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Entrevista

Postado em 04/06/2008

 


O poeta fala das origens do estilo que criou, a poesia práxis, e revela de que forma ela influenciou nomes como Glauber Rocha e Chico Buarque
Fotos: Adriana Vichi
 

O poeta e ensaísta Mário Chamie – formado em direito pela Universidade de São Paulo (USP), em 1956 – publicou seu primeiro livro de poesia, Espaço Inaugural, aos 22 anos. Depois da “inauguração”, seguiram-se O Luar (1957) e Os Rodízios (1958), antes de, em 1962, Chamie lançar seu Lavra Lavra, que instaurou a poesia práxis – estilo que considera a palavra como uma matéria a ser transformada e o leitor como alguém que possa intervir crítica e criativamente no texto, exercendo uma função de co-autor. O livro recebeu o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. No mesmo ano, o poeta fundou a revista Práxis e, em 1963, realizou conferências sobre a nova literatura brasileira na Itália, Alemanha, Suíça, Líbano, Egito e Síria. Entre 1979 e 1983 foi Secretário Municipal de Cultura de São Paulo e atuou na criação da Pinacoteca Municipal e do Centro Cultural São Paulo. Na entrevista que concedeu, por e-mail, à Revista E, Chamie sintetizou a trajetória do estilo poético que criou, analisou a produção intelectual de hoje, falou sobre sua convivência com o escritor modernista Oswald de Andrade e comentou como a práxis influenciou uma geração de artistas – “Glauber Rocha fundamenta a estética de sua obra-prima Terra em Transe no que ele chamou de ‘conteúdos práxis explosivos’ e Chico Buarque compõe a letra práxis de Construção”. A seguir, leia a íntegra.


Nas décadas de 1950 e 1960, a poesia brasileira foi balançada pela poesia concretista e pela poesia práxis. Cada uma delas possuía uma visão de Brasil e uma proposta estética. Qual o balanço que se pode fazer da poesia práxis em 2008?


Práxis que, a rigor, começa a se delinear em 1958 com o livro Os Rodízios [livro de poesias de Chamie], seguido do pré-manifesto Termos Didáticos para a Consideração do Poema, publicado por mim em 1959, no jornal Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, e exerceu um papel decisivo para a evolução e o destino da poesia brasileira dos anos 1960 aos nossos dias. Da perspectiva de hoje, verifico que a história nos deu razão. As nossas propostas criativas, voltadas contra o tecnicismo dogmático do movimento concretista e sua estética autoritária e excludente, representaram (e representam) a legítima passagem da modernidade à pós-modernidade em nossa literatura. Com a sua salutar intervenção a poesia práxis abriu espaços a opções individuais do artista ante qualquer forma de autoritarismo ortodoxo e sectário. Autores, consagrados e jovens, motivados por essa postura práxis, entenderam que a palavra poética nunca deve ser refém de uma teoria prévia engessada. Entenderam, também, que a liberdade de sua criação é, em si, uma heterodoxia ativa. Se o poeta, ao elaborar o seu poema, concebe ou inventa as palavras que considera adequadas para a comunicação dos seus pensamentos e emoções, não tem ele de se submeter a fórmulas ou receituários estéticos de nenhum plano piloto preestabelecido. Práxis não é, por isso, um mero episódio datado de nossa literatura. Ao contrário, sua presença, desde os anos 1960, significa, entre nós, um alerta contínuo contra o domínio impositivo de uma tendência artística sobre outras. A instauração práxis, assim, preparou o terreno e legitimou a pluralidade de alternativas de nossa produção poética, dos anos 1970 até hoje. Antonio Candido resumiu bem o alcance dessa legitimação, ao escrever: “o movimento da poesia práxis recuperou o verso de maneira renovada e intensificou a referência às circunstâncias do mundo”.


“A instauração práxis preparou o terreno e legitimou a pluralidade de alternativas de nossa produção poética, dos anos 1970  até hoje. Antonio Candido resumiu bem o alcance dessa legitimação, ao escrever: ‘o movimento da poesia práxis recuperou o verso de maneira renovada e intensificou a referência às circunstâncias do mundo’” 

A poesia práxis terminou por influenciar toda uma geração de artistas, não?


