Postado em 03/09/2007
Mal usado pelo planeta, precioso líquido corre o risco da escassez
HENRIQUE OSTRONOFF
Foto: Arquivo PB
Quem olha as fotos de satélite que mostram toda a Terra, logo percebe que ela é azul, como bem disse Iuri Gagarin, o primeiro astronauta a ver o planeta a partir do espaço. Esse azul é a cor da água, que ocupa cerca de três quartos da superfície terrestre. No entanto, de todo esse enorme volume, apenas 2,53% é de água doce. E, desse total, só dois terços estão disponíveis para o consumo do homem e para as atividades voltadas para seu sustento, como a indústria, a agricultura e a pecuária. O restante se encontra imobilizado, pois constitui geleiras e neves perpétuas.
Essa porcentagem de água doce parece ínfima diante da grandiosidade dos oceanos, mas é mais do que suficiente para abastecer toda a população mundial, estimada hoje em mais de 6 bilhões de pessoas. No entanto, como demonstra um cenário montado pela Organização das Nações Unidas (ONU), a água doce, por não ser um recurso inesgotável e por estar sendo mal aproveitada, corre o risco de se tornar escassa no mundo todo. O quadro pode ficar dramático em escala global, como já acontece nas regiões mais áridas da Terra.
O estudo Água para Todos, Água para a Vida – Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos no Mundo –, publicado em 2003, explica: "Os recursos hídricos são renováveis (exceto certas águas subterrâneas), com enormes diferenças de disponibilidade e grandes variações de precipitação sazonal e anual em diversas partes do mundo. A precipitação constitui a principal fonte de água para todos os usos humanos e ecossistemas. Essa precipitação é recolhida pela vegetação e pelo solo, evapora-se na atmosfera mediante a evapotranspiração [fenômeno que combina a evaporação da água do solo e das superfícies líquidas e a transpiração dos vegetais] e corre para o mar através dos rios ou para os lagos e humedales [terras inundadas e inundáveis]. A água da evapotranspiração mantém os bosques, as terras de pastagem e de culturas não irrigadas, assim como os ecossistemas".
Segundo o texto, o homem retira 8% do total anual de água doce renovável e se apropria de 26% da evapotranspiração anual e de 54% das águas de chuva que não evaporam nem se infiltram na terra. "O consumo per capita de água aumenta (devido à melhora dos níveis de vida), a população cresce e, em conseqüência, a porcentagem de água utilizada é cada vez maior. Se se somam as variações espaciais e temporais da água disponível, pode-se dizer que a quantidade existente para todos os usos está começando a escassear, e isso nos leva a uma crise."
Para piorar a situação, a publicação da ONU informa que a disponibilidade de água doce vem se reduzindo por causa da poluição. O órgão estima que 2 milhões de toneladas de dejetos são depositados todos os dias nas águas – esgotos e resíduos industriais e agrícolas, como fertilizantes e pesticidas. O estudo, produzido por 23 agências do sistema das Nações Unidas e associações ligadas à questão da água, com a colaboração de governos, afirma ainda que nos últimos tempos têm havido grandes avanços na compreensão da natureza da água e de sua interação com o meio, dos efeitos decorrentes da mudança climática e dos processos hidrológicos. Isso tem garantido, até agora, recursos hídricos suficientes para as necessidades básicas da população e a redução dos riscos de situações extremas. O crescimento populacional e o desenvolvimento econômico têm, entretanto, pressionado o sistema hidrológico mundial e já são previstos desafios ante a falta progressiva de água e sua contaminação. Estima-se, então, que em meados deste século de 2 bilhões a 7 bilhões de pessoas poderão viver em situação de escassez.
