Postado em 01/09/1999
A informalidade é a saída para milhões de trabalhadores brasileiros
JANE BARBOSA E ANA SILVA
A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou em junho o primeiro retrato da economia informal urbana, uma das mais polêmicas realidades brasileiras. Sob as luzes dos holofotes oficiais, é possível saber que o segmento congrega quase 9,5 milhões de empresas, que movimentam 8% do Produto Interno Bruto (PIB) e onde trabalham nada menos que 25% da população economicamente ativa (PEA), ou seja, 12,9 milhões de pessoas, gente como camelôs, microempresários e profissionais liberais.
Apesar de pioneiro, o primeiro Censo da Economia Informal Urbana foi recebido com reserva no meio acadêmico. No entanto, os estudiosos reconhecem as dificuldades envolvidas em sua realização, que começa com o próprio conceito de economia informal. Para o mercado, ela sempre foi definida como a atividade econômica desenvolvida à margem das leis que regulamentam a vida das empresas.
O IBGE, por sua vez, preferiu usar metodologia recomendada pela Organização Mundial do Trabalho (OIT), que considera informais "as unidades econômicas não agrícolas produtoras de bens e serviços, com o objetivo principal de gerar emprego e renda para as pessoas envolvidas, excluída a produção de serviços e bens para autoconsumo". Ainda segundo o IBGE, essas empresas são caracterizadas pela produção em pequena escala, pelo baixo nível de organização e pela quase inexistência de separação entre capital e trabalho, enquanto fatores de produção.
O conceito de informalidade realmente é tão polêmico que alguns estudiosos, como o professor Márcio Pochmann, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), preferem nem utilizá-lo. "Geralmente a informalidade é encarada do ponto de vista jurídico. Assim, um profissional liberal, por exemplo, não poderia ser visto como informal", argumenta Pochmann. "Realmente há dificuldades em definir o que é o setor informal, um conceito muito heterogêneo", reforça Jorge Mattoso, professor de economia do trabalho da Unicamp.
Assim, foram colocados no mesmo balaio os trabalhadores por conta própria, sejam eles profissionais liberais ou vendedores de bugigangas nas esquinas, empresários à frente de negócios com até cinco empregados, assalariados que trabalham nessas empresas informais, com e sem carteira assinada, e trabalhadores não remunerados. "Não era objetivo do trabalho investigar a legalidade ou ilegalidade das empresas, nem a situação individual das pessoas ocupadas", justifica Delso José Caride Filho, coordenador da pesquisa.
Discussões acadêmicas à parte, os estudiosos reconhecem que o censo tem o mérito de colocar a informalidade sob luzes que ajudaram a pôr em séria dúvida mitos até então vistos como verdades absolutas, como a afirmação de que a economia informal era responsável por nada menos que 50% do PIB – a versão mais moderada apontava o percentual de 20%.
O retrato está meio desfocado, é verdade, seja pelo tempo decorrido entre a pesquisa de campo, realizada em outubro de 1997, e sua divulgação em junho passado, seja por não envolver amplos segmentos da atividade econômica. Ficaram de fora, por exemplo, os empregados domésticos, um verdadeiro exército de 5,2 milhões de pessoas, ou 7,6% da população ocupada, como mostra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), feita pelo próprio IBGE em 1997. Também não foi incluído o trabalho informal feito por habitantes das áreas rurais, como o artesanato.
Além disso, alguns resultados são vistos com reserva por contradizer resultados de pesquisas do próprio IBGE. O censo mostra a existência de aproximadamente 8,6 milhões de trabalhadores por conta própria, 67% do total das pessoas ocupadas pelo setor informal. Pochmann lembra que a PNAD, por sua vez, tinha detectado 17 milhões de pessoas nessa situação. "Mesmo assim, o estudo é um esforço positivo de mostrar uma realidade da qual se fala muito, com pouco conhecimento", reconhece Pochmann. "A pesquisa certamente será ponto de partida para outros trabalhos", explica Mattoso.
O IBGE pretende repetir o estudo a cada cinco anos, pois todas as tendências apontam para o aumento da economia informal, principalmente em função dos crescentes índices de desemprego. "Em uma economia incapaz de manter e gerar novos empregos, a informalidade é uma estratégia para garantir a sobrevivência", diz Mattoso. Pochmann lembra que apenas nos anos 90 mais de 1,2 milhão de postos de trabalho foram fechados. "É necessário um crescimento entre 6% e 7% do PIB para empregar 1,5 milhão de pessoas que ingressam no mercado de trabalho todos os anos", reforça o professor. Para ele, o atual modelo econômico é conivente com o desemprego e certamente vai empurrar para a informalidade um número crescente de trabalhadores.
Perfil das empresas
A pesquisa certamente tem o mérito de ser a primeira tentativa séria de conhecer o universo da informalidade. Ela mostra que 86% dos quase 9,5 milhões de empresas informais pertencem a trabalhadores autônomos, como o camelô Mário Gomes de Oliveira (ver matéria à pág. 20), e 14% a pequenos empregadores como Carla Perazzetta. Para fazer o diagnóstico, o IBGE visitou 50 mil residências urbanas em 753 municípios brasileiros. Quase metade desses negócios está localizada na região sudeste (46%) e 26%, no nordeste.