Essa reconvocação do escritor e do artista para as “circunstâncias do mundo” exerceu, entre nós, decisiva influência em várias frentes. Por exemplo, Murilo Mendes, em seu livro Convergência, adota o processo compositivo e a dicção dos chamados “textores” da poesia práxis. Cassiano Ricardo escreve Jeremias Sem-Chorar, seu livro textualmente práxis. Glauber Rocha fundamenta a estética de sua obra-prima Terra em Transe no que ele chamou de “conteúdos práxis explosivos”. Aldir Blanc escreve o seu Minifesto para Mário Chamie (minifesto com “i” mesmo) para sinalizar a importância da presença práxis em nossa música popular. Chico Buarque compõe a letra práxis de Construção, a meu ver, a mais importante composição do nosso atual cancioneiro popular, Zé Celso Martinez e Fernando Peixoto montam o revolucionário O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, com a seguinte explicação: “O espetáculo foi dedicado a Glauber Rocha, depois que assistimos a Terra em Transe e estudamos as teorias do pan-sexualismo oswaldiano apoiados fundamentalmente em análises de Mário Chamie”. A quantidade de poetas das décadas de 70, 80 e 90 que trazem as marcas de nossa renovação é grande. Tudo isso, sem falar na redescoberta de um autor como Hilário Tácito (Madame Pommery) etc. Ou na revelação e publicação pioneira, que fizemos, dos originais de O Santeiro do Mangue, de Oswald de Andrade... E assim por diante.

Há quem avalie que a poesia concreta contribuiu mais para a atividade crítica do que propriamente para a produção poética. Qual a sua opinião?

A contribuição propriamente poética do concretismo é muito pobre e limitada. Quem reduz o poema a uma fórmula previsível, sob o pretexto de que ele é o produto de uma rigorosa composição matemática, castra as múltiplas possibilidades de comunicação que a palavra, em estado de poesia, traz em si. Já a sua contribuição crítica, com seus eventuais méritos, deve ser relativizada, pois é sempre feita sob a óptica parcial, e em benefício, do movimento concreto. Muitas vezes, essa contribuição é mera continuidade reprodutiva de contribuições pioneiras, anteriores. Veja-se o caso das chamadas “revisões” dos poetas Sousândrade e Pedro Kilkerry. Na verdade, a revisão crítica desses poetas já tinha sido feita pelos ensaístas Fausto Cunha e Andrade Muricy.
Pouco depois, a poesia brasileira foi tomada pela chamada poesia engajada, capitaneada pelos eflúvios do Centro Popular de Cultura (CPC). Aindam se encontram ecos desse movimento em certa produção contemporânea. Você acredita na poesia como um instrumento de interferência na luta política? Ela é capaz de conscientizar o leitor, como queriam alguns de seus autores?

A poesia tem natureza e linguagem próprias. Cabe a cada poeta lidar com essa natureza e linguagem, segundo a sua capacidade de dar corpo e sentido à mensagem que deseja transmitir. Por isso, a poesia pode falar do mundo (dos fatos, do tempo, dos acontecimentos históricos ou das paixões humanas) sem escravizar-se a dogmas ou interesses doutrinários externos a ela. Instrumentalizá-la, submetendo-a a esse ou aquele engajamento dirigista, é ficar aquém do seu poder plural de verdade e de beleza. Toda produção poética, fruto de dirigismo ideológico, tende ao anacronismo e ao anedótico passageiro. A poesia produzida pelo CPC é prova disso. Hoje, ela tem algum interesse documental. Passadas as causas políticas que a motivaram, a suposta “conscientização” que ela tenha conseguido, também passou. Ora, a poesia, digna desse nome, é feita para permanecer e renovar-se, através de suas múltiplas abordagens e de suas diferentes e múltiplas interpretações, ao longo do tempo e da história.

Comparando com outro período de forte engajamento da poesia brasileira, durante o movimento abolicionista, qual foi o ganho para o leitor? Alguma obra dessa época, 1960 e 1970, pode ombrear em qualidade com Navio Negreiro, de Castro Alves, ou Poeta Emparedado, de Cruz e Souza?

Certamente, no calor dos caminhos e embates do período correspondente às décadas de 1950, 60 e início de 70, algumas obras tornaram-se emblemáticas e trouxeram, sem dúvida, bons ganhos para o leitor. Eu citaria o livro O Homem e sua Hora (1956), de Mário Faustino, que se tornaria uma das referências estimulantes para Glauber Rocha realizar o seu hoje clássico e imprescindível Terra em Transe. Com a licença dos leitores desta entrevista, me permitiria citar o livro Lavra Lavra (1962), de minha autoria, que, longe do formalismo vanguardista e do engajamento ideológico, revalorizou a palavra e o poema, no sentido de que conteúdo social e forma estética não se excluem mutuamente. E também lembraria, além de A Luta Corporal, de Ferreira Gullar, o seu importante livro Poema Sujo, em que a individualidade do cidadão responde, contrasta e diagnostica a prepotência do regime militar totalitário brasileiro. São livros em que a ética da palavra trabalha e transfigura a estética social do poema.

