Postado em 02/12/2009
Embora seja conhecida como “a década perdida” – pelo menos no que se refere ao período de estagnação econômica vivida pela América Latina –, os anos de 1980 suscitam doces memórias para certos campos da arte.
Por um lado, nosso rock’n’roll explodiu em criatividade, com (boas) bandas pipocando pelo país. Por outro, o cinema nacional presenciou um fato nunca visto antes: a produção de curtas-metragens encontrou um mercado consumidor de fato, com direito a exibições em salas de cinema e colunas exclusivas nos jornais. O período, mais precisamente a segunda metade da década, ficou conhecido como Primavera dos Curtas. “O que aconteceu foi que a gente teve uma mudança de colocação do curta, com a abertura de exibições antes dos filmes estrangeiros nas salas de cinema”, explica Zita Carvalhosa, fundadora e diretora do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. “Era uma vitrine superprivilegiada, chegamos a ter curtas exibidos antes do Indiana Jones.”
São desse período clássicos do formato, como A Espera (1986), de Luiz Fernando Carvalho e Maurício Farias; Três Moedas na Fonte (1988), de Cecílio Neto; e Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado. “Tata Amaral começou nessa época, Beto Brant também”, acrescenta Zita, também responsável pelas relações institucionais da Associação Cultural Kinoforum, criada em 1995, e que realiza o festival e outras atividades e projetos de apoio ao audiovisual brasileiro.
Vinte anos depois, alavancado pelo surgimento e proliferação das chamadas novas tecnologias, o formato volta a chamar a atenção. Uma nova primavera? “Acho que esse nome já foi”, pondera Zita Carvalhosa. “Uma nova primavera é um pouco repetir um modelo que não é o mesmo.” A diretora vai mais longe e diz que a situação do curta talvez seja melhor do que foi na época. “Aquela era uma situação muito boa para poucas pessoas”, afirma. “Agora o curta-metragem é para mais pessoas.”
Um maior número de olhares, note-se, tanto de público quanto atrás das câmeras – digitais agora, o que, juntamente com os demais recursos, “faz muito bem para o formato curta”, analisa Zita. “As novas tecnologias – o vídeo digital e tudo isso –, que são responsáveis por esse aumento de produção, também são responsáveis pelo aumento do número de janelas [refere-se aos meios pelos quais o curta pode ser exibido].” “E o curta-metragem é um formato muito adequado a essas novas janelas.”
Caiu na rede
Entre os atuais meios de exposição para o curta-metragem, o mais celebrado, e já consolidado, é a internet. Seja com sites dedicados a difundir o formato, seja em endereços como o YouTube, nos quais o próprio usuário coloca seus vídeos – logo, campo fértil para o curta mostrar sua cara –, a rede conquistou status de local ideal para os filmes curtos. “Você tem hoje portais como o Kinnoikos – criado pela Kinoforum –, como o Porta Curtas, da Petrobras, enfim, locais onde você pode acessar curtas”, retoma Zita.
Na web desde 2002, o Porta Curtas, patrocinado pela Petrobras, já soma 11 milhões de exibições. Atualmente, a média é de 200 mil curtas veiculados por mês. “No site, os curtas estão em constante exibição e encontram público onde um curta-metragem nem sequer sonha em chegar: locais onde simplesmente não existem festivais de curtas-metragens”, afirma Vanessa Souza, coordenadora do site. Ela informa também que a ligação entre realizadores e público é estimulada pelo site. “Isso acontece por meio de ferramentas interativas, como a Dê a Sua Nota e a Comente”, exemplifica. “As mensagens postadas pelos usuários no site são moderadas e enviadas aos realizadores, que podem dialogar com os apreciadores de seu trabalho.”
O acervo do Porta Curtas também extrapola o universo virtual e vai para as salas de aula, com o projeto Curta na Escola (www.curtanaescola.org.br). “É um derivado pedagógico do projeto Porta Curtas”, explica Vanessa. “Foi inaugurado em abril de 2007 e, em pouco mais de dois anos, já reúne 262 curtas com aplicabilidades pedagógicas e mais de 600 relatos de professores sobre suas experiências em salas de aula.” Cerca de 19 mil escolas se cadastraram no site, o que, segundo a coordenadora, equivale a 10 milhões de alunos atendidos pelo projeto.
