
A idéia
de que as novidades na produção cultural brasileira estão
concentradas no Rio de Janeiro e em São Paulo é tão
antiga quanto falaciosa. O aumento da velocidade das informações
tornou possível constatar quanto as artes brasileiras fervilham
de norte a sul - e não necessariamente no que se refere a manifestações
regionais. Assim como o Brasil inteiro viu o mangue beat pernambucano
estampar as manchetes dos jornais nos anos de 1990, vê hoje a
Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul,
transformar-se num dos mais importantes eventos nacionais da área.
Nos artigos a seguir, o escritor e diretor teatral amazonense Márcio
Souza e o escritor gaúcho Moacyr Scliar atualizam o tema e analisam
os motivos que geraram, e ainda mantêm, essa visão estreita
do "eixo" para explicar a evolução da cultura
no país.
Há vida (cultural) fora do eixo
por
Moacyr Scliar
O
mundo gira em torno de um eixo imaginário e o Brasil gira em
torno de um eixo que, sendo mais real, até certo ponto prejudica
a imaginação brasileira: o eixo Rio-São Paulo.
Um eixo que, claro, não surgiu por acaso. Em primeiro lugar,
por sua posição geográfica: o Rio está situado
junto ao Atlântico, do qual São Paulo também não
fica longe, e não podemos esquecer que o Brasil nasceu costeiro.
Como dizia frei Vicente do Salvador em sua história do país,
os portugueses que primeiro povoaram o Brasil hesitavam em adentrar
o sertão: "Grandes conquistadores de terras, não
se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo
do mar como caranguejos". É claro que ser caranguejo nas
praias cariocas ou no litoral paulista não é exatamente
um castigo, mas o resultado disso foi um modelo de desenvolvimento que
acabou transformando o Rio em capital e São Paulo na locomotiva
que puxava o trem brasileiro. Mesmo a transferência da capital
para Brasília, uma tentativa de interiorização,
não alterou grandemente essa situação. O tamanho
continental do Brasil favoreceu o isolamento de regiões. Na verdade,
é um milagre que o país tenha se mantido unido ao longo
de seus cinco séculos de história, sem se fragmentar,
como aconteceu com a América hispânica.
A regionalização passou a ser a regra no processo de desenvolvimento
econômico e cultural. Diferentes regiões criaram, por exemplo,
diferentes literaturas, não raro com linguajar próprio.
O Sul é disso um exemplo. O Rio Grande do Sul não era
originalmente parte do Brasil. A chegada dos portugueses foi retardada
pelo Tratado de Tordesilhas (1494), pelo qual boa parte do mundo foi,
com a intermediação papal, dividida entre Portugal e Espanha.
A famosa linha de Tordesilhas tornava o atual Rio Grande do Sul território
espanhol. Mas esse meridiano era imaginário, não correspondia
a muros ou cercas ou mesmo a acidentes geográficos, de modo que
a demarcação deixava dúvidas. Por causa disso,
nenhuma iniciativa de ocupação foi tomada, nem por espanhóis
nem por portugueses. Mas, quando no começo do século jesuítas
espanhóis vindos do Paraguai estabeleceram reduções
(aldeamentos povoados por indígenas) em vários pontos
da região, os portugueses não ficaram atrás: lá
de cima, de São Paulo, vinham os bandeirantes paulistas, em busca
de escravos indígenas para a lavoura, numa época em que
ainda não era possível "importar" escravos negros
da África. Os melhores lugares para encontrar índios eram
as reduções jesuíticas, e os paulistas não
hesitaram: partiram para o ataque. Por volta de 1640, os jesuítas
foram forçados a abandonar o Rio Grande. Deixaram à solta
o gado criado nas reduções, gado este que, bravio, reproduziu-se
extraordinariamente: era a vacaria del mar, que seria a fonte da primeira
riqueza da região, a carne. Os portugueses acabaram conquistando
aos espanhóis o território gaúcho. Uma história
de brigas que está na origem mesmo do machismo gaúcho.
E também do caudilhismo, que aliás marcou o Brasil, Getúlio
Vargas sendo disso o exemplo mais eloqüente.
O pampa era ideal para a criação do gado; uma enorme extensão
territorial, praticamente plana, a não ser pelas coxilhas, suaves
ondulações que dão à região o aspecto
de um imenso mar verde. E o gaúcho é o grande personagem
do pampa, um personagem heróico, sempre a cavalgar, a pelear.
Uma figura típica, com suas botas, suas bombachas, o chapelão;
tinha também seus hábitos, entre eles o do churrasco e
o do chimarrão. O gaúcho toma chimarrão de manhã
cedo e encerra as lides do dia com uma roda de chimarrão: no
galpão da estância, ao redor do fogo, uma chaleira pendendo
da trempe, eles sorvem o líquido e contam histórias: "causos"
que inspiraram muitos escritores gaúchos, entre eles Simões
Lopes Neto, autor de Contos Gauchescos e Lendas do Sul. São histórias
notáveis, redigidas num linguajar típico, às vezes
de difícil entendimento para os de fora. Recentemente a Editora
Ática, de São Paulo, lançou uma nova edição
dessa obra, para a qual tive a honra de escrever o prefácio.