“A poesia tem natureza e linguagem próprias. Cabe a cada poeta lidar com essa natureza e linguagem, segundo a sua capacidade de dar corpo e sentido à mensagem que deseja transmitir. Por isso, a poesia pode falar do mundo (...) sem escravizar-se a dogmas ou interesses doutrinários externos a ela”

Parece que os poetas de sua geração, e da geração de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, eram mais presentes no campo da participação cultural. Traduziam, polemizavam, produziam peças e músicas (como Vinicius de Moraes etc). Eram principalmente mais preparados do ponto de vista intelectual. Você sente o mesmo empenho nas gerações seguintes?

A geração de Drummond e a nossa viveram o auge da modernidade e da utopia. Os poetas provindos do modernismo de 22 cresceram e amadureceram com os sonhos utópicos da transformação do mundo, em várias latitudes literárias e culturais. Literariamente, os modernistas se propuseram a sair do verso metrificado para o verso livre. Culturalmente, aspiraram sair de um nosso estágio de colonizados para uma nossa cultura brasileira metropolitana, descolonizada. É Drummond quem diz: “Não serei o poeta de um mundo caduco (....)/ O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes/ a vida presente”. Já na década de 50, com as vanguardas, o chamariz utópico nos empurrava em direção ao sonho de deixarmos de ser subdesenvolvidos para assumirmos um desenvolvimentismo programado. O parâmetro desse empenho desenvolvimentista estava no lema “50 anos em 5” e no plano piloto da cidade de Brasília. Literariamente, o concretismo decretou, com o ato institucional do seu plano piloto, a morte do verso, estabelecendo que a palavra era “coisa” e que o poema era um simples “objeto” neutro de palavras. A poesia práxis se opôs a essa ortodoxia, no empenho de demonstrar que a palavra era um corpo vivo de signos, e que o poema era um campo semântico aberto a prováveis e imprevisíveis significados. Nesse clima de antítese e contradições, guiado por projetos opostos de transformação, o diálogo, a polêmica e a participação cultural abriam-se a várias áreas de criatividade e comunicação. Sobrevindo, porém, a falência das utopias, seguida do advento da pós-modernidade, os autores das novas gerações voltaram-se para o seu próprio “eu” e se pulverizaram em atitudes artísticas isoladas e fragmentárias.

Perceberam que, nos dias que correm, não há lugar para a organização de algum movimento cultural, unificado em princípios comuns ou em palavras de ordem que ditem a ação conjunta dos seus eventuais integrantes. São poetas ilhados, recolhidos em seus nichos. Na poesia que fazem, parece não ter “estrada nem estrela” que os guiem e que os seduzam. Seria, talvez, injusto dizer que a sua poesia se alimenta dos resíduos deixados pelos poetas marcantes das gerações anteriores. Ela dá a impressão de ser uma poesia residual, não protagonista de si mesma, mas coadjuvante da poesia maior que a antecedeu. Quirelas de Drummond, de Cabral, de Jorge de Lima e outros lhes dão um ar de neutralidade e de compasso de espera. Quem é o poeta de agora? – “é o poeta de quirelas/ e querências neutras/ ... que agora gira e gera/ seus miúdos acúmulos/ e resíduos de indigência./ É o poeta sem estrada nem estrela/ em seu reinado de ausências”? Tenhamos cuidado e não generalizemos uma resposta. O velho Machado dizia que a História é uma senhora muito volúvel. Quem sabe, no bojo dessa poesia residual, uma voz de outro valor e alcance esteja sendo gerada...

A poesia brasileira parece ter perdido espaço nos jornais e revistas. Poucos são os livros de poesia resenhados. Isso se deve a uma perda de qualidade?


A poesia pede reflexão e um mergulho silencioso no sentido real das coisas. Ela é sempre inaugural e desconcertante. Platão rejeitou a presença dos poetas em sua República por desconfiar da força desestabilizadora de suas transgressões. Hoje a república que tenta descartar a poesia é outra. É a república que tem no mercado o seu deus único e poderoso. O mercado constrói a sua lógica, que privilegia a mercadoria, o consumo ou falsas objetividades, divididas entre a auto-ajuda e o entretenimento massificante. Sem valor mercadológico e longe de ser entretenimento ou auto-ajuda, a poesia, que não cultiva mesmices apaziguadas, vem perdendo cada vez mais o seu espaço nos atuais meios de comunicação, voltados para a mais desenfreada banalidade consumista. Não nos esqueçamos que, rejeitada ou recolhida no seu auto-exílio, a poesia é e será sempre uma esperança de resistência.

