Postado em 02/07/2009
Quem gosta de música eletrônica sabe que alguns dos maiores nomes do gênero não são dos Estados Unidos, meca do showbusiness, ou da Inglaterra, centro europeu da vanguarda musical. Bandas, duplas e DJs como Air, Daft Punk, Martin Solveig e Laurent Garnier podem até cantar em inglês – recurso para quem quer conquistar o mercado internacional –, mas a nacionalidade de seus passaportes é vermelha, azul e branca. Leia-se, são todos franceses.
No entanto, não é de hoje que o sotaque francês frequenta as atividades artísticas nacionais. Houve época, em que era predominante. Por aqui essa história é antiga. “No começo do século 20, a canção francesa era absoluta no Brasil e no mundo”, explica o jornalista Ruy Castro. “Valsas como Frou-frou [de M.Chatou, Monreal e Blondeau], Amoureuse [de A.Berger] e Fascination [F.D. Marchetti e M. de Feraudy] – tão famosa que, 70 anos depois, foi gravada até pela Elis Regina como Fascinação – tocavam em todos os gramofones e pianos.”
Segundo ele, outros nomes franceses fizeram muito sucesso por aqui – antes da “supremacia americana nos anos 1920”, conforme ressalta –, como Mistinguette, Josephine Baker, Maurice Chevalier, Edith Piaf e Yves Montand. “Eram famosíssimos aqui”, diz. “Eu, por exemplo, conhecia todos eles quando criança por causa de meus pais. Depois, a partir dos anos 1950, já numa faixa mais intelectualizada, ouvia-se George Brassens, Léo Ferré, Juliette Gréco, Serge Reggiani e Jacques Brel.” Este último, muitos devem ter ouvido, mesmo sem saber.
Quantos já não ouviram a dramática balada romântica Ne Me Quitte Pas, famosa por aqui em meados dos anos de 1970 na voz da cantora Maysa – versão que fez novo sucesso ao ser usada na abertura da minissérie Presença de Anita, em 2001. “Mas populares mesmo eram Gilbert Bécaud, Charles Aznavour e Jacqueline François”, afirma Castro. “E quando digo popular, quero dizer que o fã deles era o mesmo brasileiro que gostava de Frank Sinatra, Nat King Cole, Doris Monteiro e Dolores Duran.”
Ainda que possivelmente os nomes franceses citados pelo jornalista não tenham ficado tanto na memória como Sinatra e Cole, ele salienta que, desde os anos de 1930, o brasileiro sempre se dividiu entre o amor pelo samba e o interesse pelos ritmos de diversas partes do mundo. “Já naquela época [década de 1930], ouvia-se muito por aqui não apenas os foxtrots americanos e as canções francesas, mas também os tangos argentinos, os boleros mexicanos e cubanos, as rumbas e os mambos cubanos, os fados portugueses, as canções napolitanas, as valsas vienenses. Eu, garoto nos anos 1950, tive a felicidade de ouvir tudo isso, até polcas alemãs.”
Je t’Aime...
De acordo com o jornalista e pesquisador, o surgimento do rock’n’roll, nos anos de 1950 e 1960, ofuscou o brilho das canções francesas no mundo todo. E no Brasil não foi diferente. “A música francesa e a do mundo inteiro decaíram por causa da ditadura do rock”, diz Castro.
O pesquisador musical Jairo Severiano concorda com a teoria. “A invasão mundial do rock contribuiu para a perda de popularidade da canção tradicional de todas as nacionalidades, inclusive a norte-americana.” No entanto, ambos se dizem devotados ouvintes de música francesa?até hoje. “Sempre gostei de ouvir os bons cantores franceses, como Maurice Chevalier, Jacqueline François, Charles Aznavour e outros menos votados”, declara Severiano. “Ainda ouço todos os que citei, tenho montes de discos deles, e também discos instrumentais de gente que adoro, como Paul Misraki, Michel Legrand e Boris Vian”, revela Castro.
Da mesma forma, ambos têm na memória a primeira vez que ouviram a talvez mais famosa música francesa aqui no Brasil: Je t’Aime, Moi Non Plus, de Serge Gainsbourg. “Ouvi quando saiu, por volta de 1970, achei uma bobagem e não vi nenhum motivo para escândalo”,?lembra Ruy Castro, referindo-se à polêmica que a canção gerou no mundo todo por conta de seu conteúdo erótico. “Quem lançou o disco no Brasil foi o selo do Pasquim.
Era um single/compacto, como se dizia, e que acabou proibido. Hoje tenho essa edição, que ficou raríssima. De vez em quando, ouço e acho divertido.” Severiano também minimiza o potencial de indignação gerado pela canção: “É uma bela canção erótica, sendo um tanto exagerada para a época a interpretação da dupla Gainsbourg e Birkin [Jane Birkin, atriz e cantora inglesa]. Se lançada hoje, não causaria escândalo...”