A condição brasileira
Com os recursos hídricos de que dispõe, o Brasil não tem do que reclamar. O país detém as maiores reservas de água doce do planeta. De acordo com o documento Geo Brasil: Recursos Hídricos, que faz parte da série de Relatórios sobre o Estado e Perspectivas do Meio Ambiente no Brasil, produzidos pelo Ministério do Meio Ambiente, pela Agência Nacional de Águas (ANA) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), dentro do território brasileiro estão 60% da bacia amazônica, que abriga um quinto de toda a água doce do mundo.
O potencial de vazão média anual dos rios brasileiros chega a 180 mil metros cúbicos por segundo, o equivalente a 72 piscinas olímpicas fluindo a cada segundo. São 28% do que dispõem as Américas em termos de recursos hídricos e 12% de toda a Terra. Isso sem contar as vazões provenientes de outros países, que, se somadas aos cursos de água com nascentes no país, fazem o Brasil atingir 18% desses recursos.
Dividindo-se a vazão apenas da água genuinamente brasileira pelo número de habitantes, chega-se a 33 mil metros cúbicos per capita por ano. Esse índice é 19 vezes superior aos 1,7 mil metros cúbicos anuais por habitante que a ONU estabelece como o mínimo para que um país não seja considerado em situação de esgotamento hídrico. Como nem todos os rios mantêm a vazão máxima durante o ano, o relatório estima que a disponibilidade efetiva seja de 92 mil metros cúbicos por segundo – volume que ainda deixa o Brasil numa situação confortável, considerando a atual demanda do país como um todo.
Com tanta água, pode-se pensar que as possibilidades de escassez no território brasileiro são ínfimas. Engana-se, porém, quem aposta nessa hipótese. "O Brasil já tem problemas de abastecimento. É o país mais rico em água do mundo, mas ela não se encontra necessariamente onde a população está", afirma Oscar Cordeiro Netto, diretor da ANA, autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e que tem por objetivo implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH). Cordeiro Netto lembra por exemplo o semi-árido nordestino, "onde a chuva é irregular, mal distribuída e muitas vezes a população não tem acesso à água".
As afirmações de Cordeiro Netto são corroboradas por outros números do Geo Brasil. Com vazão média de 145 mil metros cúbicos por segundo, as regiões hidrográficas Amazônica e Tocantins-Araguaia, ambas no norte do país, representam 81% dos recursos hídricos nacionais e em sua área abrigam uma população de aproximadamente 15 milhões de pessoas. Já as bacias do Parnaíba e do Atlântico Nordeste Oriental, ambas no nordeste, somam uma vazão média de 1,5 mil metros cúbicos por segundo, ou 0,8% do total, para cerca de 26 milhões de habitantes. Por outro lado, a região hidrográfica do rio Paraná, que inclui a quase totalidade dos estados de São Paulo e do Paraná, além de partes de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul, conta com um potencial de vazão de 11,5 mil metros cúbicos por segundo, ou seja, 6,3% do total, para quase 60 milhões de habitantes, ou um terço da população do Brasil.
Cobrança
Há, ainda, outros dados do relatório Geo Brasil que dimensionam de maneira mais exata a questão da disponibilidade e uso da água no país. Consideradas apenas as vazões com 95% de garantia, ou seja, dos rios com perenidade quase absoluta, o índice de utilização da água é de 3,4%, ou seja, 1,5 mil metros cúbicos por segundo. Desse total, 840 metros cúbicos por segundo são consumidos efetivamente, não retornando às bacias hidrográficas. Somente a região da bacia do Paraná representa 30% da retirada e 23% do consumo do país. Enquanto isso, na região da bacia do Atlântico Nordeste Oriental, as retiradas superam a disponibilidade hídrica, inferior a 1,2 mil metros cúbicos per capita por ano, por causa da intermitência de seus cursos de água.
O maior consumo da água brasileira vai para as atividades agropecuárias, algo em torno de 53% do total dos recursos hídricos, sendo 46% para a irrigação e 7% para a criação de animais; o uso industrial corresponde a 18%; o consumo humano rural fica com 3% e o urbano representa 27%, ainda segundo dados do relatório Geo Brasil.
