Postado em 02/12/2009
por Ugo Giorgetti
O cineasta Ugo Giorgetti nasceu na região central de São Paulo, de onde, como ele mesmo diz, jamais saiu: “Nunca vivi em outro lugar, o máximo que passei fora foram 20 dias”, contou ao Conselho Editorial da Revista E.
Um apaixonado pela metrópole? Não, exatamente. “Odeio São Paulo, mas estou condenado a ela. A São Paulo atual deve ter algum atrativo, mas não descobri ainda”. Não muito dado a meias palavras, Giorgetti é contundente no discurso assim como é em seus filmes, nos quais busca a realidade vista “de um ângulo que não foi explorado”. O que pode ser visto em longas como Sábado (1995), com sua sutil, mas latente, discussão sobre a diferença de classes, e O Príncipe (2002), que conta a história de um homem que retorna a São Paulo depois de 20 anos fora do país e que se defronta com uma cidade caótica e com amigos mudados pelo tempo.
“Denúncia social eu acho que não adianta”, defende. “O cinema não é apropriado para isso. Pelo menos não sei fazer esse tipo de cinema. Então, meus filmes são sobre pessoas e personagens, colocadas, contudo, dentro da realidade que as circunda.” Durante a conversa, o diretor de Boleiros – Era Uma Vez o Futebol (1998) e Boleiros 2 – Vencedores e Vencidos (2004), falou sobre a transição da publicidade para o cinema, sobre a indústria cinematográfica brasileira e, como bom boleiro, sobre futebol. Para o cineasta, esse esporte, “do ponto de vista do artista que se nutre dele, se continuar assim, tem poucos anos”. A seguir, alguns trechos da conversa.
Da publicidade para o cinema
Não fiz escola de cinema. Nos meus anos de formação isso não existia. Aprendi cinema fazendo publicidade, na prática. Aprendi da forma mais dura. Entrei no mundo do cinema publicitário, onde o trabalho era julgado estritamente em termos práticos, de resultados imediatos. Um comercial funciona ou não. Foi bom, porque aprendi a diferença entre vida real, isto é, dos negócios, e a vida um pouco irreal, mais amena, do cinema de longa-metragem de ficção. No cinema, você faz um filme e pode, de várias maneiras, camuflar os resultados dele, sejam artísticos ou de público. Na publicidade é a vida real em toda a sua crueza, não há proteção de críticos que podem gostar de seu filme, nada. A relação com quem encomenda o comercial é impessoal e frequentemente áspera. Se o cara não gostar do seu trabalho, você dança. É simples assim. Três comerciais malsucedidos, você baixa seu status. Quatro filmes, baixa mais um pouco, e cinco filmes você está fora. É mais ou menos isso. E durante muitos anos eu trabalhei assim. Sem rede de proteção nenhuma, enfrentando as vicissitudes de qualquer cidadão numa sociedade capitalista. No cinema de longa-metragem que se faz atualmente, a coisa ocorre de maneira um pouco diferente. Os filmes são patrocinados. Portanto, sua trajetória não está ligada totalmente a resultados de bilheteria. Se o cinema vivesse dentro das regras normais de mercado faliria amanhã de manhã. Por um lado o acesso ao patrocínio é sempre difícil e complicado; por outro, a liberdade que a falta de vínculo absoluto com a bilheteria proporciona facilita muito e mantém o cineasta mais ao abrigo das intempéries da realidade.
Contrassenso
Acho que o termo “indústria de cinema”, no Brasil, não tem muito sentido, se não for diretamente um contrassenso. Primeiro, porque a rigor não existe mais cinema, existe o complexo da atividade audiovisual, do qual o cinema é apenas parte. Se por cinema industrial queremos dizer um cinema que fala a multidões, às massas, ele já existe, vai muito bem, obrigado, e é a televisão. Claro que isso se deve a uma distorção particular do modelo brasileiro, no qual a televisão faz sua própria dramaturgia, sem recorrer minimamente a qualquer outra ramificação do audiovisual. Em outros países não é assim. A televisão não tem o monopólio da atividade dramatúrgica e tem que se suprir em outras fontes. De qualquer modo, a nossa televisão ocupou o lugar do cinema popular. As novelas não são mais do que o cinema industrial em outra instância, feito com grande sucesso. O que na minha opinião falta é exatamente um impulso para fazer um cinema que não seja cinema industrial, e que não contemple só os temas e a maneira de fazer cinema que a TV adota. Um cinema que mostre que há vida inteligente e entretenimento de alto nível espalhado pelo país. Que a própria televisão abra espaços para que sejam exibidos esses filmes e esses documentários “diferentes”. Que, por fim, desvie sua atenção para as minorias, inclusive as que existem entre seus próprios espectadores, que merecem espetáculos artisticamente menos toscos. Afinal, a essência da democracia não é precisamente a proteção das minorias?
Todo o cinema que se quiser industrial não estará fazendo mais do que a TV já faz. E geralmente muito pior, ou, então, como uma alternativa pobre ao que a televisão não pode fazer ainda.
O cineasta Ugo Giorgetti esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E em 16 de outubro de 2009 |
Filmes recentes
Se eu conseguir dois milhões de reais, filmo – porque nunca vou conseguir sete milhões. Eu sei onde estou. Não adianta tentar buscar oito inatingíveis milhões, quando posso fazer filmes com muito menos. Porém, não é sempre que consigo dois milhões. É, aliás, muito raro. Para Solo, eu consegui 300 mil reais. Chamei o [Antonio] Abujamra, pois é um grande ator, a quem estou ligado por longa amizade, e lhe disse que tinha um texto apropriado para ele. Ele leu e concordou em fazer. E esse filme é um monólogo, com o Abujamra falando para a câmera por 70 minutos. A dificuldade era fazer um filme com essas características e que não fosse chato. Odeio filmes chatos. Acho que evitamos esse perigo. Abujamra faz alguém de boa família de Higienópolis que, ao atingir certa idade, percebe que seu cotidiano é perturbado por toda uma série de coisas, que vão desde insignificantes e banais incidentes da vida prática até as memórias que teimam em não sair de sua cabeça. É uma sátira sobre a solidão. O Leon [Cakoff], que é o criador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, viu o filme e o convidou para a mostra [33ª Mostra Internacional de Cinema, realizada de 23 de outubro a 5 de novembro de 2009]. Fez mais. Viu, e também resolveu incluir na mostra, outro filme que acabo de fazer:
Paredes Nuas, um telefilme que fiz para a TV Cultura, e que adorei fazer. Acho ótimo o vídeo digital, agora com as novas câmeras. Está se aproximando muito do cinema. Quando comecei e alguém falava em vídeo, eu saía correndo, pois era uma coisa horrorosa. A diferença entre o vídeo e o cinema era enorme. Hoje, o digital continua não sendo cinema, e nunca vai ser, mas já tem personalidade própria e permite dentro de suas características a criação de atmosferas adequadas e necessárias para as cenas.
Opinião pessoal
Queria esclarecer que tudo que disse neste depoimento tem que ser entendido apenas como opiniões pessoais de alguém envolvido no cinema por muitos anos. Não passa disso. Não sou acadêmico, nem um teórico do cinema. Sou alguém, no meio do furacão, que tenta ver alguma coisa. Creio, aliás, que o artista não é a melhor pessoa para falar de seu trabalho e sua atividade.
“Se eu conseguir dois milhões de reais, eu filmo – porque nunca vou conseguir sete milhões. Sei onde estou. Não adianta tentar buscar oito inatingíveis milhões, quando posso fazer filmes com muito menos”