Quando recebi um exemplar já impresso, fiquei impressionado com
o tamanho do glossário explicando termos gauchescos e aí
me dei conta: aquelas palavras, que para mim são quase corriqueiras,
provavelmente eram incompreensíveis para pessoas do Nordeste,
por exemplo, assim como o linguajar do Nordeste ou o do Norte são
difíceis para pessoas do Sul. O fato é que as regiões
desenvolveram o próprio acervo vocabular e também sua
literatura, aliás pujante, vigorosa: nos anos de 1920 e 1930,
escritores como Jorge Amado e Graciliano Ramos conquistavam o público
leitor em todo o Brasil. Mas a verdade é que a atração
do eixo continuava forte: escritores, poetas, músicos, artistas
plásticos acorriam em massa para o Rio e para São Paulo.
Claro: nessas cidades estavam as grandes editoras, os grandes jornais,
o grande público (que tinha, além disso, maior poder aquisitivo).
Na segunda metade do século 20, um novo fenômeno surgiu:
a rede de televisão. O Brasil inteiro começou a acompanhar
as novelas da Globo, o Jornal Nacional, o Fantástico. E o país
inteiro começou a incorporar o modo de falar dos apresentadores
e dos artistas globais. No Rio Grande do Sul, por exemplo, sempre usamos
o "tu" como pronome da segunda pessoa; mas lá pelas
tantas nossos locutores e apresentadores começaram a usar o "você".
Isso sem falar, claro, na globalização em geral, no fenômeno
pelo qual a maioria dos filmes a que assistimos é americana e
a maior parte das camisetas que usamos tem palavras em inglês
- este idioma sendo cada vez mais freqüente no dia-a-dia. Entrega?
Não, delivery. Liquidação? Não, sale.
Mas a verdade é que há espaço, sim, para a cultura
regional. E de novo o Rio Grande do Sul é um exemplo disso. Graças
ao trabalho desenvolvido na rede escolar, formou-se um público
leitor para os escritores gaúchos. Aliás, esse é
o estado que mais lê, uma média de cinco livros por habitante
por ano, muito superior à média nacional, que escassamente
ultrapassa um livro por habitante por ano. Há eventos que, sendo
regionais, chamam no entanto a atenção do país
e repercutem no exterior: por exemplo, a Jornada de Literatura de Passo
Fundo, que congrega naquela cidade interioriana um público que
pode ultrapassar 10 mil pessoas. O mesmo se pode dizer da Feira do Livro
de Porto Alegre. A Festa Literária Internacional de Parati, o
Festival de Música de Campos de Jordão e o Festival de
Cinema de Brasília são outros exemplos desse processo
de descentralização.
Que precisa ser estimulado: está na hora de os caranguejos se
mexerem.
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Moacyr Scliar
é escritor
A produção cultural fora do eixo Rio-São Paulo
por
Márcio Souza
O
Brasil, do ponto de vista da indústria cultural, é um
país concentrador. Como a França, que tem Paris como epicentro
cultural e político, a capital cultural do Brasil é o
Rio de Janeiro, embora a Cidade Maravilhosa não mais exerça
influência política. Para o bem e para o mal, assim se
formou o nosso país. Há, é claro, a presença
de São Paulo, a cidade mais rica da América do Sul, o
maior mercado de consumidores culturais do Brasil, e que por isso lhe
é outorgada parte do eixo Rio-São Paulo. A verdade é
que o Rio de Janeiro ainda é a capital cultural do Brasil, o
lugar em que os talentos se tornam nacionais e as carreiras de sucesso
são referendadas.
E nos outros estados, há vida inteligente fora do eixo acima
mencionado? Os estados brasileiros sempre contribuíram para as
artes nacionais. Na literatura, nas artes visuais, no cinema, na arquitetura,
nas artes cênicas, em todos os campos, artistas de todos os estados
se afirmaram como talentos nacionais e ajudaram a construir a cultura
nacional. O que não quer dizer que a produção cultural
não enfrente problemas sérios e que cada um desses artistas
não tenha sido obrigado a superar grandes obstáculos.
Porque tudo depende do grau de desenvolvimento das políticas
culturais de cada estado. Especialmente num país em que não
há uma atribuição de responsabilidades entre autoridades
municipais, estaduais e federais.
Um dos problemas mais graves que acometem a maioria dos estados brasileiros
é que seus programas culturais são escravizados pelos
interesses políticos mesquinhos, quase sempre dominados pelo
populismo, escoando os recursos em eventos que não deixam nada.
Essas secretarias de Cultura gastam suas verbas contratando trios elétricos
e cantores bregas na ilusão de estarem saciando o gosto popular.
No fundo, estão refletindo o baixo nível de nossa administração
pública e perpetuando a precariedade de nosso sistema educacional.
