Postado em 03/09/2007
Com o petróleo ameaçado, indústria aposta no hidrogênio
EVANILDO DA SILVEIRA
Vega II, da Unicamp: em testes
Foto: Divulgação
Há cerca de três séculos o mundo é movido a combustíveis fósseis – primeiro foi o carvão, depois o petróleo e o gás natural. A invenção do motor a vapor em 1764, por James Watt, deu início ao processo que se estende até hoje, mas que não deve durar muito mais. Especialistas prevêem que a produção do chamado ouro negro vai chegar ao auge até 2020 e depois declinar. Não é de estranhar, portanto, que governos e empresas ao redor do mundo façam altos investimentos na busca de fontes alternativas de energia. Entre várias opções – biocombustíveis, vento, sol e até ondas do mar –, uma delas é das mais promissoras: o hidrogênio. Não são poucos os que acreditam que o mundo está no limiar de uma nova era, na qual esse gás, como fonte de energia, estabelecerá as bases da economia.
Um evento realizado em junho passado no Japão pode ter sido o marco inicial desses novos tempos. O presidente mundial da Honda, Takeo Fukui, apresentou o FCX Clarity, o primeiro automóvel movido a hidrogênio do mundo a ser fabricado em escala comercial. Com 127 HP de potência, o novo carro tem autonomia de 435 quilômetros e atinge 160 quilômetros/hora de velocidade máxima.
"Este momento é muito importante na história dessa tecnologia e um passo monumental em direção ao dia em que os carros movidos por célula a combustível farão parte do nosso cotidiano", disse John Mendel, vice-presidente executivo da American Honda, o braço americano da empresa japonesa, que será responsável pela comercialização do veículo.
A célula a combustível é um equipamento que gera eletricidade através de uma reação química. Entre os vários tipos existentes, o mais comum é a Proton Exchange Membrane (PEM) ou membrana de troca de prótons. Externamente, parece uma simples caixa. Em seu interior, porém, há dois eletrodos, entre os quais ficam catalisadores e uma membrana. Alimentada com hidrogênio e oxigênio – que pode ser captado do ar atmosférico –, a célula provoca a ionização dos átomos de hidrogênio, num processo que libera elétrons, dando origem a uma corrente elétrica que pode mover um carro, por exemplo. Além da eletricidade, a reação química gera também calor e vapor de água, ou seja, nenhum poluente.
Muitos usos
Mover automóveis, trens, navios e aviões é apenas uma das aplicações da célula a combustível, que tem ainda a capacidade de gerar energia estacionária, isto é, para consumo residencial, comercial ou industrial. Em outras palavras, também poderão funcionar com ela baterias de telefones celulares, computadores, calculadoras ou qualquer outro aparelho eletroeletrônico.
Antes de usar o hidrogênio nas células a combustível, no entanto, é necessário "isolá-lo". Apesar de esse gás, que mantém o Sol e as demais estrelas "acesas", ser o elemento mais abundante do universo, ele não está livre na natureza, mas "aprisionado" nos combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural), nos renováveis (biomassa, etanol, metanol) e na água. Para ser empregado como fonte de energia, primeiro ele precisa ser extraído dessas substâncias.
No caso dos combustíveis fósseis ou renováveis é necessário, no dizer dos técnicos, reformá-los. Num equipamento denominado reformador, a extração é feita por meio de reações químicas. Outra forma de obtenção é a eletrólise da água. Uma corrente elétrica passa pelo líquido e quebra suas moléculas, separando os átomos de hidrogênio dos de oxigênio.
Há iniciativas em diversos países para projetar e desenvolver equipamentos e formas de uso do hidrogênio como fonte de energia. No Brasil, além da Petrobras, podem ser citadas empresas do setor elétrico, como a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), a Eletrobrás e a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL). Em âmbito mundial, gigantes do petróleo, como Shell, British Petroleum, Exxon Mobil e Texaco, seguem na mesma direção. Entre as montadoras, as que mais investem são Honda, General Motors, DaimlerChrysler, Nissan e, mais timidamente, Volkswagen, Peugeot e Renault.