Outro ponto online dedicado ao formato é o Curta O Curta, criado em 2000, e que possui hoje um catálogo com cerca de 150 obras, de trabalhos realizados por produtoras – como a carioca Urca Filmes e a paulista SuperFilmes – a produções independentes. “Em 2005, a proposta do site foi totalmente reformulada e ampliada”, conta Guilherme Whitaker, criador do endereço juntamente com Marcus Mannarino. “O site continuou como meio de exibição online de filmes, mas passou a funcionar, principalmente, como canal de promoção e venda dos filmes para exibidores.” Para Whitaker, os festivais dedicados ao formato não devem ser o único meio de circulação da produção. “Os filmes [na internet] podem despertar o interesse de um público muito maior que o dos festivais”, defende.
Colocado no ar, em 1999, por iniciativa da produtora paulistana de audiovisual Interrogação Filmes, o site Curta Agora surgiu com a proposta inicial de veicular um acervo de 11 filmes realizados pela produtora. Hoje, o endereço disponibiliza 510 obras de forma online, entre trailers e filmes completos. “Acreditamos que somente por meio da internet a produção audiovisual independente – seja nacional ou mundial – terá condições de uma real divulgação”, assegura Roberto Pires, sócio produtor da Interrogação Filmes e criador do site. “O aumento na produção é explosivo! Antes os meios de produção estavam concentrados em poucas mãos. Agora, com um simples celular é possível fazer um filme, editar e incluir no YouTube.”
Na telinha
Para Zita Carvalhosa, a televisão tem cumprido um papel importante no escoamento da produção de curtas. A produtora observa também que, hoje, a telinha tem mostrado alternativas de exibir as obras de forma mais integrada na programação. “Você tem o curta passando dentro de programas”, analisa. “A gente fez uma vez um projeto com a TV Brasil que se chamava Tela Digital, que teve uma boa audiência. Há ainda os programas do SescTV com curtas-metragens e o Zoom, que é um programa que exibe curta na TV Cultura.” Esse aumento da presença na TV, segundo Zita, se deve, entre outros fatores, ao fato de o brasileiro gostar de se ver na tela. “E o curta-metragem é próximo de mais gente”, afirma.
No ar desde 1995 pela TV Cultura, o programa Zoom exibe um curta a cada edição, e foi um dos primeiros da televisão brasileira a abrir sua grade para o formato. “Numa fase inicial, quando o programa só exibia curtas, ele foi a única janela de exibição em TV aberta”, explica Daniela Baranzini, diretora do Zoom. “Eu diria que a televisão é uma supervitrine para o curta, pois a outra possibilidade de exibição são os festivais, uma vez que a lei do curta, que ainda vigora (exibir antes do longa), não acontece na prática”, complementa. “E com o alcance da TV essa exibição é potencializada.” No entanto, a diretora ainda não acredita que as TVs abertas façam parte desse cenário, ao menos não num futuro próximo. “Acho que os canais comerciais não estão abertos à divulgação do cinema nacional como um todo”, opina. “O que eles fazem é ?cumprir uma obrigação legal. Agora, se pensarmos no curta, essa possibilidade é nula.”
O gerente de marketing e projetos do Canal Brasil, André Saddy, também afirma não ver o curta em muitas telas da TV comercial – aberta ou a cabo. “Nada que tem me chamado a atenção”, diz. “É uma questão difícil de entender. Nós estamos falando de formato e não de temática, e a diversidade na produção de curtas é tão grande que daria para você encaixar filmes em qualquer emissora.” O Canal Brasil exibe uma média de dez curtas por dia em sua programação. Tanto nos programas quanto nos intervalos. “Justamente pela duração dos filmes, nós às vezes preenchemos buracos na programação com curtas. Ou seja, o que é um problema para os outros é uma bela solução para nós.” Saddy finaliza dizendo que, em sua opinião, um conjunto de fatores tem barrado a entrada do curta na televisão. “O formato pode, para quem tem a grade muito amarrada, ser um complicador, mas vejo também um problema de direcionamento, muitos têm medo de arriscar.”