A principal atividade econômica é o comércio (26%), seguida pelos serviços de reparação, pessoais, domiciliares e de diversão (20%). Entre os negócios pesquisados, 94% pertencem a um só proprietário e 80% dão trabalho a apenas uma pessoa. Nada menos que 87% das empresas não têm constituição jurídica e 46% não possuem nenhum tipo de registro contábil. Entre as que informaram sua receita mensal, o faturamento médio em outubro de 1997 foi de R$ 1.405 (R$ 931 nos negócios por conta própria e R$ 4.262 nas empregadoras).
Uma das grandes surpresas foi a constatação de que 93% das empresas do setor informal são lucrativas. Além disso, 50% dos negócios têm mais de cinco anos de existência e 27,7% estão atuando há mais de dez. A maioria (73%) utiliza equipamentos ou instalações próprias. Do total, 16% fizeram investimentos e/ou aquisições no ano anterior à pesquisa, na maior parte dos casos (62%) com recursos provenientes de lucros dos exercícios anteriores. A média dos investimentos foi de R$ 3.767.
Nos três meses anteriores à pesquisa, 95% das empresas informais não tinham utilizado crédito, seja pela dificuldade de acesso, seja pelo alto custo. Entre as que fizeram empréstimos, os recursos eram provenientes de bancos públicos ou privados em 43% dos casos e de ajuda de amigos ou parentes em 35%. A falta de clientes foi a principal dificuldade apontada pelos proprietários para o desenvolvimento do negócio. Mesmo assim, 37% deles pretendiam aumentar o nível de atividades.
Quem trabalha
Os homens são a maioria (64%) dos quase 12,9 milhões de pessoas ocupadas pela economia informal. Os trabalhadores por conta própria formam o maior contingente (67%), seguidos pelos empregadores (12%), empregados em empresas informais sem carteira assinada (10%) e com carteira assinada (7%), e não remunerados (4%). A maior parte (45%) não terminou o primeiro grau, 34% têm entre 18 e 24 anos e 33%, entre 25 e 39 anos.
A economia informal paga pouco. O rendimento médio dos empregados é de R$ 240, sendo que os homens ganham pouco mais que as mulheres – R$ 253 e R$ 218, respectivamente. Em geral, o rendimento aumenta em função do nível de escolaridade.
A maioria dos proprietários das empresas do setor informal são homens (66%), não têm sócios (88%) e 28% já são donos do negócio há mais de dez anos. O desemprego é apontado por 28% dos proprietários de empresas por conta própria como o fator determinante de seu ingresso no mundo empresarial. Entre as mulheres, o grande motivo é a necessidade de complementar a renda familiar. Já entre os empregadores, sejam eles homens ou mulheres, o negócio foi iniciado pelo desejo de independência.
A maior parte dos donos – 57% – não é natural do município onde reside, e 42% têm entre 25 e 39 anos. A mesma participação foi registrada para o grupo de 40 a 59 anos. O proprietário de empresa por conta própria tem um rendimento médio de R$ 457, enquanto o dos proprietários empregadores é de R$ 1.156. A maior parte desses empresários (84%) começaram sozinhos, e 33% iniciaram o empreendimento praticamente sem capital.
De sol a sol
Três histórias de trabalhadores que fugiram do emprego formal
Alheios à polêmica dos técnicos que debatem as características e extensão da informalidade no país, milhares de brasileiros enfrentam a dura realidade do dia-a-dia sem patrão. Alguns por opção, outros por falta de melhor sorte, mas todos garantem o sustento da família à custa de trabalho árduo, cercados muitas vezes de ansiedade e insegurança.
O baiano Mário Gomes de Oliveira, por exemplo, um camelô que há 20 anos evita ouvir no rádio a previsão do tempo. Faça sol ou chuva, levanta-se às 5 da manhã e pega o ônibus em direção ao Largo de Pinheiros, em São Paulo. A rua virou a única opção para quem só completou o primário e sonhava melhorar de vida ao fugir, aos 18 anos, da roça em Irecê, na Bahia. Mário tem uma barraca, cheia de tênis e calças com marcas falsificadas que compra na Galeria Pajé.
Quando começou na profissão, em 1979, a concorrência era menor. Montava um caixote com relógios e óculos nacionais na frente da Igreja de Nossa Senhora do Montserrat e atendia uma freguesia certa. "Na rua encontrei a chance de progredir. Construí minha casa, sustento minha família e ganho um dinheiro certo todo dia", conta Mário. Aos 50 anos, não se envergonha de seu trabalho, mas planeja um futuro diferente para os quatro filhos, entre 10 e 15 anos, que estudam em uma escola pública em Embu, onde a família mora. Por decisão do pai, as crianças têm um computador em casa para irem se acostumando às novas exigências do mercado de trabalho.