Os investimentos em pesquisa nessa área visam o futuro, mas a idéia de usar essa fonte de energia é antiga. "Creio que a água venha a ser um dia empregada como combustível, que o hidrogênio e o oxigênio que a constituem, usados em conjunto ou separadamente, podem proporcionar uma fonte inexaurível de calor e luz, cuja intensidade é superior à do carvão", disse um dos personagens do famoso escritor de ficção científica Júlio Verne, no livro A Ilha Misteriosa, publicado em 1874. A certa altura, ele conclui, profeticamente: "A água será o carvão do futuro".
Nova economia
Para muitos, essa previsão está prestes a se tornar realidade. É o caso do escritor americano Jeremy Rifkin. Em seu livro A Economia do Hidrogênio, ele defende a idéia de que uma nova fonte de energia está em gestação, a qual terá o mérito de livrar a humanidade da dependência do petróleo. Em sua opinião, assim como ocorreu com o advento da máquina a vapor e o uso do carvão no século 18, durante a Revolução Industrial, a utilização desse gás trará mudanças significativas e será a base de uma nova ordem econômica, política e social do mundo.
Rifkin prevê o surgimento do que chama de Worldwide Hydrogen Energy Web (HEW), uma espécie de World Wide Web (a internet) da energia. Segundo ele, assim como hoje as pessoas estão conectadas a uma rede mundial de computadores, recebendo e fornecendo informações, o mesmo acontecerá com a energia. Cada residência terá uma célula a combustível para gerar eletricidade a partir do hidrogênio e estará conectada a milhões de outras, nos mesmos moldes da internet. Quem estiver produzindo mais energia do que necessita num determinado momento poderá enviá-la para a rede HEW, e assim estará abastecendo outra residência, que naquele instante disponha de menos do que precisa.
O engenheiro eletricista Emilio Hoffmann Gomes Neto, autor do livro Hidrogênio – Evoluir Sem Poluir, também acredita nesse gás como a energia do futuro, aliado a outras fontes renováveis. "De acordo com estudos da Shell, o petróleo a preços competitivos vai acabar por volta de 2045", diz ele. "Existem previsões de que o barril chegará a custar US$ 600. Por essa razão, tanto países desenvolvidos quanto emergentes estão investindo maciçamente em tecnologias do hidrogênio."
Projeto mundial
Além do carro da Honda, há outros resultados concretos do esforço mundial para transformar o hidrogênio em fonte de energia. Já existem protótipos de automóveis e ônibus rodando de forma experimental ou pré-comercial e células a combustível produzidas em série. Para investir no desenvolvimento dessa tecnologia, a Shell criou, em 1999, a subsidiária Shell Hydrogen, que, em parceria com a General Motors, inaugurou a primeira bomba desse gás num de seus postos de combustíveis de Washington DC (EUA). Outros cinco, nos mesmos moldes, já são operados pela empresa no Japão.
No Brasil, a Petrobras destina cerca de US$ 1 milhão por ano ao desenvolvimento da tecnologia do hidrogênio, basicamente em pesquisas realizadas em parceria com universidades e outras instituições, nacionais em sua maioria. Os projetos financiados pertencem às áreas de produção, armazenamento, logística de distribuição e aplicações, entre eles as células a combustível.
Está em construção uma fábrica da empresa em São Bernardo do Campo para fornecer o combustível para o primeiro ônibus movido a hidrogênio do Brasil, que deverá estar rodando experimentalmente a partir de outubro. O protótipo, com capacidade para 90 passageiros, circulará no corredor de 33 quilômetros que vai de São Mateus, na zona leste, ao Jabaquara, na zona sul da capital paulista. O veículo foi projetado por um consórcio de empresas e instituições nacionais e estrangeiras, lideradas pela Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU), de São Paulo.
Na verdade, trata-se de um projeto mundial, iniciado em 2002, que vem sendo conduzido em dez cidades, com financiamento do Fundo Global para o Meio Ambiente (Global Environment Facility – GEF) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). No Brasil, os recursos provêm, desde 2002, do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). "No total, serão US$ 16 milhões até 2010", informa Carlos Zündt, diretor de desenvolvimento da EMTU e coordenador nacional do projeto. "Além desse ônibus já pronto, serão construídos outros quatro até 2009 ou 2010."