O curta-metragem é uma linguagem que sempre teve espaço na programação do Sesc São Paulo. Seja por meio de mostras e exibições no CineSesc, seja por projetos diversos nas demais unidades ou pela programação do SescTV. “Nós sempre tivemos interesse na questão do curta-metragem”, afirma Valter Vicente Sales, gerente do SescTV. Exibimos os filmes que integraram as comemorações do Dia Internacional da Animação, em uma parceria com a Associação Brasileira de Cinema de Animação, e tivemos, ainda na época da Rede STV [Rede Sesc Senac de Televisão, quando o canal existia como uma parceria entre as duas instituições], um programa chamado Curta STV. Então, é uma linguagem que sempre esteve próxima do SescTV.”
Em outubro de 2009, mais um programa se somou à iniciativa do Sesc, por meio de seu canal de televisão, de acompanhar e incentivar a produção de curtas-metragens. O CurtaDoc, uma realização em parceria com a produtora Contraponto, de Santa Catarina, será todo voltado à exibição de documentários no formato curto. Com edições temáticas e exibição semanal, o programa tem o objetivo de revelar e discutir a multiplicidade das produções brasileiras do gênero – sempre com a presença de um comentarista. “Existem muitos protagonistas produzindo curtas”, diz Sales. “Você tem isso no Brasil inteiro, e isso é bem interessante porque a diversidade de tratamento de temas e de propostas artísticas é enorme. Então [ao exibir curtas no canal] você traz para a televisão uma diversidade de olhares.” O programa de estreia foi ao ar no dia 27 de outubro, uma terça-feira, às 21h, com o tema Retratos, e mostrou alguns trabalhos de registro audiovisual de personalidades, famosas e anônimas, com comentários da documentarista e professora de cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Claudia Mesquita. O destaque foi O Poeta do Castelo (foto), filme de dez minutos produzido por Joaquim Pedro de Andrade, em 1959, sobre o poeta ?Manuel Bandeira. “Quando o Sesc decidiu trazer essa ideia para o SescTV procurou especializar a exibição”, explica o gerente. “Você tem alguns outros canais que já exibem documentários de variados tipos, por isso a gente procurou segmentar o documentário, mostrar como ele é tratado em curta metragem.”
Em dezembro, os dois programas iniciais serão Inclusão, que vai ao ar no dia 1º, e Memória, a ser exibido no dia 8. O primeiro, sob o olhar da documentarista Cláudia Aguyirre, apresentará três curtas com personagens que vivem à margem da sociedade. Os filmes são Dia Sim, Dia Não (2008, 8 min), de Eveline Costa; Sinal Fechado (2006, 15 mim), de Alexandre Obrazka e Isaac Chueke; e Rua São Paulo (2002, 16 min), de Daniel Massaranduba e Guilherme Ribeiro. No programa do dia 8, o professor de cinema da UFSC Felipe Soares comentará os curtas que têm em comum a memória permeando seus roteiros. São eles Rua da Escadinha 162 (2003, 18 min), de Márcio Câmara, sobre o Museu Christiano Câmara, no Ceará, que contém mais de 20 mil peças em sua coleção, incluindo discos de vinil, fotografias, revistas e enciclopédias; U-507 (2008, 15 min), de Rubens Araújo de Carvalho, que trata do afundamento de quatro navios brasileiros na costa de Sergipe durante a Segunda Guerra Mundial; e O Guru e os Guris (1973, 12 min), de Jairo Ferreira, sobre o fundador da Cinemateca de Santos, Maurice Legeard (1922-1997), e sua paixão pelo cinema.
O SescTV irá exibir, a partir de janeiro, uma retrospectiva com os melhores filmes dos vinte anos de Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo.