros fincados nas vitrines das lojas, cheios de objetos brilhantes pendurados nos galhos, feito senhoras gordas e ricas usando todas as suas joias ao mesmo tempo. Havia fileiras de luzes pequeninas se enroscando nas grades e nas árvores.
Naquele ano, a menina ganharia de presente um outro filhote, um cãozinho de barriga redonda e focinho curto que chegaria em casa limpo e inocente. Com um laço de fita amarrado no pescoço, nas cores do Natal.
Adriana Lisboa é autora, entre outros livros, de Rakushisha (Rocco, 2007)