A Electrocell, de São Paulo, é uma das companhias que já fabricam e comercializam dispositivos para o uso do hidrogênio como fonte de energia. "Investimos cerca de R$ 500 mil por ano em pesquisa e desenvolvimento de novos equipamentos", informa Gerhard Ett, um de seus diretores. "Atualmente, produzimos quatro células a combustível de 50 kW por mês, que são fornecidas principalmente para institutos de pesquisa e universidades." A empresa tem também entre seus clientes bancos, hospitais e centros de processamento de dados, que as usam como back-up, isto é, para o caso de queda de energia elétrica da rede tradicional.
Veículo brasileiro
Desenvolvido a partir de 1992 pela equipe do físico Ennio Peres da Silva, coordenador do Laboratório de Hidrogênio da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em conjunto com o Centro Nacional de Referência em Energia do Hidrogênio (Ceneh), o Vega II é o primeiro veículo elétrico movido a célula a combustível do Brasil. Financiado pelo Ministério de Minas e Energia (MME), que entrou com R$ 400 mil de um total de R$ 450 mil, o projeto busca desenvolver uma plataforma de testes para esse tipo de veículo e dotar o país de conhecimento técnico e mão-de-obra especializada na área.
Segundo Peres da Silva, entre os principais resultados desse trabalho estão o dimensionamento, teste e operação de todo o sistema de propulsão, além de pesquisas para o uso das células em aplicações estacionárias. "Agora vamos utilizar esse conhecimento no desenvolvimento de dois ônibus movidos a hidrogênio, um para a Itaipu Binacional e outro para a Cemig."
Em nível institucional, as pesquisas sobre essa fonte de energia também avançam no país. No total, foram investidos cerca de R$ 30 milhões entre 2004 e 2007 nessa área, com destaque para a atuação do MME e do Instituto Nacional de Tecnologia (INT), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). O primeiro trabalha, desde 2003, no planejamento e desenvolvimento de ações que conduzam à utilização futura do gás como complemento da matriz energética renovável brasileira. O principal desdobramento dessa iniciativa foi o lançamento, em 2005, do Roteiro para a Estruturação da Economia do Hidrogênio no Brasil.
O texto apresenta uma visão de futuro da economia do hidrogênio, apontando os principais desafios, o grau de maturidade das tecnologias associadas, assim como as ações a ser implementadas para introduzir esse gás na matriz energética com vantagens competitivas para o Brasil. Agora, os próximos passos do MME são a revisão desse roteiro e a preparação do lançamento do Programa Governamental de Produção e Uso do Hidrogênio no Brasil.
No caso do INT, o foco de atuação é mais técnico. "O principal objetivo dos projetos em andamento é a produção de hidrogênio com elevado grau de pureza a partir de fontes renováveis", explica Marco Fraga, gerente da Divisão de Catálise e Processos Químicos do órgão. "O que for produzido alimentará uma célula a combustível do tipo PEM, para geração de energia elétrica para fontes estacionárias."
Apesar de todo o esforço mundial, ainda há algumas dificuldades a superar para que a era do hidrogênio se torne realidade. Falta, por exemplo, aperfeiçoar e baratear as células a combustível, assim como os veículos movidos por esse gás. Também é necessário criar toda uma infra-estrutura de "fábricas" e postos de abastecimento.
O certo é que, mesmo que essa nova era não se concretize, o hidrogênio estará entre as principais fontes de energia que moverão o mundo num futuro não muito distante. Ou, como diz Gomes Neto, a função dele será a de oferecer uma pulverização no fornecimento da energia. "Um veículo terá esse combustível produzido a partir de biogás, etanol, metanol, gás natural, eletrólise da água, biodiesel, glicerol, que é o resíduo da fabricação do biodiesel, dentre outros", explica. "Dessa forma, não sobrecarregaremos uma ou duas fontes de energia para sustentar a humanidade."