O uso dos recursos hídricos tem como principal e mais antigo instrumento de controle a outorga, que é concedida pelos governos federal e estaduais. Empresas industriais e agropecuárias necessitam dessa licença para poder retirar água dos rios e de outras fontes para sua utilização. No entanto, uma novidade foi estabelecida nos últimos anos, que é a cobrança pelo uso das águas de bacias hidrográficas federais, possibilitada pela PNRH, instituída por lei em 1997. Segundo o diretor da ANA, entidade que administra a cobrança, a medida é cabível, uma vez que a água é um bem público e é preciso orientar seu uso correto e evitar o desperdício. "O objetivo é melhorar as condições dos rios, e aqueles em que está havendo a cobrança estão comprometidos devido à poluição, ao uso intenso etc. Com a cobrança se busca utilização mais racional, de modo a evitar a contaminação das águas. O dinheiro arrecadado serve para financiar obras de controle da poluição e de aumento da disponibilidade", afirma Cordeiro Netto.
Ainda de acordo com o diretor da ANA, "a cobrança é feita sobre três fatores: a quantidade de água captada, a daquela que é consumida no processo e não é devolvida ao rio, e também a poluição orgânica que é gerada, ou seja, paga-se pelo total de poluição causada às águas". No entanto essa cobrança não deve ser confundida com um imposto, diz Cordeiro Netto, na medida em que só pode ser instituída depois da criação de um comitê de bacia hidrográfica e com um planejamento de destinação dos recursos arrecadados, normalmente voltados para a melhoria da qualidade das águas. "Os comitês são formados por três categorias: o poder público, a sociedade civil e os usuários. Não é um comitê chapa-branca, mas do qual a sociedade participa, por meio de ONGs, instituições de ensino e pesquisa, além daqueles que usam a água, como a indústria, as companhias de produção de energia e de saneamento, as prefeituras. Quem paga participa do comitê", afirma.
Na maior região metropolitana
Preocupado também com a qualidade e o uso racional da água, o Instituto Socioambiental (ISA), entidade voltada para questões do meio ambiente, tem chamado a atenção para a situação dos mananciais, especificamente os que abastecem a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), por meio do seu Programa Mananciais.
A RMSP recebe água de oito sistemas produtores, dos quais os três principais são responsáveis por cerca de 60% do abastecimento. A represa Billings é o maior reservatório, com aproximadamente 100 quilômetros quadrados. Sua bacia se estende por mais de 500 quilômetros quadrados, em seis municípios da região. A bacia que forma a represa do Guarapiranga ocupa 630 quilômetros quadrados, em sete municípios da RMSP. E, por fim, há o sistema Cantareira – considerado um dos maiores produtores de água do mundo –, que inclui seis represas e está localizado parte no estado de São Paulo, na região do município de Bragança Paulista, parte em Minas Gerais.
Segundo a geógrafa Pilar Cunha, diretora adjunta do programa, a situação do abastecimento de água na maior concentração urbana do país é preocupante. "A RMSP é uma região com grande escassez de água. A disponibilidade hídrica por habitante é igual ou inferior à de alguns estados do nordeste, como Pernambuco, muito associado à situação de seca", diz Pilar. A estudiosa explica que isso se deve a uma conjugação de fatores. "A RMSP está localizada na cabeceira dos rios, na região de nascente do rio Tietê, uma configuração natural que faz com que haja menos água disponível. A população atendida é de 20 milhões de habitantes, e essa combinação de muita gente com pouca água é muito delicada. Além de tudo isso, historicamente a relação das cidades com os rios fez com que quase todas as fontes de água ficassem poluídas, tanto que muitas delas não podem mais ser utilizadas. Embora tenham sido usadas como mananciais no passado, atualmente são esgotos", explica.
