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A ferrovia perdida

Postado em 01/09/1999

Locomotiva Baldwin, de 1879 (Foto: Coleção Dana Merrill / Acervo Museu Paulista da USP)

Registro fotográfico documenta a saga da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, engolida pela selva amazônica

RODRIGO ARCO E FLEXA

É uma história fantástica, mas inteiramente real. Em plena selva amazônica, no começo do século, uma estrada de ferro de quase 400 quilômetros é construída por 30 mil trabalhadores de países da Europa, Ásia e América Latina. Cerca de 6 mil homens morrem durante a empreitada, até a própria ferrovia ser engolida pela floresta. Essa saga é um episódio singular da história brasileira: a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, também conhecida como a Ferrovia da Morte.

Existe apenas um registro visual dessa aventura, a coleção de fotografias realizadas pelo norte-americano Dana Merrill, entre 1907 e 1912. A partir de janeiro de 2000, essas imagens serão exibidas ao grande público pelo Museu Paulista da Universidade de São Paulo (o Museu do Ipiranga). O material pertencia ao jornalista e sertanista Manoel Rodrigues Ferreira. Em 1957, ele localizou os negativos das fotografias na redação do jornal "A Gazeta". A descoberta incentivou o jornalista a escrever uma série de artigos sobre a estrada de ferro, além de publicar o livro A ferrovia do diabo. Depois de guardar a coleção por décadas, porém, Ferreira não via mais condições de manter o acervo. Com o apoio de um grupo de pesquisadores da USP, o material foi adquirido pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), que doou a coleção para o Museu Paulista no começo deste ano.

São 189 negativos originais de Merrill, a maior parte deles em vidro. As imagens foram produzidas sob encomenda da construtora responsável pelo projeto, a empresa americana May, Jekyll & Randolph. Mas as fotos não são um registro burocrático da obra. Mostram o cotidiano dos trabalhadores durante a construção da ferrovia, destacando, entre outros aspectos, o embate do homem com a natureza. "É um material valioso, que documenta com propriedade esse momento da história do Brasil", afirma o historiador José Sebastião Witter, diretor do Museu Paulista. Ele enfatiza a importância de o acervo ter permanecido no país: "Se não ocorresse a doação, provavelmente o material seria vendido para o exterior", diz.

Já estão programadas mostras do material a partir de janeiro de 2000, no Rio de Janeiro, em São Paulo e outras cidades. O material será ainda digitalizado e disponibilizado na Internet, abrindo campo para novas pesquisas. "As fotografias permitem pensar desde a maneira como eram concebidas as ferrovias, até a ecologia da região", aponta Witter.

As imagens colocam ainda em evidência aspectos sociais e econômicos da ocupação da região, onde foi criado o estado de Rondônia. Esse, aliás, será o tema de um seminário que deve ocorrer paralelamente à exposição. "Pretendemos discutir questões como o destino dos descendentes dos imigrantes que trabalharam na ferrovia, além dos conflitos sociais e o problema da malária na região", diz a socióloga Sílvia Maria do Espírito Santo, pós-graduanda da Escola de Comunicações e Artes da USP e responsável pelo evento, juntamente com o fotógrafo Pedro Ribeiro, doutorando em história pela USP. Envolvidos com o assunto desde 1993, quando promoveram uma exposição da coleção de Merrill em São Paulo, eles participaram do processo que resultou na doação das imagens para o Museu Paulista. Além do seminário, os pesquisadores pretendem lançar um livro com o conteúdo das discussões e um CD-ROM sobre a história da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

A Ferrovia da Morte

A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré foi construída com o objetivo de facilitar o transporte de borracha na região, ligando os povoados de Porto Velho (atual capital de Rondônia) e Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia. A opção pela construção da ferrovia deveu-se ao grande número de cachoeiras ao longo dos rios Madeira e Mamoré, que impossibilitava o transporte fluvial. O projeto remonta à década de 1870, quando houve as primeiras tentativas de construção da ferrovia. Os investimentos iniciais foram realizados por empresas inglesas e americanas, mas acabaram interrompidos devido às inúmeras dificuldades técnicas para a execução do trabalho na região. A insalubridade do terreno, infestado de doenças tropicais, também foi decisiva para o fracasso das tentativas. A situação mudou, no entanto, com a virada do século. Em 1903, Brasil e Bolívia assinaram o Tratado de Petrópolis, encerrando a disputa fronteiriça na região. O acordo incorporou ao Brasil terras bolivianas que estavam ocupadas por seringueiros brasileiros. Em contrapartida, o Brasil assumiu o compromisso de construir uma estrada de ferro que viabilizasse o acesso da Bolívia ao Atlântico.

Em 1905, foi publicado o edital de concorrência para a construção, vencida pela construtora americana May, Jekyll & Randolph. Para a grande empreitada, realizada entre 1907 e 1912, a empresa contratou cerca de 30 mil trabalhadores em diferentes países. Além de brasileiros, o exército de operários foi integrado por italianos, gregos, dinamarqueses, poloneses, húngaros, indianos, jamaicanos, colombianos e panamenhos. Submetidos a intensas jornadas de trabalho, eles ainda enfrentaram as condições adversas da vida no mato. O que inclui doenças tropicais, calor intenso, falta de medicamentos e alimentação inadequada, além das péssimas condições sanitárias. Cerca de 6 mil homens morreram ao longo da empreitada, fato que originou a lenda de que existiria um trabalhador morto para cada dormente da ferrovia.

Trem fantasma

Mesmo com tantas baixas, a operação foi levada adiante. Em 1912, foi inaugurado o último trecho da ferrovia, totalizando 364 quilômetros de extensão (mais dois quilômetros foram incorporados em 1923). A estrada de ferro entrou em operação comercial, mas sua vida foi curta. A função estratégica da estrada de ferro foi reduzida com a construção de duas ferrovias, uma argentina e outra chilena, que criaram novas saídas marítimas para a Bolívia.

A produção de borracha entrou também em decadência, sofrendo a concorrência do Oriente. A situação agravou-se ainda mais com a Primeira Guerra Mundial, em 1914, e a abertura do Canal do Panamá, em 1915, culminando com a crise econômica de 1929. Esse conjunto de fatores gerou enormes dificuldades financeiras para a empresa responsável pela ferrovia, cuja conseqüência foi o arrendamento da estrada de ferro por parte do governo brasileiro, em 1931. Nas décadas seguintes, o sucateamento da ferrovia foi gradual, refletindo a acelerada valorização do transporte rodoviário no Brasil. O encerramento oficial das atividades da Madeira-Mamoré aconteceu em 10 de julho de 1972. Investimento milionário, a ferrovia virou um trem fantasma, gerando toda sorte de lendas. Viajantes começaram a visitar as ruínas da ferrovia, o que levou à reativação de um trecho de sete quilômetros para atender ao turismo.

Embora só existam ruínas do megaprojeto inicial, a Madeira-Mamoré se transformou num símbolo da tentativa do homem de dominar a natureza. "A história da ferrovia tem muito do espírito da modernidade que marcou o final do século 19. A idéia de que o homem não tem limites e a tecnologia é capaz de transformar a natureza. Uma euforia derrubada pela crise de 1929 e pelas duas guerras mundiais", diz Solange Ferraz de Lima, curadora da coleção de fotografias.

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