“Se, quando jovem, o meu convívio com a necessidade de escrever poesia era movido por um entusiasmo sincero e devoto, depois de maduro o entusiasmo continua o mesmo, só que acrescido da consciência de que escrevo para tentar deixar o legado de uma experiência única e intransferível”

Sua obra engloba poesia, ensaio, estética. Em qual área se sente mais à vontade?


Para mim, uma área se desdobra e se completa na outra. A sua pergunta é válida, no sentido de que os meus livros de ensaios não se desvinculam da experiência ou da produção poética que eu venha, paralelamente, realizando. Assim, tão logo escrevi o Lavra Lavra, concebi também o ensaio que, de imediato, pela peculiaridade de sua exposição e de seus argumentos fundados na escrita do Lavra Lavra, se converteu no chamado Manifesto da Poesia Práxis (1962). Um ano depois (1963), publiquei o livro Palavra-Levantamento na Poesia de Cassiano Ricardo, tido por muitos críticos da época como uma primeira aplicação dos princípios práxis na análise da obra de um poeta modernista. Mais tarde (1969), publiquei outro livro de ensaios, Alguns Problemas e Argumentos, tentando interpretar, por certa óptica “desconstruída” do new-criticism em voga, as relações da poesia modernista e pós-moderna. Com a publicação, em 1967, do livro Indústria, que propunha em sua elaboração, um diálogo possível (e intrínseco) entre autor-texto-leitor, na própria composição do poema, eu sinalizava o lançamento (em 1970) de Intertexto, um volumoso livro de ensaios que estabelece conexões e convergências dialogadas entre Macunaíma, de Mário de Andrade, Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, e Madame Pommery, de Hilário Tácito, obra e autor retirados do limbo e postos em circulação por mim. Intertexto vinha com este subtítulo: “Ensaio de leitura produtora”. Inaugurava-se, então, a crítica dialógica entre nós. Em reforço a Intertexto, compareço, em 1972, com A Transgressão do Texto, que irá ter uma recepção crítica estimulante, provocando o lançamento de A Linguagem Virtual (1976), novo livro de ensaios, que vai anteceder a publicação da poesia dialogada de Planoplenário (1974). Na mesma linha, os meus dois recentes livros de poemas (Caravana Contrária, de 1998, e Horizonte de Esgrimas, de 2002) foram intercalados por meus dois novos livros de crítica (Caminhos da Carta, de 2002, e A Palavra Inscrita, de 2004).

O que o leva a escrever poesia atualmente? É o mesmo tipo de sentimento que o impelia a escrever no início da carreira? Quando você faz um poema, o sentimento ainda é o mesmo de quando você era jovem?


Tudo muda. Os sentimentos também. Se, quando jovem, o meu convívio com a necessidade de escrever poesia era movido por um entusiasmo sincero e devoto, depois de maduro o entusiasmo continua o mesmo, só que acrescido da consciência de que escrevo para tentar deixar o legado de uma experiência única e intransferível.

Uma curiosidade: qual é o melhor horário para você escrever poesia? Acredita em inspiração ou em transpiração?


O horário de um tempo interior que não tem nem ponteiro nem lugar específico. Às vezes, um poema que elaborei, em silêncio, durantes meses, é escrito num talão de cheques ou num guardanapo de restaurante, em menos de três minutos. Outras vezes, um poema que escrevi em alguns segundos será amadurecido e reelaborado, em centenas e centenas de dias. A transpiração inspira, tanto quanto a inspiração transpira.

Queria que você falasse de sua relação com Oswald de Andrade.


Sou o fiel depositário de alguns manuscritos originais de Oswald. Dei a conhecimento público o seu então inédito O Santeiro do Mangue, em 1967, numa edição mimeografada pela revista Mirante das Artes, dirigida por Pietro Maria Bardi. Em termos de postura crítica e de afinidade intelectual, penso que a práxis está para a segunda metade do século 20 assim como a antropofagia oswaldiana está para a primeira. Claro que a antropofagia é seminal sempre, em função das diversas releituras que a obra de Oswald passou a ter, nos últimos 40 anos. Eu mesmo, retrabalhando a sua visão antropofágica, procedi, em meu livro Caminhos da Carta, a uma leitura dialógica da Carta de Pero Vaz de Caminha.



 

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