Pilar diz que tanto a Billings como a Guarapiranga, localizadas dentro da área urbana, estão muito prejudicadas pelo impacto que sofrem da ocupação urbana em seu entorno, a maior parte irregular, e por causa da poluição provocada pela falta de saneamento básico. "No caso da Guarapiranga, o tratamento da água depende de tecnologia avançada, para poder dar conta do nível de poluição já existente, devido ao esgoto doméstico. Já na Billings, embora esse problema também esteja presente, a principal fonte de poluição vem do rio Pinheiros [que atravessa uma parte da cidade de São Paulo], porque durante muito tempo seu curso era revertido, bombeado para dentro da represa para poder gerar energia na usina de Henry Borden, na Baixada Santista. Atualmente o bombeamento é proibido, mas sempre que ocorre chuva intensa essa prática é retomada para evitar enchentes", afirma ela.
No caso do sistema Cantareira, Pilar explica que ali é produzida água de melhor qualidade, pois o sistema está localizado numa região de cidades de pequeno e médio portes, com menor impacto da ocupação urbana, embora também existam riscos. "Há atividades econômicas que vêm crescendo na região – industriais, agrícolas, além de áreas de pastagem – e poucos remanescentes de mata atlântica. A tendência é de piora, devido ao uso, o que já vinha se verificando na última década".
Por causa dessa situação, o ISA vem desenvolvendo estudos sobre os mananciais desde 1996, com a produção de diagnósticos socioambientais das bacias hidrográficas e o acompanhamento de políticas públicas propostas para a área. Pilar explica que o instituto adotou cinco linhas de atuação para tentar reverter a situação dos mananciais.
A primeira é implantar saneamento básico na região das bacias, o que proporcionaria melhora da qualidade de vida para as pessoas e diminuiria a poluição da água. Pilar argumenta que não é possível tirar 2 milhões de pessoas, mesmo em situação irregular, do entorno da Billings e da Guarapiranga. Outra providência é controlar o crescimento das cidades sobre as áreas de mananciais: "Não adianta tentar resolver o que já está estragado se não procurarmos evitar que novas ocupações ocorram, que o problema continue crescendo", afirma ela. A terceira linha diz respeito à preservação das coberturas vegetais ainda existentes junto às duas represas. A criação de unidades de conservação poderia ajudar a manter os cerca de 40% remanescentes de mata atlântica da Guarapiranga e os 50% da Billings. Outra diretriz é reivindicar que os dois reservatórios voltem, como no passado, a servir como áreas de lazer para a população. "Uma forma de envolver as pessoas é dar acesso, fazer com que elas possam conhecer, visitar essas represas", diz.
A quinta linha visa mobilizar os consumidores de água que vivem na RMSP. "A nosso ver, se as pessoas não se envolverem com essa questão, a realidade não mudará. Então, um dos grandes objetivos da campanha e da atuação do ISA é fazer com que as pessoas conheçam o problema e saibam o que fazer no seu dia-a-dia, como exercer pressão política, participar dos comitês de bacias, entre outras ações", afirma Pilar. Em novembro de 2007, o instituto lançou a campanha "De Olho nos Mananciais", que tem como estratégia promover atos públicos pela preservação desses recursos naturais e atividades que mobilizem as pessoas em torno do tema. Eventos como abraços simbólicos em represas e expedições fotográficas têm atraído milhares de pessoas, assim como o site da campanha, que neste ano já recebeu cerca de 100 mil visitas.
A próxima ação prevista relaciona-se às eleições municipais deste ano. O ISA está preparando uma plataforma sobre mananciais para apresentar aos candidatos a prefeito dos 39 municípios que compõem a RMSP, dos quais 21 abrigam área de manancial, e também aos dos municípios que integram o sistema Cantareira. "É importante que isso entre na pauta das eleições, porque as prefeituras têm grande responsabilidade sobre várias questões ligadas à água e ao abastecimento público. Vamos promover eventos e debates para ver se conseguimos o compromisso dos candidatos com essa pauta", diz Pilar.