Aliás, no Nordeste está acontecendo uma das formas mais
desiguais de concorrência, em que certa produção
musical da indústria cultural vem esmagando as formas tradicionais,
as festas sazonais profano-religiosas, com a conivência das próprias
autoridades municipais. Trata-se da forma predatória com que
os trios elétricos baianos atuam naquela região. Já
disse que os trios elétricos são a cultura do latifúndio
nordestino com excesso de decibéis. Essas empresas volantes,
montadas em carretas imensas, atravessam as cidadezinhas do sertão
e estão acabando com as festas tradicionais, além de disseminarem
uma forma musical degradada. Até mesmo cidades do norte do país,
em plena selva amazônica, estão começando a ver
a presença desses monstros rodoviários, e a reação
não se fez esperar. Hoje várias prefeituras proíbem
a presença de trios elétricos baianos em suas festas,
embora isso não se inscreva dentro do bom princípio da
liberdade de expressão. Mas não se pode deixar de registrar
que o abastardamento e a diluição da cultura afro-baiana,
que já tinha nos dado artistas como Jorge Amado, Carybé
e Dorival Caymmi, hoje contaminam de forma perniciosa a expressão
popular, embora tenham se tornado uma poderosa fonte de lucro para as
multinacionais do disco.
Nem todas as prefeituras sucumbem aos predadores baianos, e o melhor
exemplo da capacidade de mobilização e de estabelecer
um diálogo entre a própria tradição e o
mundo externo é a realização do Festival Folclórico
de Parintins.
Realizado anualmente no último fim de semana de junho, o festival
organiza-se em torno da competição entre dois grupos folclóricos,
os bumbás Garantido, da cor vermelha, e o Caprichoso, da cor
azul, desde 1965. Numa época em que tudo é espetáculo,
certas manifestações populares coletivas tornaram-se uma
espécie de chamariz para as manifestações de puro
exibicionismo televisivo. Mas o Festival Folclórico de Parintins
não é apenas um grande espetáculo de massas que
sabe usar a seu favor os veículos de comunicação
como também se transformou na maior e mais importante manifestação
cultural dos povos da Amazônia na virada do século 20 para
o 21. Um espetáculo que aparentemente tem mais a ver com a indústria
cultural do que com a cultura tradicional ou rústica. O festival
de Parintins, mesmo com a vocação para o gigantismo operístico,
tem seu caráter tradicional e folclórico ressaltado pelo
fato de que cada uma das versões anuais é concebida nos
parâmetros do boi-bumbá típico, mas cada uma delas
é uma releitura distinta fiel apenas ao desejo dos bumbás
envolvidos de surpreender o outro e arrancar-lhe a primazia da surpresa.
Mas a percepção de que o festival de Parintins encerra
uma nova linguagem não é facilmente absorvida pelos puristas.
De um lado, para o povo que se engaja nos folguedos, vale muito mais
o que está representado ou não do que a fenomenologia
dos velhos bumbás itinerantes, que percorriam as ruas mal iluminadas
das cidades amazônicas dos anos 50. De outro lado, esse é
um pecado mortal para os imobilistas. Ou seja, o olhar do observador
supostamente crítico, por ser conservador, é exigente
mas pobre, já que se contenta com o visível, quer a nitidez,
clama pelo previsível. Ora, os brincantes de Parintins se rebelaram
há muito contra essa camisa-de-força reducionista.
Poucos são os estados como o Amazonas, que mantém há
mais de três décadas uma política cultural clara,
diversificada, que se esforça para ser plural, atende aos artistas
e aos grupos culturais mas tem como alvo o público amazonense.
Os investimentos alocados pelo governo do estado não caíram
no vazio nem desapareceram no sumidouro dos eventos. Em uma geração,
o Amazonas ganhou uma orquestra de grande expressividade, a Amazonas
Filarmônica, e mais três orquestras sinfônicas, além
de uma orquestra de jazz e conjuntos de câmara. Provavelmente
a cidade de Manaus hoje seja o maior centro musical do país,
com uma nova geração de instrumentistas, cantores e regentes,
que vão se formando e crescendo junto com o Festival de Amazonas
de Ópera, que já vai para seu 12o ano. E não apenas
na música mas em outros campos, como a literatura, em que os
autores são incentivados com bolsas de trabalho. O Amazonas é
o único estado brasileiro a oferecer aos editores estrangeiros
financiamento para a tradução de seus escritores.
É claro que nenhum estado está livre das mazelas nacionais,
como o baixo índice de escolaridade, o dilaceramento cultural
provocado pela migração interna das massas miseráveis
e o alto índice de analfabetismo. Se de um lado há uma
crescente consciência profissional por parte dos artistas, que
cada vez mais entendem que o fazer artístico é um trabalho,
que exige formação, investimentos e mercado, as políticas
culturais oficiais continuam em grande parte clientelistas e indigentes.
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Márcio
Souza é escritor e diretor de teatro
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