Antes de vender bugigangas na rua, Mário foi ajudante de lanchonete, pasteleiro, cobrador de ônibus. Durante seis anos foi experimentando e trocando de emprego. O salário reduzido o empurrou para a rua, onde passou a ganhar um pouco mais. Com as economias comprou a prestação um terreno de 300 metros quadrados em Embu e construiu uma casa térrea de quatro cômodos.
Hoje, para garantir uma renda mensal de R$ 1 mil com a barraca de camelô, Mário repete a rotina de 20 anos. Leva uma hora para montar a banca na Rua Butantã, depois de carregar a mercadoria que fica guardada em um quartinho próximo, alugado por R$ 250 mensais. Às 7 da noite, desmonta a barraca e volta para casa.
Há três anos Mário não paga a licença para a prefeitura. De olho nos fiscais para escapar do "rapa", prepara-se para a aposentadoria pagando INSS como autônomo e reza para continuar com saúde para tocar o trabalho. "Sem estudo e profissão, a rua me deu tudo o que tenho. Pelo menos não passei fome, nem fui morar debaixo da ponte", diz.
"Não quero emprego formal"
Diferentemente de Mário Gomes, Carla Perazzetta optou por realizar um sonho antigo de tornar-se empresária. Preparou-se para isso, ciente de que é alta a taxa de mortalidade das pequenas empresas: 78% no primeiro ano de vida, de acordo com levantamentos realizados pelo Simpi (Sindicato da Micro e Pequena Indústria do Estado de São Paulo). Disposta a não engrossar essa lista, Carla não se apressou. Insatisfeita com o trabalho em uma estatal paulista, em 1996 decidiu aventurar-se pelo segmento de comercialização de CDs em bancas de jornais e videolocadoras. Durante um ano, aproveitou a hora do almoço para percorrer pontos-de-venda e deixar os CDs em consignação. Logo estava com 70 clientes e quatro funcionários trabalhando como prestadores de serviço na sala de jantar de seu apartamento, no bairro paulistano do Cambuci. Pediu demissão e concentrou todas as energias na sua pequena empresa, que nos dois primeiros anos funcionou na clandestinidade.
Em maio de 1998, Carla finalmente decidiu legalizar a Distribuidora Perazzetta. Procurou a assessoria do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), pagou as taxas e deixou de ser clandestina. O negócio legalizado contabilizou várias vantagens, como contratos com grandes empresas. Com nove funcionários que recebiam salário mínimo e comissão, a Perazzetta passou a atender 350 pontos-de-venda, inclusive no interior do estado, e a faturar R$ 11 mil mensais. Mas, sem conhecimentos em administração, Carla descuidou-se da saúde financeira da empresa. Não controlava as despesas nem o dinheiro que entrava e foi perdendo o controle. Para piorar a situação, um empregado aplicou um desfalque na empresa, e o carro da distribuidora foi roubado. Os problemas foram se acumulando, os funcionários dispensados e Carla voltou para a sala de jantar de sua casa. Hoje trabalha sozinha, atendendo apenas 30 pontos-de-venda, e não chega a faturar R$ 2 mil mensais. Frustrada com o rumo dos negócios, vacila entre voltar para a informalidade ou se reestruturar para recuperar o mercado perdido. Mas orgulha-se de ter concretizado o sonho de ser uma empresária de verdade. "Não quero mais um emprego formal, tomei o gosto de ser uma empreendedora. Só preciso me preparar melhor para enfrentar esse desafio", admite.
Nunca foi assalariado
Maurício Bella Paolera, médico oftalmologista de 41 anos, nunca foi assalariado. Talvez por isso seu dia comece cedo e não tenha hora para terminar. As manhãs são dedicadas à Santa Casa, onde é professor assistente. As tardes, ao consultório particular no bairro da Lapa, em São Paulo. Isso sem falar nas horas passadas no atendimento de emergência de outros hospitais e no trabalho de consultoria que presta para um laboratório farmacêutico.
"É mais cômodo, financeiramente, ter um salário fixo. Mas nada compensa o fato de você ter liberdade para decidir como quer levar sua vida pessoal e profissional", diz ele.
Trabalhar como assalariado, afirma Paolera, não significaria apenas ser obrigado a se sujeitar às regras estabelecidas pela empresa. Exigiria também abrir mão de uma carreira acadêmica duramente construída desde que se formou, em 1983, e que lhe permite manter-se atualizado e em contato com os melhores profissionais e centros de estudos.
Os ganhos financeiros, é verdade, são modestos, mas profissionalmente são incomensuráveis. Já fez mestrado na Universidade Federal do Estado de São Paulo e se prepara para iniciar o doutorado.
Paolera não se arrepende da escolha que fez. Trabalhando sem descanso, conseguiu comprar casa própria, tem dois carros do ano e paga a escola para os filhos. "Dou à família o mesmo padrão de vida que tive, sem abrir mão da liberdade e realização profissional. Não sei se teria conseguido isso como assalariado."
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