Com o Ano da França no Brasil, será possível conferir tanto os grandes nomes da música francesa – como Michel Legrand (que se apresentou com a cantora Patty Ascher, no dia 22 de junho, no Bourbon Street) e uma exposição sobre Serge Gainsbourg (em cartaz na Unidade Provisória Avenida Paulista até 7 de setembro – veja boxe O mundo de Serge) – quanto os jovens talentos. Diversas casas de espetáculos, instituições culturais e locais públicos da cidade vão abrigar uma programação que, até novembro, vai atualizar os ouvidos brasileiros sobre a música vinda da terra de Edith Piaf. Entre os destaques, a apresentação do maestro Cláudio Cruz regendo a Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp) durante exibição do filme Études sur Paris (1928) de André Sauvage (nos dias 13, 14 e 15 de julho, na Sala São Paulo) e o grande concerto de encerramento do Ano, no dia 15 de novembro, no Parque da Independência, com a presença, entre outros, do grupo de música pop Nouvelle Vague e do DJ Laurent Garnier, que dividirão o palco com os artistas brasileiros Vanessa da Mata, Jorge Benjor e Lenine. O Sesc São Paulo também receberá diversas atrações, veja o boxe Sotaque francês, com os destaques.
O compositor de trilhas de cinema Michel Legrand (foto), nascido em Paris, em 1932, cresceu em uma família de músicos. O pai era maestro, compositor e arranjador e sua irmã mais velha, Christine, viria a se tornar uma conceituada cantora. Ainda criança, aos 9 anos de idade, Legrand ingressou no Conservatório de Música de Paris, com status de prodígio já que tinha quatro anos a menos do que a idade permitida para iniciar os estudos na instituição, e não demorou para perceber – e mostrar a todos – que a música lhe corria nas veias. Legrand dominou, logo de início, mais de 12 instrumentos. “Eu me lembro que no teste de solfejo [leitura musical por notas, por vocalização ou por sílabas sem nexo, para se apreender a melodia], o pianista tocou a peça [a música] toda antes de a aula começar”, contou o compositor em uma entrevista ao jornal francês Le Figaro. “Quando começou o teste eu já tinha escrito toda a música.” Como acontecia a outros virtuoses, Legrand foi levado a ter aulas com Nadia Boulanger, famosa professora de música, no início dos anos de 1950. “Um monstro e ao mesmo tempo, e inegavelmente, uma mestre que formou todos os maiores compositores do mundo”, conta Legrand. “Estudei com ela por sete anos. Lá aprendi o que era rigor, disciplina e quando o trabalho dela comigo acabou, eu tinha 20 anos, eu já estava pronto para tudo.”
De fato, a autoconfiança veio a ser a primeira qualidade “extracurricular” do compositor. Afinal foi ela que permitiu que, aos 22 anos, ele procurasse uma gravadora com uma ideia clara: fazer um disco com os maiores músicos de jazz da época. “Ele foi de uma ousadia incrível”, diz o jornalista especializado em música Vicente Adorno, fã confesso do trabalho de Legrand. “Foi para os Estados Unidos, se apresentou para uma grande gravadora e disse que queria gravar um disco com os melhores nomes do jazz que existiam na época. Disseram, claro, que ele estava maluco. Só que alguns jazzistas já conheciam o trabalho dele porque ele tinha sido arranjador de um conjunto vocal francês para o qual escrevia harmonias louquíssimas.”
Com seu talento já chamando a atenção nas rodas de jazz nos Estados Unidos, o jovem conseguiu o que queria e muito mais. Não só foi lançado, ainda na primeira metade da década de 1950, o disco Le Grand Jazz, como ninguém mais ninguém menos que Miles Davis participou das gravações. “Miles Davis sempre foi uma pessoa mais fechada, mais na dele”, afirma Adorno. “Só que ele ouviu aquele zum zum zum [sobre Legrand e o disco que estava sendo gravado] e o Miles Davis tinha uma coisa impressionante: ele sempre estava de ouvidos abertos para o que era novo. Aí quando disseram que ele tinha que conhecer o tal do garoto francês ele botou o trompete debaixo do braço e foi ouvir um ensaio do Legrand, e disse: ‘Se eu gostar do que eu ouvir eu toco’.” Davis ouviu e gostou. “Com meia dúzia de compassos ele já decidiu participar”, diz Adorno. “Aí, a gravadora, claro, pensou: ‘Bom, se o Miles Davis gostou...’.” Foi assim que o topetudo garoto francês ficou conhecido na América como aquele que convenceu a nata do jazz da época a acompanhá-lo no estúdio. “Com esse disco, o Legrand chamou muita atenção e começaram a chamá-lo para escrever música para cinema”, conta o jornalista.
É aí que tem início uma fase na trajetória de Michel Legrand pela qual a maioria o conhece: a do autor de clássicos para as telas, como as trilhas de Os Guarda-chuvas do Amor, de 1966, pelo qual ganhou um Oscar e um Grammy, e Houve uma Vez um Verão (1971), que lhe rendeu um Globo de Ouro. “Os Guarda-chuvas do Amor, o filme, foi um estouro no mundo todo”, conta Vicente Adorno. “Logo, a trilha foi a consagração definitiva dele no cinema. Tanto que passou a não conseguir mais atender os pedidos, tinha mais gente pedindo trabalho para ele do que ele conseguia fazer.”